domingo, 19 de janeiro de 2014

Não peça a ninguém para ser livre


"Learn to discai." - Aristóteles (citação apócrifa)

Perguntaram-me por que é que os liberais estão sempre se justificando, sempre tentando arranjar argumentos e muletas para as próprias posições. "Por que eu devo me justificar? Por que eu tenho que dar motivos para o assassino não me matar? Por que eu tenho que dar motivos para o ladrão não me roubar?" Put it another way, por que os liberais estão sempre na defensiva?

E, de fato, parece uma dúvida pertinente: afinal, o estado "natural" não deveria ser a liberdade e o oposto (o estatismo, a violência etc) é que deveria ter que se justificar? Oftentimes, however, o que ocorre é justamente o oposto: a posição opressiva, estatista, violenta (etc) é internalizada como padrão de normalidade e a opção livre, liberal, libertária tem o ônus de se provar como viável, justa e virtuosa.

Isso se manifesta claramente nos argumentos cada vez mais nerds empregados pelos liberais, que são forçosamente mutados em political philosophy/economics geeks para conseguir defender cada uma das posições de sua ideologia, com alegações e dados elaborados, argumentos surpreendentes, análises minuciosas.

"E por que eu tenho que conhecer cada um desses argumentos? Por que eu tenho que tratar a minha liberdade como condicional à vontade alheia?"

É verdade, você não tem. E é realmente frustrante sentir o ônus de dar argumentos cada vez mais sofisticados em prol de uma posição tão intuitiva quanto o liberalismo. O ônus de se justificar, efetivamente, recai sobre quem é contra o liberalismo.

Como eu sei disso? Porque eu sou um political philosophy geek que foi pesquisar argumentos cada vez mais complexos, profundos e nerds para justificar a própria posição.

A presunção da liberdade

O filósofo político Anthony de Jasay também tinha pouca paciência para os arroubos liberais "justificacionistas". Para ele, era perda de tempo tratar qualquer ética política como cognoscível; pouco fazia sentido os liberais tentarem estabelecer suas posições como valores. Segundo Jasay, isso já colocava o ônus da prova sobre a liberdade. De fato, o contrário é que deveria valer: quem deve provar como válidos os seus valores são os opositores da liberdade.

Jasay elaborou suas ideias em livros e artigos com nomes absolutamente massa como Against Politics e Political Philosophy, Clearly. Segundo ele, a presunção de liberdade existe como pressuposto lógico de uma discussão política racional. Qualquer ato deve ser permissível a não ser que sejam apresentadas razões suficientemente convincentes para que ele seja proibido ou condenado. Nas palavras do próprio:

"[A] presunção [de liberdade] não é uma questão de opinião ou de avaliação que pode ser debatida e negada. É uma consequência lógica estrita da diferença entre dois significados do teste da validade de afirmativas - a saber, o falseamento e a verificação.

"Um número indefinido de razões potenciais pode existir para coibir um ato que você deseja executar. Algumas delas podem ser suficientes ou válidas, outras (talvez todas) podem ser insuficientes ou falsas. Você pode falseá-las uma a uma. Não importa quantas você conseguir falsear, porém, algumas ainda restarão e você jamais poderá provar que não existe mais nenhuma. Em outras palavras, a afirmativa de que um ato em particular seria prejudicial não é falseável. Uma vez que não é possível falsear essa afirmativa, colocar sobre você o ônus da prova de que o ato seria inofensivo não faz sentido, é uma violação da lógica elementar. Por outro lado, quaisquer razões específicas que possam ser avançadas contra o ato em questão são verificáveis. Se tais razões existirem, o ônus da prova está sobre elas, para que se saiba se algumas ou todas essas razões são efetivamente suficientes para justificar uma interferência no ato." (Liberalism, Loose and Strict)

Jasay, assim, coloca os liberais em posição privilegiada de ataque, já que são seus opositores que têm o requisito lógico de fazer o heavy-lifting em filosofia política. Isso, efetivamente, torna os liberais livres (!) para buscar seus objetivos mais claramente.

