sábado, 10 de novembro de 2012

A estética do desenvolvimentismo

Joaquim Murtinho, quando discutiu com Rui Barbosa no final do século 19, foi chamado de "agriculturalista" por não defender os subsídios à "manufatura nacional".

Eugênio Gudin, nos anos 40 e 50, recebeu o mesmo epíteto dos desenvolvimentistas quando se negou a defender estímulos à indústria.

Celso Furtado podia não ter os melhores argumentos, mas venceu a batalha midiática.

Eu diria, inclusive, que venceram suas ideias estéticas. A ideia de que, de alguma forma, produzir microchips é intrinsecamente melhor do que produzir bananas.

Mas não é. Toda a obra dos economistas clássicos como Adam Smith e David Ricardo pretendia desmistificar essa ideia de que produzir bens tais era melhor que produzir bens quais. O que importam são as vantagens comparativas, não as vantagens absolutas.

Toda a obra dos desenvolvimentistas, de Celso Furtado a Raúl Prebisch, é uma denúncia da agricultura. Para eles, não subsidiar a indústria era o mesmo que querer que o país para sempre fosse agrícola (e "agrícola", no vernáculo cepalino, é igual a "atrasado").

Países desenvolvidos são, em geral, países mais industrializados. Daí, aparentemente, os desenvolvimentistas deduziram que, para os países se desenvolverem, eles precisam "estimular" suas indústrias e desestimular atividades de "dependência" como a "agricultura de exportação".

Essa é uma inversão do nexo causal.

Países ricos não o são por serem industriais; na verdade, são industriais por serem ricos. Eles, quando se desenvolviam, puderam restringir o próprio consumo e aplicar seu capital em outras linhas de produção (no caso, a indústria e os serviços). Se os governos desviam capital de uma produção para a outra, o que ocorre é que são produzidos bens menos necessários ao consumidor. O país fica mais pobre.

Hoje o desenvolvimentismo voltou à moda. Temos empenho diuturno do Governo Dilma, com Guido Mantega e sua turma, de substituir importações e incentivar a indústria brasileira (através de gordos empréstimos do BNDES).

Como sempre, nós voltamos para a velha jequice de que temos que produzir petróleo, ou fibra ótica, ou carros, ou computadores dentro do Brasil porque, aparentemente, se eles vierem de fora não têm valor.

Mas convém lembrar que nenhuma dessas coisas é necessariamente mais valiosa do que bananas.

É uma verdade inconveniente, mas os liberais desde David Ricardo têm a ingrata tarefa de repeti-la.

Câmbio: paixão nacional maior que futebol, cerveja e carnaval

Saindo semana passada, dois conhecidos começaram a comentar comércio internacional. Um deles comentou em tom de aprovação que "o Brasil não manipula o câmbio como a China", alegando ainda que a China cresce "trapaceando" ao forçar a desvalorização do seu câmbio.

Eu creio piamente que o câmbio já é parte do folclore nacional. O câmbio deveria ser inserido como personagem mágico brasileiro, mais famoso e culturalmente relevante que o saci, o curupira, o boitatá e a mula-sem-cabeça. Se o saci cria um redemoinho por onde passa, o câmbio é capaz das maiores proezas; basta se desvalorizar para melhorar o padrão de vida de toda a população ao custo de todos os outros. Como Bastiat diria, os governantes ficam fascinados com o fato de que se pode aumentar a riqueza tão facilmente!

O que infelizmente não é o caso.

O câmbio é só uma razão de troca entre duas moedas. Ele tende a flutuar próximo ao poder de compra relativo das duas moedas (isto é, se 1 real compra X coisas e 1 dólar compra 2X, em média 2 reais comprarão um dólar). Expliquei essa dinâmica aqui.

E por que parece que os países se beneficiam tanto ao desvalorizar sua moeda?

Para desvalorizar a própria moeda, os governos imprimem dinheiro. A moeda nova chega primeiro no mercado cambial e aos poucos chega ao resto da economia. Com a moeda desvalorizada, os bens nacionais ficam mais baratos no exterior e os importados ficam mais caros dentro do país. Os exportadores se beneficiam porque seus bens ficam mais "competitivos", quem paga a conta é todo o resto da população, que agora tem que comprar bens mais caros.

