sábado, 14 de julho de 2007

24 contos de Scott Fitzgerald

Estou meio dividido na hora de escolher o melhor conto da coletânea. Mas, bom, não quero dizer "então escolho este, este e este como melhores", não quero parecer indeciso, alguém que foge às decisões importantes, então vou escolher "O menino rico" como o #1. Reproduzirei aqui o começo, que é sensacional, e vocês, se mais que um lê isto aqui, comparam com o original no link dali de cima. Particularmente, achei ótima a tradução de Ruy Castro:
Comece com um indivíduo e, antes que se dê conta, você concluirá que criou um tipo; comece com um tipo e concluirá que o que criou foi — nada. Isso é porque todos somos aves raras, e mais raras ainda no que se passa por trás dos rostos e vozes, naquilo que escondemos dos outros e que nem nós mesmos conhecemos. Quando ouço um homem dizer que é "um sujeito comum, honesto e franco", já sei que ele tem alguma perversão terrível a esconder — e que sua afirmação de ser comum, honesto e franco é apenas uma forma de lembrar a si mesmo o próprio crime.

Não existem tipos, nem generalizações. Existe um menino rico e esta é sua história, não a de seus irmãos.
Agora que já me livrei da responsabilidade de escolher o melhor, não preciso escolher o segundo lugar. Vou deixar bem vago qual é o segundo lugar do livro, dizer que muitos estão empatados na segunda posição e tal. Pois então, "Uma viagem ao estrangeiro", "O amor à noite", "Um belo casal" e "Os nadadores" são incrivelmente bons, de modo que realmente não posso colocar um acima do outro.

Mas eu posso até dizer que tenho um carinho especial pelos dois últimos. O tom dos contos de Fitzgerald é quase sempre pessimista e eu, com meu espírito juvenil, ficava sempre torcendo para os protagonistas não se darem por vencidos. Enquanto os personagens observavam apaticamente suas vidas irem pelo ralo, eu ficava com aquele nó na garganta, querendo obrigá-los a fazer algo, a não aceitar aquela situação, a revertê-la, a humilhar quem os colocou nela, a fazê-los se sair por cima. "Os nadadores" e "Um belo casal" fazem isso parcialmente. Eles não deixam com que os protagonistas sejam destruídos sem lutar.

Ah, e qualquer um se apaixona pelas mulheres que Scott cria. Outra observação necessária: é necessário se acostumar com as descrições dele. No começo, parecem maçantes, e você vai pensar que ele não sabe fazer começos de histórias. Mas dois ou três contos mais tarde você se acostuma, porque sabe que a qualquer momento vai aparecer uma coisa bonita assim:
Fifi Schwartz. Uma bela e radiante judia, cuja testa alta estendia-se até que seu cabelo, como um brasão heráldico, explodisse em madeixas, ondas e caracóis de um vermelho escuro e macio. Os olhos eram grandes, claros, úmidos e brilhantes; a cor intensa de seus lábios e faces era real, assomando quase à superfície depois de bombardeada por seu jovem e impetuoso coração.
O trecho aí em cima é o começo do terceiro parágrafo de "A menina do hotel". Ok, em resumo, no livro estão algumas das melhores 473 páginas que qualquer um poderá jamais ler.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

O duplipensar de Olavo de Carvalho

Em primeiro lugar, quero explicar porque usei "duplipensar" no título. São dois os motivos: 1) É a palavra mais adequada, e 2) Pra mostrar que eu li 1984, porque sou muito metidinho. Mas vamos ao Olavo.

Olavo de Carvalho costuma defender a doutrina católica como necessária para a trinomia "tradição, família e propriedade". A doutrina católica é a mesma que diz "ao levar um tapa, dê o outro lado", e isso me parece bastante pacífico. Não entendo como Olavo consegue mesmo assim apoiar uma guerra, que significa, na melhor das hipóteses, "ao levar um tapa, desconte", e, no caso do Iraque, "previna-se de levar um tapa: estapeie antes". Olavo critica os muçulmanos como irracionais, e critica a jihad, mas não vejo como não relacionar a defesa da guerra de Olavo com a jihad: "vamos atacá-los, são muçulmanos. São diferentes de nós" - e aí o Olavo pede um trocado pra continuar escrevendo, porque ninguém é de ferro.

