terça-feira, 16 de julho de 2013

O estado de direito como sistema de poder

Este foi o texto que foi premiado no Prêmio Donald Stewart Jr. 2013. Ficou em terceiro lugar e vai me levar para uma turnê pelos EUA, para seminários de verão do Cato Institute e da Foundation for Economic Education.

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No filme Rain Man (1988), Raymond Babbitt (interpretado por Dustin Hoffman) utiliza a técnica de contagem de cartas para ganhar os jogos para seu irmão, Charlie Babbitt, personagem de Tom Cruise. A cena é emblemática porque Raymond não viola as regras que existem de fato. Agindo dentro do que é permitido, Raymond começa a vencer demais. Com isso, os seguranças da casa começam a vigiá-lo.

Uma analogia dessa cena pode ser feita com o que se convencionou a chamar de estado de direito – isto é, um estado no qual, teoricamente, o regime legal não está sujeito aos caprichos de um indivíduo ou grupo de indivíduos; onde as leis são aplicadas igualmente e ninguém está acima delas. O estado de direito se trata de uma meta-regra formal para aplicação de outras regras; estipula que há um estado de “leis”, mas não estabelece qual é o conteúdo dessas leis.

É aí que se encontra a maior fraqueza da conceituação do estado de direito e também um dos motivos por que ele não se mostra capaz de frear os avanços dos governos sobre as liberdades individuais: estabelecer que um regime seja “de leis e não de homens” não estabelece, acessoriamente, quem são os homens que efetivamente produzem as leis.

As leis, para os indivíduos comuns, são dadas. A população, de forma geral, tem muito pouco controle sobre as leis e regulamentos sob os quais vivem (por diversos motivos que fogem ao escopo deste texto, mas muitos dos quais são corretamente identificados pelos expoentes da escolha pública1). As pessoas recebem um dado sistema social e jurídico e a ele têm que se adaptar.

Como no caso de Raymond Babbitt, o que se verifica é que, se o indivíduo comum começa a “vencer” demais, as regras do jogo, que estão fora da sua alçada de influência, são modificadas. Raymond, sem violar nenhuma regra, fez com que as regras fossem modificadas. Os indivíduos, da mesma forma, estão sujeitos a um sistema que frequentemente foi desenhado para manter um sistema de sujeição e de domínio governamental e das elites privilegiadas. Caso os indivíduos encontrem alternativas a esse esquema de poder, as regras “da casa” são modificadas para permitir que a situação de vulnerabilidade dos indivíduos dentro do sistema social seja mantida.

Em 1984, de George Orwell2, essa ideia é levada a extremos. No país retratado no romance, Oceania, não existem leis escritas. Winston Smith, o personagem principal, ao escrever em seu diário, tem plena convicção de que será preso ao escrever em seu diário. Sua convicção advém do fato de que, mesmo sabendo que o que ele faz não é, objetivamente, “ilegal”, as leis podem ser torcidas de forma a tornar punível qualquer comportamento que coloque o indivíduo em situação de descolamento do poder estatal. A ideia do estado de direito dá a esse processo cru uma aparência de legitimidade e de representatividade. Pode-se dizer que o estado de direito ataca uma parte do problema, mas deixa de fora o essencial: estabelece que leis sejam universalmente válidas e aplicáveis, mas não é um conceito equipado para nos informar quais são essas leis universais.

Tal é o carma de diversos países da América Latina. Com sua tradição de paternalismo e caudilhismo, os países latino-americanos desfrutavam de razoável estabilidade de seu “estado de direito”. Porém, era um estado aparelhado pelas elites oligárquicas, que definiam sistematicamente quais deveriam ser as leis. E a aplicação universal das leis não importa se elas forem desenhadas para beneficiar um pequeno grupo desde sua concepção.

Esse rapto do estado na América Latina não só gerou distorções políticas e econômicas gigantescas, mas gerou grande ressentimento por parte da população, dando munição ideológica para movimentos demagógicos de esquerda como os de Hugo Chávez e Evo Morales (incidentalmente, Chávez e Morales atacaram o problema acabando com o estado de direito, ao invés de cortar o poder do estado de estabelecer privilégios legais).

Por isso, a reflexão de Hayek segundo a qual o estado de direito é “uma regra a respeito do que deve ser a lei”3 só é válida porque o estado de direito, sem um conteúdo legal liberal, é vazio. É apenas uma casca que pode validar qualquer regra e, assim, regras que sejam efetivamente tirânicas.

Referências

1 Cf. BUCHANAN, James. Cost and Choice: An Enquiry in Economic Theory. Indianapolis: Liberty Fund, Inc. 1999.
2 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
3 HAYEK, F. A. The Constitution of Liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1978.