Como o câmbio é só uma razão de troca entre duas moedas que compara o poder de compra de ambas, aos poucos ele se estabiliza. Quando o dinheiro "novo" chega em toda a economia, os bens nacionais deixam de ser comparativamente mais baratos em relação aos estrangeiros. Ou seja, uma política de desvalorização do câmbio requer uma expansão permanente da oferta monetária.

Por que, então, dizem que a China se beneficia tanto de câmbios forçados para baixo?

Ranço mercantilista. O que é visível são os efeitos da desvalorização sobre os beneficiados. No Brasil, a FIESP está sempre implorando uma boquinha, uma desvalorizaçãozinha. Os benefícios de um câmbio normal e estável, porém, são dispersos.

Em resumo, não é possível aumentar a riqueza de um país via câmbio. O que é possível é subsidiar os exportadores deixando os produtos estrangeiros menos atraentes. Isso, porém, é insustentável no longo prazo.

É isso que explica também, o Teorema Fundamental do Câmbio, criado pela própria FIESP: Qualquer que seja a taxa de câmbio, ela sempre precisa de uma desvalorização de pelo menos 20%.

O que é engraçado, mas também é correto do ponto de vista dos exportadores. O único jeito de a desvalorização cambial continuar tendo efeito é com uma desvalorização eterna.

O que ainda não explica, contudo, o fascínio com política cambial no Brasil, que faz com que em saídas aleatórias pessoas comecem a discutir o assunto como experts e passem diagnósticos precisos sobre a economia mundial baseados nessa variável.

A ironia dos latifúndios indígenas

Os guaranis-kaiowás desmentiram seu suicídio coletivo, mas isso não impede que milhares de pessoas se manifestem no Facebook pela demarcação de suas terras. Talvez, agora, tenham que fazer isso com seus nomes reais, removendo o "Guarani-Kaiowá".

Segundo o Censo 2010, 12,5% do território brasileiro é reservado a 517,4 mil indígenas. A população total do Brasil é de cerca de 190,7 milhões de pessoas. Subtraindo cerca de 500 mil pessoas, assim, 87,5% do território brasileiro é dividido entre 190,2 milhões de indivíduos. Em média, portanto, os índios têm uma densidade populacional em seus territórios quase 50 vezes menor que o resto da população brasileira. Obviamente a distribuição da população sobre o território não é uniforme, mas essa disparidade tão grande deve indicar algo.

A grande ironia do discurso da demarcação das terras indígenas é que a maioria de seus defensores são radicalmente contra os latifúndios - alguns "maiores que países europeus". Mas, incrivelmente, são favoráveis à privatização de vastos territórios em benefício de populações proporcionalmente muito pequenas.

Se o problema do Brasil é a concentração de terras (e eu creio que, de fato, esse seja um problema sério, uma distorção grave com várias causas), esse problema persiste com a concentração de terras para os índios.

Pode-se dizer que, no caso dos índios, alguns princípios são mais caros que a oposição às grandes propriedades - que, no caso, devemos defender a cultura indígena, que eles têm direito às terras por um ou outro motivo histórico. Porém, continua muito difícil defender a demarcação dessas terras tão gigantescas. Principalmente pelo fato de que os índios que vivem em reservas são inimputáveis. Os índios, assim, podem manejar suas terras da forma que querem sem preocupação com repercussões legais.

Sou simpático ao reconhecimento das terras indígenas, mas elas devem ser feitas em regimes comuns de propriedade. Os índios devem ser donos dos locais que ocupam e trabalham, mas não de nacos de territórios enormes de mata virgem. Para defender os índios e suas culturas não há nenhuma necessidade prática de tratá-los como incapazes ou fadados pelo destino à silvicultura.

Qualquer argumento contra a concentração de terras é duplamente contrário à demarcação política de terras indígenas. Dizer o contrário é auto-ilusão.

Qual é a educação que entra nos 10% do PIB?

A proposta de 10% do PIB para a educação ganhou popularidade e já até foi aprovada pela Câmara. Porém, não vai ser cumprida.