Depois ele defende de novo a Igreja Católica e diz que a "esquerda" pensa errado. Mas ele pensa tão errado quanto ou mais. A esquerda é consistente na maior parte de suas idéias, mesmo se virmos o ponto de vista da igreja. Olavo de Carvalho é contra o casamento gay, o que significa que ele é contra o livre-arbítrio. Repare-se que a igreja não proíbe o casamento gay, proíbe apenas os católicos de se casarem com homens e as católicas com mulheres. A igreja não pede que os governos proíbam o casamento gay, pede que seus fiéis gays não se casem nem mantenham relações homossexuais. Mas Olavo de Carvalho cai na inconsistência que vê na esquerda, vai contra o princípio primeiro do cristianismo, contradiz-se sem pestanejar, defendendo que o homem deve ser proibido pelo homem de fazer o que Deus não proibiu.

Para ele, a economia deve ser livre, mas as relações pessoais não. Quer sinceridade? Prefiro o contrário. Acredito que mais direitos são violados quando se impede que alguém se case, que alguém adote. Mais direitos são violados se as drogas são proibidas do que se a importação de chocolate for taxada. Olavo vê isso? Penso que não. Ao contrário dele, que acha que todo esquerdista é mau e cínico, acho que o Olavo é só irracional, o que o põe numa posição de neutralidade.

De novo os esquerdistas: eles, em geral, defendem abertamente a existência de um Estado regulador para que a economia se desenvolva de forma mais "justa". Olavo se diverte atacando o governo, fingindo que odeia o Estado, mas requerendo cada vez mais Estado pra que as guerras aconteçam cada vez com mais freqüência. É como odiar a agressão e pedir pra cada vez mais o pessoal ser agredido - mas agressão para Olavo tem dois sentidos: duplipensando bem, quando agredimos a agressão é justa, quando somos agredidos é injusta, e quando não acontece precisa começar, porque senão vira tédio. Olavo passou do patamar de achar que está ao lado de Deus para o de achar que é Deus e não se deu conta disso. Porque o único capaz de ser justo mesmo fazendo coisas "injustas" é Deus. E Olavo defende ele pode fazer isso.

Durante todo este post eu falei de "Olavo de Carvalho" como sinônimo de conservador. Só achei que seria mais válido especificar um dos conservadores do tipo pra que ninguém reclamasse de falta de objetividade.

Para ter uma idéia da genialidade do Olavo, é só clicar aqui.

A necessidade do lado mau

Um dos meus hobbies é reparar como as pessoas que dizem que algo não é alguma coisa se contradizem dando características dessa coisa a esse algo. Por exemplo, há pessoas que adoram falar que "esse mundo aqui não é conto de fadas, não! A maldade está solta por aí!"

Gostaria que me mostrassem um único conto de fadas sem maldade solta por aí. A diferença que vejo entre o nosso mundo e o dos contos de fadas é que aqui, na Terra, a maldade é inocente. Ela não sabe que é má, tem boas intenções. Enquanto nas historinhas a bruxa tem gargalhadas cruéis e afirma o tempo todo que é má e invejosa, o vilão do mundo real acredita que, na verdade, o mocinho é o grande vilão. Na Terra todos querem ser heróis.

Por isso os debates políticos são tão inócuos, tão improfícuos: o liberal diz que o estatista é cínico e mau e feio, e que por isso está errado. O estatista faz o caminho inverso: "você é egoísta, cínico, não tem coração!" e o debate fica eternamente em decidir primeiro quem está certo, para depois de convencer que o outro é mau dizer os motivos de suas idéias serem más. Acontece que ninguém vai se convencer de sua maldade, porque, se o outro é mau, ele só pode estar usando de ardis maquiavélicos para te carregar para o lado da maldade (e eu não direi o lado negro..., não gosto de Star Wars).

Na verdade vejo isso como uma necessidade que o homem tem de aproximar a vida real do mundo dos contos de fadas, de ter um inimigo bem definido, com todas as características da maldade que se pode ter - incluindo, talvez, a verruga no nariz e as unhas longas e sujas. Mas não há muita perfeição na Terra, e as pessoas costumam sempre - displante! - acertar em algum aspecto.

