domingo, 9 de junho de 2013

O liberalismo é politicamente incorreto?

Prêmio Donald Stewart Jr. 2ª semana

Tema: A fragilidade da democracia em face da ditadura do politicamente correto

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O politicamente correto pode ser definido como uma tentativa de mudança social através de uma mudança do léxico. O politicamente correto, portanto, tem um princípio verdadeiro, no sentido de que identifica que a língua não é neutra; a língua, antes, também é um instrumento criador da realidade social. Como afirma o linguista Luiz Antônio Marcuschi, “a língua é a forma de tratar a sociedade e não de retratar a sociedade”.

Essa ideia de que a língua traz consigo juízos de valor a respeito da realidade foi bem encapsulada pelo romance 1984 de George Orwell. Nele, o autor imagina uma realidade em que o governo foi capaz de substituir a língua usada pelas pessoas por uma “novilíngua”, que direciona seus pensamentos a uma aprovação impensada de tudo aquilo que vem do estado, legitimando e realizando um ideal de sociedade. O linguista José Luiz Fiorin sintetiza essa característica da língua:

“A linguagem humana é essa faculdade de construir mundos. [...] A linguagem dá ao homem uma possibilidade de criar mundos, de criar realidades, de evocar realidades não presentes.” (XAVIER e CORTEZ, 2003)

Logo, Orwell estava correto em pensar que a língua podia criar uma realidade. Da mesma forma, o atual movimento politicamente correto está certo em pensar que uma mudança nas palavras pode remover uma carga depreciativa da língua em relação a determinados grupos de indivíduos e, assim, mudar a realidade social.

Essa preocupação com a igualdade num sentido sócio-político, creio eu, é uma preocupação peculiarmente liberal. O liberalismo pode ser definido como uma linha político-ideológica que pretende distribuir o poder político o mais amplamente possível. Isso não significa que não haverá desigualdades de renda, por exemplo, mas significa que, socialmente, os indivíduos devem possuir o mesmo status.

Os liberais clássicos acreditavam que isso culminava na igualdade dos indivíduos perante a lei. Porém, eu acredito que essa liberdade seja ainda insuficiente: o liberalismo também deve se preocupar com as garantias de que os indivíduos desfrutam de que sua liberdade não será violada. A isonomia legal requer um alicerce ideológico, no mínimo.

O que importa, além da posição formal de igualdade legal, é a posição de poder político. É necessário que todos os indivíduos sejam vistos e tratados como parte da sociedade política. Somente a isonomia legal não garante uma efetiva participação na sociedade política e um respeito às liberdades individuais; isso só pode ser garantido por uma aceitação ideológica da população de que não existem grupos inferiores de pessoas.

É essa a maior força e a maior fraqueza do politicamente correto. Força, porque a única forma de os indivíduos viverem numa ordem liberal é com o respeito e a aceitação política dos outros. Para que o liberalismo exista, deve imperar um sentimento de igualdade fundamental entre os indivíduos. Isso passa por uma reavaliação dos hábitos linguísticos; por um esforço conjunto de não-ofensa e, por que não?, inclusividade.

A fraqueza do politicamente correto está no fato de que ele crê poder mudar a realidade social somente com um abrandamento linguístico, ingenuamente. Ademais, o politicamente correto facilmente serve a um fechamento à la 1984 das possibilidades de discurso crítico. Para o governo, é conveniente cooptar a agenda politicamente correta.

Infelizmente, esse é um risco que se corre em qualquer empreendimento político. Não há garantias. Mesmo com os excessos do politicamente correto, acredito que em seu núcleo haja um sentimento legitimamente liberal. Acredito também que os liberais não devem deixar sua mensagem de respeito, tolerância e igualdade humana se diluir num embate sem sentido com o que consideram censura de pensamento.

A economista Deirdre McCloskey considera que o capitalismo só floresceu após uma aceitação social das virtudes do empreendedorismo (MCCLOSKEY, 2007). Da mesma maneira, o liberalismo só pode florescer com uma aceitação social de que todos merecem respeito. Liberais não precisam ser politicamente incorretos nem alienar amplos setores sociais com seu discurso.

Referências:
XAVIER, Antonio Carlos; CORTEZ, Suzana (Orgs.). Conversas com linguistas: virtudes e controvérsias da linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2003, 200p.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 416p.
MCCLOSKEY, Deirdre. The Bourgeois Virtues: Ethics for an Age of Commerce. Chicago: University of Chicago Press, 2007, 634p.