Dez por cento de destinação obrigatória do PIB é inviável para o próprio país e para o orçamento federal. Considerando que o porcentual destinado à educação atualmente seja de 5,70% do PIB, o governo terá que aumentar a carga tributária em 4,3%, no mínimo. Isso levaria os impostos para cerca de 40-42% do PIB. Isso ou vai custear os novos investimentos com dívida pública, que são impostos futuros. A última alternativa seria cortar outros gastos para abrir espaço para o orçamento da educação - mas o histórico recente do governo brasileiro não dá muitas esperanças.

Claro que o investimento per capita não deve aumentar de fato proporcionalmente aos 4,3% adicionais, devido à diminuição da atividade econômica advinda do aumento de impostos.

Efetivamente, os 10% do PIB para a educação são um slogan elevado à categoria de política pública. Nenhum país do mundo gasta tanto nessa área. A Alemanha gasta 4%, a Coreia do Sul gasta 4,5% e o Canadá, 4,6%. O problema, obviamente, não é o porcentual. De acordo com o quadro de gastos da OCDE, o investimento proporcional ao PIB, inclusive, tem baixa correlação com qualidade educacional.

Quando todos esses fatos são apontados, os defensores do aumento de gastos tendem a dizer que, de fato, o que importa não é o porcentual, mas o volume total de investimentos. Porém, aí fica bem mais difícil defender suas políticas: é complicado dizer que o Brasil, com suas limitações econômicas, deva investir o mesmo que um país de primeiro mundo como a Alemanha, simplesmente porque o Brasil é pobre e a Alemanha não.

***

Agora, nada disso é o que me intriga mais na questão dos 10% da educação. A parte que eu considero mais interessante é o completo desprezo pela educação privada no cálculo da porcentagem.

Escolas privadas contam? Dentro dos 10%, entram os gastos em universidades privadas? (Imagino que, no mínimo, os subsídios do governo federal ao ensino superior privado entrem no orçamento de edcuação. Mas e quanto a quem não depende do ProUni?)

Outro ponto: cursinhos entram no gasto com educação? Claramente são gastos educacionais, embora não no perfil que as pessoas geralmente têm em mente ao falar de "educação". No Brasil, inclusive, cursinhos para concursos públicos são uma febre - e não dá para dizer que não tenham nenhum conteúdo educacional, a não ser que se admita que os concursos públicos não testam nenhum conhecimento (caso em que deve-se defender o abandono dos concursos e a adoção de outro método de avaliação para cargos públicos).

E cursos profissionalizantes privados? Cursos de música? Academias de ginástica e artes marciais (educação física, obrigatória nas escolas)?

Nada disso, aparentemente, conta no cálculo dos 10%. Não é surpreendente, mas é no mínimo curiosa essa ideia de que a única educação que existe é a educação estatal.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O liberalismo de ocasião dos anti-petistas

Aproveitando o tema das eleições, quero colocar algumas questões em perspectiva.

Como liberal, a cada dois anos, os anti-petistas querem me convencer de que devo votar na oposição formal do PSDB e agregados, em contraposição à corrupção e projeto de totalitarismo do PT.

Eu rejeito essa visão. O PSDB foi jogado numa posição oposicionista por acaso histórico do Brasil. Na prática, seu fundamento ideológico é o mesmo do Partido Democrata americano. Um partido "progressista tecnocrático". Isto se contrapõe ao PT somente no sentido de que o PT é um partido com militância e "político" (ao invés de tecnocrata), com bases sindicalistas. Estruturalmente, em relação ao papel do estado, os dois partidos não diferem.

E, na prática, os anti-petistas que querem atrair os liberais têm muita dificuldade para citar políticas tucanas que os diferenciem das petistas. Projetos fascistas como o da Cidade Limpa e o do ostracismo gradual dos fumantes são entusiasmadamente apoiados pelo PSDB.

Em geral, os anti-petistas acabam se agarrando na boia da corrupção. O que não me parece ser uma base muito segura, já que eu vejo a corrupção como sistêmica e não como partidária. De fato, nas estatísticas de corrupção, o PSDB é um dos líderes, embora o PT esteja nas manchetes atualmente com o julgamento do mensalão. Não acho que haja diferenças substanciais.