A esquerda costuma estar certa em suas idéias sobre costumes e cultura, a direita tem mania de acertar no que diz respeito à economia e à política, mas ambas rejeitam a parte certa do adversário, porque dão maior valor àquilo em que estão certos (e talvez estejam certos justamente porque, por dar mais valor a esses aspectos da vida humana, é a eles que se dedicam com mais afinco).

Mas o ponto principal deste texto é outro, e eu estava só enrolando até achar uma boa forma de dizer isso: Alguém acha que os ditadores do Brasil acreditavam que eram maus? Alguém acha que eles se diziam maus? Hitler já foi pego gargalhando cinistramente enquanto planejava a morte de milhares de mocinhos judeus? Hitler era padrasto de alguém? Toda a maldade que existe - e ela existe, está por toda a parte, em pequenas doses ou em doses maiores - deve ser combatida não apenas com espadas, dizendo "você é mau! Você é mau!", porque não adianta. As pessoas chamam Hugo Chávez de mau, mas, pelos céus que ele não se acha má pessoa. Talvez nem seja má pessoa, mas está tomado de más idéias, coitado, que ele acha que são boas.

Ninguém assume que é mau. Pelo menos não se estiver são. É preciso convencer as pessoas de sua maldade por partes, debatendo não a pessoa inteira, mas os pedaços pequenos que ela tem - "concordo disso, discordo daquilo, tenho dúvidas (é bom ter dúvidas) naquilo outro" e é assim que a maldade se dissipa, se dilui na humanidade, ficando cada vez menor, cada vez menor, para que no fim a vida seja como o fim de um conto de fadas.

(Sim, eu sei. Final piegas, mas eu gosto de ter essa esperança de que as coisas vão melhorar, melhorar, melhorar até não poder mais. Afinal - mais uma pieguice (e quem disse que sou contra pieguice?) - de que valeria viver sem acreditar que você pode contribuir para algo no mundo.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sobre o socialismo marxista e suas influências

Escrevi o texto abaixo para ajudar uma amiga de Gustavo. Ela precisava de um resumo das influências de Marx, do socialismo anterior a ele e das diferenças entre o socialismo e o comunismo no marxismo.

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Algumas influências do socialismo marxista

Embora o que se entenda por “socialismo” hoje em dia se refira, em termos amplos, à propriedade coletiva (via Estado ou não) dos “meios de produção”, o que se entendia pela palavra ao longo da história não era exatamente isso. Historicamente, o “socialismo” se referia, basicamente, a uma preocupação com o social. Esta definição pode parecer trivial; no entanto, basta observarmos um pouco a história dos pensadores e movimentos chamados de socialistas para vermos que essa é a única característica que os distinguia.

As teorias socialistas tiveram seu início a partir das teorias liberais clássicas, por mais paradoxal que possa parecer – dada a oposição que hoje pensamos entre as duas tradições, graças principalmente a Karl Marx. Com a crescente liberalização das relações sociais, surgiu uma nova disciplina: a economia política. Com essa disciplina, veio a tentativa de entender as relações sociais na sua totalidade. Havia uma impressão generalizada de que o trabalho, e, por extensão, a divisão do trabalho, traziam uma maior prosperidade para todos.

As teorias liberais clássicas, principalmente aquelas formalizadas por Jean-Baptiste Say, em seu Traité d’economie politique (1803), opunham duas classes de pessoas: os trabalhadores e empreendedores, por um lado, que constituíam a classe produtiva, e os grandes donos de terras e rentiers, privilegiados por conquistas do passado, que não nada produziam. Segundo Say, que colocava sob um mesmo nome tanto a agricultura, a manufatura e o comércio – “indústria” – a primeira classe era a dos “industrieux” – o que deu o nome a um novo movimento na França: o industrialismo.

Benjamin Constant, similarmente, deu nova inspiração aos movimentos de transformação política com seu panfleto anti-napoleônico Le espirit de Conquete (1815), que argumentava que as conquistas de Napoleão não durariam, porque violavam as condições da liberdade individual, a saber, a paz e o comércio.