Especificamente, Jasay afirma que a velha dependência liberal dos direitos que as pessoas (para ele, supostamente) têm solapa os próprios argumentos liberais; porque os direitos sempre focam em permissões, o que implica que a regra geral é que tudo o mais é proibido, a não ser pelas exceções listadas sob a alcunha "direitos". Isso tem um profundo efeito psicológico nas pessoas, que retroalimenta uma cultura de submissão e subserviência, que busca sempre justificar as liberdades que existem, ao invés de tentar provar que as proibições são necessárias.

Ágora, anarquia, ação!

O princípio de Jasay também tem profundas implicações para estratégias políticas. Como o número de proibições, regulações e impostos seja grande, ele é finito, então não apenas é possível trabalhar intelectualmente para questionar a validade deles, mas também é possível tomar ação direta para se livrar dessas restrições.

Samuel Edward Konkin III, ou SEK3, escreveu em 1980 o Manifesto do novo libertário, traduzido (em retrospecto, um tanto porcamente, é verdade) por yours truly em 2007. E, embora SEK3 fosse um rothbardiano tradicional em filosofia política, que cria em direitos naturais lockeanos, sua estratégia se encaixava perfeitamente no espírito da proposta de Anthony de Jasay: é o estado que deve ser questionado, não a liberdade.

SEK3 então desenvolveu alguns princípios para serem aplicados por libertários radicais para trazer a liberdade para dentro de suas vidas, excluindo a voz do estado e suas restrições, regulações e portarias de sua posição de influência. Especificamente, SEK3 advogava um empreendedorismo libertário que atuasse no mercado negro - que, para o rapaz, não implicava em violência, mortes ou falta de regras, mas, sim, em agir fora da influência governamental.

Konkin chamou sua ideia de agorismo, referência ao local de reuniões e assembleias nas polis gregas onde se localizavam os mercados abertos. Eu, porém, acho que o nome agorismo possui um efeito semiótico interessante quando traduzido para o português: ele implica que a liberdade deve ser buscada agora e que ninguém deve pedir licença nem se justificar por ser livre.

A new society, within the shell of the old

Kevin Carson foi alguém que se interessou pelo que Konkin teorizou. Seus livros, mas especialmente The Homebrew Industrial Revolution falam sobre micromanufaturas, microindustrias e sobre a economia informal; falam, isto é, daquilo que realmente torna os indivíduos livres de forma prática e direta. De fato, atualmente há uma série de iniciativas que são frequentemente desafiadas pelos poderes estabelecidos: o Bitcoin, que está sendo fortemente combatido pelos governos ao redor do mundo que não querem perder seu monopólio sobre a moeda; o AirBNB, que sofre com legislações restritivas em todo o mundo, avançadas por quem está em posições de privilégio com seus imóveis (notoriamente em Nova York); aplicativos de caronas, que sofrem com o lobby das empresas públicas de ônibus e com as cooperativas de taxistas; the list goes on.

Isso, porém, é menos um problema do que parece. Porque são iniciativas assim que colocam o poder em cheque, que o colocam o estado numa posição defensiva e que mostram para todos a injustificabilidade de suas interferências. A liberdade está sendo presumida, não se pretende que não temos direito a ela até provarmos o nosso valor.

Jasay está plenamente consciente das implicações radicais de suas ideias e, de fato, ele passa grande parte do tempo em seus livros examinando o conceito do que ele chama de ordered anarchy, ou anarquia organizada. Seu princípio, efetivamente, também justifica o velho adágio anarquista de que devemos construir uma velha sociedade dentro da casca da antiga. Ele mesmo conclui sobre os prospectos das ideias liberais:

"Apesar da lógica da tese de que o estado seja intrinsecamente desnecessário e da atratividade da anarquia organizada, é difícil imaginar que valha o esforço de defender a abolição do estado. Vale a pena, contudo, constantemente desafiar a legitimidade do estado. [...] O que o [...] liberalismo pode almejar é combater a intrusão estatal passo a passo nas margens, onde algum espaço privado ainda pode ser preservado e onde talvez mais espaço possa ser reconquistado."

Portanto, não peça permissão nem alvará. Just take it.