Por último, a campanha anti-PT tenta jogar no colo do PT a "incompetência administrativa".

Isso é assunto para outro post, mas me parece que esse seja o ponto crucial de divergência do PT e do PSDB. O PSDB ainda se apega a conceitos como "competência administrativa" na esfera governamental, enquanto o PT, de modo geral (é claro que não em todos os setores) repudia essa argumentação.

E eu também. A política estatal é feita de escolhas, e o que diferencia os partidos e os políticos não é uma mera capacidade de trabalho pessoal. Fingir que o que separa políticos é competência apenas é um desserviço ao debate político.

Dados todos esses motivos, não é de se admirar que a campanha anti-PT não tenha tido muito sucesso em enfileirar os votos liberais.

***

Finalmente, vou falar também sobre quais, na minha opinião, devem ser algumas das prioridades liberais num debate político.

Noto que muitos daqueles que fazem campanha contra o PT (e que querem atrair o pequeno voto liberal para a sua causa) mencionam muito o Bolsa Família e seus efeitos deletérios sobre a sociedade.

Beleza.

De acordo com a campanha do Governo Federal, 800 mil famílias são atendidas pelo Bolsa Família. 800 mil famílias equivalem a 3,2 milhões de pessoas. Vou estimar que metade desse universo de pessoas vote. Seria 1,6 milhões de pessoas. Estou sendo caridoso - a quantidade de pessoas que votam dos recipientes do Bolsa Família certamente é menor do que isso. Ou seja, é 1,33% do eleitorado nacional.

Num universo de 120 milhões de eleitores, numa eleição majoritária, 1,33% dificilmente fará a diferença. Claro, pode fazer. Numa eleição muito próxima, pode ser que esse 1,33% eleja um presidente diferente. Mas historicamente não é o que ocorreu. Em 2010, Dilma Rousseff venceu a eleição com uma diferença de mais de 12 milhões de votos sobre Serra (56% a 43% dos votos válidos). Já Lula, em 2006, teve mais de 20 milhões de votos em relação ao perdedor Geraldo Alckmin (61%-39%). Por outro lado, mesmo com o Bolsa Escola e os outros programas que foram juntados sob o rótulo de Bolsa Família, FHC não conseguiu fazer o sucessor em 2002.

Dá para dizer, pelo menos, que o problema maior não é numa votação majoritária, mas na votação legislativa. Porém, eu diria que aí o problema se agrava. 1,33% do eleitorado numa eleição legislativa nacional não é capaz de alterar substancialmente votações proporcionais. Principalmente porque os votos estão espalhados por todo o Brasil (embora um pouco mais concentrados na região Norte e Nordeste).

[Update: Me alertaram no Facebook que, na verdade, o Bolsa Família contempla 13 milhões de famílias, e não apenas 800 mil. Se fossem 800 mil apenas, a quantia per capita destinada ao programa seria altíssima - o que eu não achei um grande problema, já que não é novidade o estado gastar quantias absurdas para fazer seus projetinhos.

Verificando no site do Ministério do Desenvolvimento, é exatamente isso que se diz. Na fonte que utilizei antes, só estava discriminada uma das modalidades do BF (são várias).

Isso enfraquece bastante o meu argumento, porque 52 milhões de pessoas contempladas passa a ser um universo muito grande e, considerando que metade dessas pessoas votem, 26 milhões de pessoas é uma massa eleitoralmente muito decisiva (21% dos eleitores).

Claro que permanece a questão de quão efetiva essa ajuda é em arrebanhar o eleitorado - e qual a efetividade em relação aos subsídios ainda maiores a outros setores.

Meus outros argumentos permanecem.]


Por último, o Bolsa Família não é financeiramente tão relevante quanto o governo ou os oposicionistas dão a entender. O orçamento do programa para 2012 é de 19,6 bilhões de reais.

Isso é uma gota no oceano.

Só no governo federal, há cerca de um milhão de empregados. Para os seis primeiros meses de 2012, as despesas com pessoal só no Governo Federal ultrapassaram a casa dos 100 bilhões de reais. Considerando décimo terceiro e outros encargos de final de ano, os gastos ficarão no mínimo em 200 bilhões de reais (mas mais provavelmente na casa dos 230-250 bi).