No fim do período napoleônico, em 1814, dois liberais clássicos, Charles Comte (1782-1837) e Charles Dunoyer (1786-1862), lançaram o jornal Le Censeur europeen, que pretendia avançar os princípios da liberdade individual e do governo representativo. Mais tarde, em 1817, o jornal mudou de foco e passou a enfatizar a própria sociedade industrial, argumentando que, se a indústria não era o objetivo das sociedades modernas, deveria passar a ser. A mudança de rumos do jornal da defesa de algumas liberdades constitucionais para uma defesa da própria sociedade industrial não foi uma mudança trivial; se antes a agenda dizia respeito às instituições representativas, o novo foco tinha relação com a exploração econômica e estruturas de classe. A análise dava ênfase no impacto do sistema econômico sobre o desenvolvimento da cultura política e tentava explicar a passagem de um estágio social a outro.

Segundo eles, a liberdade era o estado que permitia que os homens exercessem suas faculdades e obtivessem o produto de seus trabalhos. O mal era o que interferia na liberdade. Assim, o industrialismo seria o único sistema que permitiria ao homem exercer suas faculdades sem o medo de ser vítima de força, fraude, exploração ou guerra. Como colocou Charles Comte em seu Traité de Legislation (1826): “Em todas as nações uma parte da população domina ou pretende dominar os outros, e é para evitar castigos físicos mais ou menos severos que alguns homens, chamados governados, súditos ou escravos, obedecem ou tentam evitar as ações que se lhes são impostas. A história da espécie humana é composta, numa palavra, de lutas que nasceram do desejo de tomar os prazeres físicos de toda a espécie e impor sobre todos uma dor proporcional.” Assim, a teoria de classes radicalmente liberal nascida na França via no Estado a fonte da exploração e opressão. O mesmo pensamento mais tarde viria a ser importado pelo socialismo marxista.

Na Inglaterra, no começo do século XIX, era o liberal David Ricardo quem tinha o maior prestígio na economia política. Partindo das idéias de Adam Smith, David Ricardo avançou a idéia do valor-trabalho, isto é, a idéia de que a fonte do valor é o trabalho. Alguns autores, porém, tiraram conclusões de certa forma diversas das de David Ricardo, partindo de sua própria estrutura analítica. Um desses grupos foi o dos que ficaram conhecidos como ricardianos socialistas, dos quais o maior foi Thomas Hodgskin (1787-1869).

Hodgskin, embora chamado de “socialista”, defendia coisas que poucos socialistas atuais admitiriam: defendia o livre-comércio, o livre-mercado e a suspensão de todas as regulações. Também era um defensor dos direitos naturais lockeanos, a partir do qual, em conjunção com a teoria do valor-trabalho de Ricardo, ele postulou que havia um total não-pago aos trabalhadores – o que mais tarde viria a ser chamado de “mais-valia” pelos marxistas. Em seu panfleto de 1825, Labor Defended Against the Claims of Capital – intitulado dessa forma para ironizar o título de um panfleto de James Mill chamado Commerce Defended – Hodgskin avaliava que a exploração só era possível através dos privilégios estabelecidos politicamente na seara da produção. O que ele chamava de “capitalismo” não era um regime de livre-mercado, mas de privilégios monopolísticos estabelecidos pelo Estado em benefício de uma plutocracia.

Outros socialismos

Dentro do movimento “industrialista” havia duas facções mutuamente antagônicas que não se perceberam como tal de imediato. Havia a facção liberal e individualista de Charles Comte e Charles Dunoyer, e a facção autoritária e coletivista (apesar dos epítetos, não há nenhum juízo de valor aqui) de Saint-Simon e Auguste Comte.

Os primeiros, como já se mostrou viam uma contradição indissolúvel entre o poder político e a sociedade industrial. Saint-Simon (1760-1825) e Auguste Comte (1798-1857), por outro lado, embora compartilhando o mesmo entusiasmo pela sociedade industrial (e daí a confusão entre as duas tendências “industrialistas”), almejavam uma sociedade onde haveria grandes banqueiros e cientistas no controle do poder político; assim, segundo eles, e usando um slogan que mais tarde viria a ser adotado pelo marxismo, eles queriam substituir o “governos dos homens” pela “administração das coisas”. Ou seja, embora Saint-Simon seja conhecido como “socialista”, o que ele defendia poderia ser caracterizado como uma tecno-plutocracia.