Ou seja, o Bolsa Família, atendendo 3,2 vezes mais pessoas gasta 10 vezes menos do que a própria folha salarial do estado brasileiro.

Pode-se dizer que os funcionários do governo trabalham e geram valor. Essa é uma discussão à parte, mas dá para negar que esses funcionários do estado, com salários em média muito altos, têm também muito mais probabilidade de viciar uma eleição?

Até porque, no final das contas, o estado precisa que esses funcionários trabalhem, e seu poder de barganha é gigantesco.

Em comparação, o Tesouro Nacional tem um "aporte planejado" de R$ 45 bilhoes para o BNDES em 2012. Tudo isso é crédito subsidiado, canalizado para rentistas. Quem não tem os contatos tem que pegar empréstimos no mercado mesmo.

Outra comparação: o orçamento das universidades federais no Brasil em 2012 é de R$ 27,5 bilhões. Mais de 7 bilhões de reais mais que o orçamento do Bolsa Família, para 63 universidades. Não consegui encontrar o número de alunos atendidos, mas acredito ser fácil perceber que essa é uma transferência de renda muito maior do que o BF e tem muito menos oposição.

Eu poderia continuar.

Mas meu ponto é claro. É evidente que o Bolsa Família tem efeitos deletérios: por atender uma parcela da população extremamente carente, ele incentiva que essas pessoas tenham filhos para que a renda familiar aumente. Acho que o efeito marginal do Bolsa Família seja relevante, nesse caso. Porém, no cômputo total, analisando o impacto no sistema eleitoral do Bolsa Família e o impacto no orçamento do governo, esse é um programa que está longe de ser a prioridade para desmanche dos liberais.

Portanto, em questões fiscais, na minha opinião as prioridades liberais são as seguintes:
1) Desmanche das bolsas-empresário no Brasil. O BNDES, equivalente a um roubo em larga escala, deve ser implodido o quanto antes. Subsídios agrícolas e "políticas industriais" devem ser abandonados.
2) Subsídios à classe média devem ser cortados. Isso inclui editais artísticos, bolsas de estudos e, principalmente, concursos públicos.
3) Finalmente, subsídios à população mais pobre, o que inclui o bolsa-família.
Inverter essa ordem me parece ser demagogia. Parece ser um desejo de crucificar uma parcela da população enquanto o resto fica na varanda de casa tomando água de coco.

Há outras questões ainda mais urgentes para o liberalismo (como questões sociais como as drogas e o protecionismo comercial, que tiraria milhões da pobreza em um tempo muito pequeno), mas se formos falar sobre as distorções dos subsídios governamentais, a ordem de importância está mais do que clara.

A cruzada anti-voto nulo

Toda eleição é a mesma novela, o candidato de alguém perde e a culpa é de quem anulou o próprio voto. Se não fossem esses votos nulos, teríamos vencido! O que basicamente significa dizer que o candidato teria vencido a eleição se tivesse vencido a eleição.

A questão dos votos nulos (e dos brancos, atualmente, que são idênticos) é que eles diminuem o universo de votos contados. Ou seja, o voto nulo de um indivíduo na prática aumenta o valor do voto válido de outro indivíduo.

Digamos que num universo de 10 pessoas, uma delas decida votar nulo. As outras 9 votam em um candidato, ou seja, validam o voto. Se antes do voto nulo cada indivíduo teria 10% de influência sobre a eleição (10 votos seriam 100%), agora apenas 9 votos serão contados. O voto nulo, portanto, fez com que cada voto válido passasse a valer 11,11% da contagem. Se dois votos fossem anulados, cada um dos 8 votos válidos restantes teria 12,5% de influência sobre o resultado. E assim por diante.

Assim, os perdedores frequentemente dizem que o voto nulo "ajudou" o candidato que estava na frente, já que a sua porcentagem aumentou proporcionalmente mais.

Num universo de 10 votos, como no meu exemplo anterior, se não houvesse votos nulos e 6 pessoas votassem no candidato A e 4 no candidato B, a proporção ficaria em 60% contra 40% dos votos.

Mas suponhamos que hajam dois votos nulos e que a eleição tenha ficado com 5 votos para A e 3 para B. Nesse caso, no universo de votos válidos, o candidato A teve 62,5% dos votos, enquanto o candidato B teve 37,5%.

Repare que a mesma diferença de votos se mantém, mas a porcentagem para A é maior. Assim, de alguma forma, os votos nulos teriam "ajudado" o vencedor da eleição. Mas isso é um truque estatístico.

Os votos nulos não fazem com que uma massa específica de votos para candidato A passe a valer mais. Eles fazem com que todos os votos individualmente passem a valer mais. Evidentemente que o vencedor, por ter mais votos individuais, vai ter uma porcentagem maior proporcionalmente.

No meu exemplo, eu presumi que a mesma quantidade absoluta de votos fosse subtraída dos dois candidatos. No mundo real, não há nenhum motivo para presumir isso.

Os militantes anti-voto nulo usam esse fato para presumir que se os votos nulos não fossem nulos, a eleição teria sido diferente. Mas claro, assim como se os votos nulos tivessem ido para o vencedor, a diferença porcentual teria sido ainda maior.

Nas últimas eleições, eu ouvi muito esse tipo de argumento daqueles que não queriam que Geraldo Júlio fosse eleito prefeito do Recife. O mesmo veio dos tucanos com dor de cotovelo em São Paulo. Porém, é um absurdo completo presumir que os votos nulos teriam ajudado seu candidato se deixassem de ser nulos.

Como os votos nulos não são contados, são o mesmo que votos inexistentes. Culpar a derrota do seu candidato nos votos nulos é o mesmo que culpar a derrota do seu candidato em pessoas que não existem, porque se existissem votariam nele. Afinal, pessoas que não existem não podem votar, e quem não vota ajuda o candidato que está na frente!

Evidentemente, não dá pra dizer esse tipo de coisa. Se seu candidato perdeu, foi porque não conseguiu os votos válidos necessários para vencer. Se os votos nulos seriam votos para A, B ou X se não fossem nulos, é completamente irrelevante.

Como dizem por aí, se papai fosse mulher, eu teria duas mães. Se fulano não tivesse perdido a eleição, ele teria vencido.

Se.

sábado, 13 de outubro de 2012

Entrevista para o podcast do Mises Brasil

Alguns meses atrás, dei uma entrevista para o Bruno Garschagen, no podcast do Instituto Mises Brasil sobre o Libertyzine, o Opinião Popular e sobre o que eu acho da viabilidade de reformas liberais e, em particular, do anarco-capitalismo.

Não acho que eu tenha me saído tão bem nas respostas, mas é apenas o começo da minha explosão midiática, vou ter muito tempo para aprimorar minha retórica.

Você pode baixar o MP3 da entrevista clicando aqui (botão direito do mouse -> Salvar link como), ou ouvir direto por aqui:



Talvez eu pudesse ter explicado um pouco melhor o que eu considero ser uma posição "left-libertarian", ou liberal de esquerda. Claro que eu não falo por ninguém mais que adote esse rótulo, mas só por mim. E os meus motivos para adotar esse rótulo são tanto estratégicos quanto políticos. Como eu acredito que uma sociedade liberal não pode sobreviver sem uma estrutura social e cultural de tolerância (e, inversamente, também não acredito que haja uma verdadeira tolerância e "inclusão social" e econômica sem uma sociedade liberal), acho que os liberais devem, sem deixar de ser liberais - sem adotar soluções não-liberais - ter maior sensibilidade aos problemas dos "excluídos" - pobres, homossexuais, negros e outras minorias. Esse tema requer uma elaboração um pouco maior - que eu vou deixar para outro momento -, mas em suma é isso.

Quanto à viabilidade de uma sociedade sem estado, o que eu pretendia dizer no podcast é que, no fim das contas, isso não importa tanto quanto parece. O que importa, no fim das contas, é que o norte político não seja perdido. Se é que um dia vamos chegar numa sociedade ideal não importa muito. O que importa é ir empurrando o máximo possível.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Uma introdução à teoria monetária austríaca

Texto-base da palestra apresentada no II Congresso de Empreendedorismo do Agreste de Pernambuco (CEAP), em Caruaru.