Entre aqueles que são citados como os primeiros socialistas, também deve-se mencionar Robert Owen (1771-1858) e Charles Fourier (1772-1837). Em termos gerais, ambos defendiam a formação de pequenas cooperativas, em que o trabalhador seria recompensado de acordo com seus esforços.

Robert Owen era inicialmente adepto das teorias liberais-utilitaristas de Jeremy Bentham (1748-1832), mas mais tarde, com uma preocupação com as condições sociais da Inglaterra, veio a postular a necessidade da união entre os homens, para que não houvesse mais uma competição entre o trabalho e a máquina, mas uma subordinação desta última. Assim, ele apontava a necessidade da formação de coletivos, de pequenas comunidades cooperativas, em que a produção seria compartilhada. Isso o levou a formar a comunidade de New Harmony nos Estados Unidos, que fracassou.

O fracasso em New Harmony mais tarde levaria Josiah Warren (1798-1874) a asseverar que o problema era a ausência da propriedade privada e da soberania individual, criando assim uma variedade muito peculiar do pensamento: o anarquismo individualista americano. Neste anarquismo, não só há propriedade privada, como também há um livre-mercado; a defesa e a lei são providas por meio de associações voluntárias. A idéia seria aprimorada até o final do século XIX, por pensadores como Stephen Pearl Andrews (1812-1886), William B. Greene (1819-1878), Lysander Spooner (1808-1887) e Benjamin R. Tucker (1854-1939).

Mas voltando um pouco à história convencional do socialismo, temos Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), aquele que primeiro se intitulou anarquista, e que foi influenciado tanto pela facção individualista dos industrialistas quanto pela facção coletivista. A filosofia de Proudhon, embora chamada também de socialista, era cheia de nuances e difícil de caracterizar sob um rótulo só. Em seu livro Qu'est ce que la propriété?, de 1840, que carrega a famosa frase “a propriedade é um roubo”, Proudhon postula que as propriedades existentes eram todas provenientes de privilégios. Ele propõe, então, um novo sistema de propriedade, chamado por ele de possessão, em que não haveria propriedade da terra por donos ausentes; a propriedade estaria intrinsecamente condicionada ao trabalho direto na terra. O mutualismo, sua teoria econômica, propunha um novo sistema de concessão de crédito para sanar a escassez artificial provocada pelos privilégios políticos.

Uma parte das teorias de Proudhon seria desenvolvida nos Estados Unidos, pelos anarquistas individualistas supracitados, que enfatizavam a possessão e o mutualismo. Outra parte de seu pensamento influenciaria o anarco-comunismo de Mikhail Bakunin (1814-1876) e o marxismo.

O socialismo marxista

Eu tentei mostrar algumas das influências óbvias do pensamento de Karl Marx. Evidentemente, o que eu escrevi até aqui não é uma lista compreensiva – mas serve para dar uma noção de que as teorias marxistas não surgiram num vácuo. O liberalismo havia fornecido sua estrutura básica. A economia política de Karl Marx é totalmente baseada na de David Ricardo, influenciada por Thomas Hodgskin e sua teoria da exploração. A formalização das “contradições” de classe que Marx viria a mencionar estavam presentes no trabalho dos liberais Jean-Baptiste Say, Charles Comte e Charles Dunoyer. O pensamento de Proudhon levaria Marx a identificar as “relações de produção”, isto é, à específica estipulação de direitos de propriedade, como um dos fatores que favoreciam o domínio de classes. E os movimentos socialistas anteriores a Marx o levariam a identificar o que ele designaria como “proletariado” como sendo a classe explorada.