Por que surgiu a moeda?

Sem a moeda – isto é, um meio de troca indireta –, é difícil que uma sociedade alcance um nível de desenvolvimento muito alto. Porque o nível de produção necessariamente teria que ser baixo para minimizar as perdas advindas de uma produção voltada para o escambo.

O dinheiro, a moeda, só é necessário quando a sociedade aumenta para além de algumas famílias. Uma só pessoa isolada não tem necessidade de moeda, nem duas pessoas que vivem numa ilha. Porém, quando a sociedade se expande para além de um pequeno número de pessoas, fica cada vez mais difícil orientar a produção econômica exclusivamente por trocas diretas.

Uma economia baseada no escambo teria que ser baseada na coincidência dos desejos dos agentes econômicos. Se fulano produz trigo e precisa de peixe e sicrano produz peixe e precisa de trigo, os dois podem acordar uma proporção pela qual eles podem fazer trocas entre esses dois bens. Mas se fulano quiser outro bem que não peixe, ele terá que procurar outro agente econômico que produza o bem em questão e torcer para que ele queira trigo.

Claramente a divisão do trabalho não poderia ser muito alta. Eu não poderia me especializar no meu ramo de atuação. Eu não poderia simplesmente me concentrar em escrever textos para palestras de economia se outras pessoas não estivessem dispostas a produzir seus bens e trocá-los diretamente por meus textos. Eu teria que ter uma produção extremamente diversificada para minimizar meus riscos de ficar com meu produto encalhado na prateleira.

Outro problema, além da necessidade dessa coincidência de desejos, seria o da indivisibilidade. Nem sempre os produtos que eu produzo são suficientemente divisíveis para estabelecer uma relação de troca vantajosa em relação a outro bem.

Mas a sociedade, com o tempo, percebeu que alguns bens tinham demanda constante e relativamente uniforme, e que esses bens poderiam ser sempre utilizados em transações. Em vez de fulano ter que trocar seu trigo diretamente por peixe, ele poderia trocar por um terceiro bem, e então trocar por peixe. Ele poderia trocar a proporção de trigo que quisesse por esse bem, e poderia usá-lo para trocar pela proporção exata de peixe que quisesse. E ainda poderia usar o mesmo bem para adquirir outro bem, digamos, arroz. Isso ocorre porque esse bem é o mais “líquido”, o mais “trocável”, aquele bem que está sempre em demanda.

Assim nasceu a moeda. Ou seja, a moeda, nos primórdios, necessariamente tem que ser um bem útil, que as pessoas já demandavam. Com o tempo, a utilidade dela cresce além do próprio uso que se faz da mercadoria. Além de uma mercadoria, ela se torna um meio de troca. Ao longo dos séculos as pessoas perceberam que os materiais mais apropriados para se tornarem moeda eram metais preciosos, como o ouro. Eles serviam para decoração, joias e, pela relativa raridade, eram símbolos de status. Se notarmos bem, o ouro é especialmente durável, é fácil verificar sua pureza, ele é muito divisível e uma pequena porção dele tem grande valor, o que o torna particularmente portátil. Sua homogeneidade garante que qualquer porção de ouro seja exatamente igual a outra. Quando um bem não é homogêneo, ele deixa de se prestar facilmente à função de moeda porque o valor de uma unidade desse bem não é perfeitamente equivalente ao de outra unidade.

Notem que a moeda não poderia ter surgido de outra forma que não por esse processo. A moeda não poderia ter sido imposta de cima para baixo. A moeda tem que estar sempre relacionada a uma mercadoria, que então ganha também utilidade como meio de troca. O dinheiro não poderia ter surgido de nenhuma outra maneira, já que não seria possível simplesmente declarar que um bem deveria ser usado moeda, porque isso não criaria demanda por aquele bem. É possível substituir de cima para baixo uma moeda criada pelo mercado, mas não é possível que essa moeda tenha sido criada do nada, sem uma base anterior.

Ludwig von Mises, em seu livro The Theory of Money and Credit, explicou isso de forma inversa. Ele se perguntou: por que há uma demanda por moeda? Nós não precisamos explicar por que há uma demanda por bens comuns da economia, como alimentos ou móveis. O simples fato de que trocamos bens por eles significa que extraímos um benefício desses bens.