Assim, os pilares do pensamento marxista são as seguintes teses: (1) a história da humanidade é a história das lutas de classes – isto é, a luta de uma classe dominante relativamente pequena contra uma classe produtiva relativamente grande, explorada economicamente; (2) a classe dominante é unida por seu interesse em manter seu domínio e maximizar sua apropriação de “mais-valia”; (3) o domínio de classe se manifesta através de arranjos específicos de “relações de produção”, isto é, de certas estipulações de direitos de propriedade; (4) o Estado é a agência de dominação de classe; (5) a classe dominante só pode se manter numa posição exploratória sob uma certa “superestrutura social” – isto é, se houver uma opinião pública favorável; (6) o avanço das “forças produtivas”, isto é, o avanço do domínio exploratório a uma escala cada vez maior (até, eventualmente, uma escala global), faz que hajam sucessivas crises; o domínio exploratório perde sua legitimidade; há um aumento da “consciência de classe”, ou seja, da consciência da classe relativamente mais numerosa de que está sendo explorada, e surgem as “condições objetivas” para uma revolução que acabará com a exploração e estabelerá uma sociedade sem classes.

Segundo Marx, seria o capitalismo laissez-faire que levaria a uma exploração cada vez maior do proletário. Isso ocorreria porque o capitalista apropria-se da “mais-valia” social, isto é, um número de horas de trabalho não-pagas. Ele só seria capaz de fazer isso porque controla o aparato do Estado.

Uma vez que, segundo Marx, o Estado é a própria institucionalização do domínio de classe (é a definição dessa instituição), a revolução proletária deve tomar o aparato estatal. Esse período intermediário, de tomada das estruturas do Estado, foi chamado por Marx de socialismo (embora, como já assinalado, o termo “socialismo” tenha vários significados – sendo inclusive empregado pelos anarco-individualistas americanos para descrever sua filosofia radicalmente anticomunista). Com o controle do Estado, não haveriam mais contradições econômicas sistemáticas e haveria uma absorção da sociedade pelo Estado. Sem contradições econômicas, o Estado não tem razão de existir e, portanto, desapareceria, deixando em seu lugar uma sociedade sem classes – que foi chamada por Marx de comunismo.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Por que as reformas liberais são mais difíceis do que parecem

Nem toda privatização é libertária, embora a privatização em si seja um objetivo libertário. Da mesma forma, não é porque o liberalismo/libertarismo quer tirar poderes do estado que qualquer diminuição do poder estatal necessariamente leva a uma ordem mais justa. Sobre isso, eu fiz um post no orkut há pouco:
Imagine uma sociedade em que há dois grupos (desconsiderando todos os outros fatores). O Grupo A é subsidiado com X/2 reais e o Grupo B com X reais.

Agora imagine que o governo pare de subsidiar o Grupo A. Agora os privilégios relativos do Grupo B aumentaram em relação ao Grupo A. Você diria que os direitos de A são mais ou menos violados agora? Eu diria sem dúvidas: mais.

Mas esse não é um argumento a favor de aumentar os subsídios a A, para que a situação de A e B fique igualada. Eu não sou a favor disso. É um argumento a favor de diminuir os subsídios a B.

Você pode dizer: "Mas isso te faria considerar menos injusto um aumento dos subsídios a A". De fato, mas dizer que algo é menos injusto não é dizer que aquilo não é injusto. Dificilmente esse pode ser um argumento a favor do aumento dos subsídios a A.

Meu ponto é que se deve manter as coisas em contexto. Privatização pode ser uma coisa libertária, mas nem toda privatização é uma coisa libertária. Extinção dos programas estatais é um objetivo libertário, mas nem todas as extinções de programas estatais levam a fins libertários.
Ou seja, não é porque um tipo de subsídio deixa de existir que se estabelece um cenário mais justo. Deve-se manter as coisas em contexto. Quando eu li o trabalho de Chris Matthew Sciabarra pela primeira vez, achei seus comentários sobre dialética (na verdade, a "dialética" dele tem a ver com "contexto") eram triviais. Só mais tarde eu vim a perceber como é difícil você manter as coisas em contexto — e conseqüentemente vim a apreciar mais o trabalho dele. A primeira impressão que você poderia ter ao ler meu exemplo dos grupos A e B era que qualquer eliminação de subsídios estabeleceria uma situação mais justa. Obviamente esse não é o caso.

domingo, 8 de julho de 2007

Herbert Spencer knows it all

Do texto que eu traduzi recentemente de Herbert Spencer, esta passagem especialmente é sensacional. Explica perfeitamente a incapacidade dos liberais de fazerem alianças corretas e de se posicionarem apropriadamente no espectro político:
Das criaturas mais baixas às mais altas, a inteligência progride por meio de atos discriminatórios; e ela continua a progredir entre os homens, desde o mais ignorante até o mais culto. Classificar corretamente — colocar no mesmo grupo coisas que são essencialmente da mesma natureza e em outros grupos coisas que são de naturezas essencialmente diferentes — é condição essencial para uma correta orientação das ações. A partir de uma visão rudimentar, que nos alerta que um grande corpo opaco passa por perto (da mesma forma que olhos fechados virados para uma janela, percebendo a sombra causada por uma mão colocada na frente deles, nos diz que algo está se movendo à nossa frente), avança-se a uma visão desenvolvida, a qual, por meio de combinações de formas, cores e movimentos apreciados com exatidão identifica objetos a grandes distâncias como presas ou inimigos, e assim torna possível melhorar os ajustes de conduta que permitam a obtenção de comida ou a prevenção da morte. Essa progressiva percepção das diferenças e a conseqüente maior exatidão das classificações, que constitui um dos principais aspectos do aprimoramento da inteligência, é igualmente vista quando abandonamos uma visão física relativamente simples em favor da relativamente complexa visão intelectual — a visão que permite que coisas previamente agrupadas de acordo com características externas ou circunstâncias extrínsecas sejam reagrupadas em maior conformidade com suas estruturas ou naturezas intrínsecas. Uma visão intelectual pouco desenvolvida é tão indiscriminatória e errônea em suas classificações quanto uma visão física pouco desenvolvida. Observe, por exemplo, as primeiras organizações das plantas em grupos de árvores, arbustos e ervas: o tamanho, sendo a característica mais facilmente notável, era a base da distinção; e as combinações formadas por essa classificação unia várias plantas extremamente desiguais em suas naturezas e separava outras muito parecidas. Ou, ainda melhor, tome-se por exemplo a classificação popular que coloca juntos, sob o mesmo nome geral, peixes e mariscos, e sob o mesmo subnome, mariscos, coloca juntos crustáceos e moluscos; não, a que vai mais longe e considera como peixes os mamíferos cetáceos. Em parte por causa da similaridade de seus modos de vida aquáticos, em parte por conta da semelhança geral em seus sabores, criaturas de naturezas essenciais muito mais separadas que um peixe de uma ave são associadas na mesma classe e na mesma subclasse.

Agora, a verdade acima exemplificada vale também para as visões intelectuais que têm relação com coisas não prontamente apresentáveis aos sentidos, como, entre outras, instituições e medidas políticas. Pois quando pensamos sobre estas, os resultados de uma inadequada aptidão intelectual, ou de um inadequado desenvolvimento dela, ou de ambos, são classificações errôneas e conseqüentes conclusões incorretas. De fato, a probabilidade de erro aqui é muito maior, uma vez que as coisas com a qual o intelecto se ocupa não admitem exame da mesma simples maneira. Você não é capaz de tocar ou de ver uma instituição política: ela só pode ser conhecida por um esforço construtivo da imaginação. Você também não pode apreender através da percepção física uma medida política: isto requer, igualmente, um processo de representação mental pelo qual seus elementos são agrupados no pensamento e em que a natureza essencial da combinação é concebida. Aqui, portanto, ainda mais que nos casos acima mencionados, uma visão intelectual defeituosa é mostrada por agrupamentos formados por características externas ou por circunstâncias extrínsecas.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

O que é liberalismo? O que é conservadorismo?

No orkut escrevi isto, que me pareceu digno de aparecer aqui:
Questões de rótulos são sempre complicadas, rótulos políticos são os piores. Isso acontece porque em geral as posições políticas não carregam simplesmente um conteúdo "programático", elas não se resumem aos princípios que as pessoas defendem explicitamente, mas englobam também uma série de posições culturais e estéticas.

Por exemplo, nos EUA, há toda uma carga cultural em volta dos rótulos "conservative" e "liberal" (os "liberals" de lá, que são basicamente os social-democratas do resto do mundo). Os conservadores são aquele tipo de gente que vive nos subúrbios, que dirigem SUVs que gastam litros e litros de gasolina, que são carolas de igreja. Os liberais são associados com uma vida urbana, com o vegetarianismo, com uma preocupação com o meio-ambiente, reciclagem, etc. Veja que essas coisas não têm diretamente nada a ver com política. Esse tipo de coisa leva algumas pessoas a fazer livros como este, que falam como um liberal entrou na "vida" conservadora.

Hoje em dia, em geral, talvez por conta do predomínio cultural da esquerda (embora isso seja duvidoso, porque a esquerda não é homogênea), no Brasil as posições dos liberais e conservadores muitas vezes se confundem. Assim, você vê liberais mostrando um certo elitismo cultural, fazendo pouco caso dos problemas dos pobres, sendo extremamente moralistas, etc - coisas tipicamente associadas aos conservadores. Você poderia dizer que esse tipo de postura é o que chamam de "liberal-conservadora".

Por outro lado, existe também um liberalismo progressista (que é a posição histórica dos liberais), mais populista, mais preocupado com os pobres, com os direitos dos gays, etc - ou seja, um liberalismo não-moralista, o que normalmente é desdenhado pelos liberais conservadores, que dizem que "liberdade não é libertinagem" (duh).

Claro que esse tipo de postura não diz nada quanto às posições políticas daqueles que as defendem, mas eu só quis mostrar como essas questões de rótulos são realmente delicadas. Por isso eu faço a seguinte separação (mas eu não sei se os outros da comunidade concordariam com ela):

- Conservadores: a ordem é o valor maior; não fazem uma oposição fundamental ao poder do estado; rejeitam quaisquer mudanças radicais na sociedade, em quaisquer partes da vida do país (seja na esfera econômica, seja na moral) - por esse comprometimento com a ordem, os conservadores são levados a defender a presença do estado onde quer que esteja havendo mudanças que quebrem com a ordem estabelecida. Por isso também você não vê neles uma oposição fundamental aos impostos, às regulações, etc, pois isso pode levar à uma ruptura social que eles não estão dispostos a aceitar. Daí se segue também o elitismo conservador de que eu falei antes também, porque há uma presunção de que a manutenção de um status é mais importante do o modo pelo qual esse status foi obtido.

- Liberais: a liberdade é o valor maior, nem toda ordem é desejável simplesmente por ser um tipo de ordem; a oposição ao poder do estado é mais fundamental, o que leva a uma rejeição mais enfática das atividades estatais e uma relutância maior em aceitar a necessidade das ações do estado; as mudanças em geral são avaliadas de acordo com a conveniência para alcançar o ideal, não como males em si.

Essa é uma divisão psicológica e certamente tem seus problemas de aplicação. Mas é melhor que divisão que diz que "liberais = liberalismo social e econômico; conservadores = conservadorismo social/liberalismo econômico".

E, além disso, não há nenhuma incompatibilidade intrínseca entre o cristianismo (ou mesmo o catolicismo, especificamente) e o liberalismo. Lord Acton, por exemplo, foi um liberal radical católico. No cristianismo em geral, eu citaria os batistas, que sempre foram radicalmente anti-políticos (são até hoje) e foram um dos grupos que mais defenderam (senão o que mais defendeu) a separação entre o estado e a religião.

domingo, 1 de julho de 2007

Um diamante do tamanho do Ritz

Jasmine, a filha mais velha, era parecida com Kismine - exceto pelas pernas ligeiramente arqueadas e pelos pés e mãos grandes -, mas era completamente diferente em temperamento. Seus livros favoritos contavam histórias de garotas pobres que sustentavam pais enviuvados. John soube por Kismine que Jasmine nunca se recuperara do choque e desapontamento provocados pelo fim da Guerra Mundial, porque estava prestes a ir para a Europa como especialista em cantinas de acampamento. Ficara até deprimida por algum tempo, e Braddock Washington tomara medidas para promover uma nova guerra nos Bálcãs, mas Jasmine viu uma foto de soldados sérvios feridos e perdeu o interesse pelo negócio.
F. Scott Fitzgerald, 1922