Mas a moeda, em si, não tem utilidade nenhuma. Então por que a queremos? Por causa de seu poder de compra. As pessoas esperam que a moeda tenha poder de compra no futuro, e para isso utilizam como base o poder de compra dela no passado. Mas isso não é circular? Não, porque se formos regredindo esse processo no tempo, chegaremos num ponto em que a moeda era demandada por ter utilidade nela mesma e não porque era esperado que ela pudesse ser trocada por outro bem. Isso é o que Mises chamou de teorema da regressão.

De qualquer forma, através do escambo surge a moeda, que no geral foi atrelada a um metal precioso – o ouro ou a prata – nas diversas sociedades do mundo. Evidentemente, se formos olhar a história do mundo, as coisas mais curiosas já foram utilizadas como moeda – sal, vacas, conchas marinhas. Porém, a adoção mais generalizada foi a de metais preciosos, por causa das vantagens de portabilidade, divisibilidade e homogeneidade que eu já mencionei.

O advento do dinheiro provê várias vantagens à sociedade. Agora as pessoas podem se especializar em determinadas atividades baseada na razão entre o seu produto e a quantia pela qual ele pode ser trocada pela moeda – ou seja, em função dos preços. Com os preços, nós sabemos o que é mais necessário e o que é menos necessário na sociedade. Se os preços são “altos” de um certo bem, esse bem tenderá a ser aumentada. Se são “baixos”, a produção tenderá a ser diminuída.

É um meio fantástico de racionalizar o uso de recursos na sociedade. Sem as limitações do escambo, existe uma razão de troca para todos os bens da sociedade. Não mais é necessário procurar alguém que queira trocar o seu bem específico por outro bem específico. Nós sabemos exatamente qual é o “custo” de um fator de produção, então é possível comparar o “preço” da produção esse custo e verificar se há lucros ou prejuízos. Claramente, é possível haver um nível de produção bem mais elevado com a moeda. Sem uma unidade monetária, ficamos presos numa economia relativamente primitiva.

E qual deve ser a oferta de moeda?

Surgindo por esse processo orgânico, o estoque de moeda de uma sociedade vai ser sempre a quantidade total do bem que é utilizado como moeda. No caso de metais preciosos, o peso total do metal será o estoque de moeda. Se mais desse metal porventura for produzido, esse estoque total será aumentado. Contudo, metais preciosos em geral foram selecionados no mercado também porque seu valor permanece relativamente constante. É difícil que o estoque total de metais preciosos cresça significativamente. Os indivíduos tendem a preferir níveis de preços mais constantes e previsíveis. Se a moeda for outra coisa que não um metal e sua quantidade variar demais, seria difícil prever o nível de preços a determinado momento.

Como observou David Ricardo, a moeda também é um bem peculiar porque, enquanto meio de troca, um aumento da sua quantidade total não confere qualquer benefício social. O aumento da produção de outros bens aumenta a riqueza da sociedade como um todo – se produzirmos mais TVs, a sociedade poderá usar mais TVs e se beneficiará disso. Com o aumento da quantidade de moeda, não há a mesma vantagem. Um aumento da quantidade de moeda simplesmente diminui o valor de uma unidade monetária, porque qualquer quantidade da moeda pode desempenhar o mesmo papel que uma quantidade maior ou menor.

David Hume, o economista e filósofo inglês, fez um experimento mental em que ele imaginava que, numa tacada só, a quantidade de ouro que todos tivéssemos dobrasse. O que aconteceria? Nós ficaríamos mais ricos? Hume respondeu que não, já que o que nos torna mais ricos não é o aumento quantidade de meios de troca que possuímos, mas o aumento da quantidade de bens pelos quais podemos trocar nossa moeda. Logo, uma das grandes doutrinas dominantes da época, o acúmulo de metais preciosos do mercantilismo, não fazia sentido – assim, como não fazia sentido restringir importações e estimular exportações. Ao exportar, nós ganhamos moeda em troca. Mas moeda não é riqueza. Ao restringir as importações, nós ficamos sem poder trocar a moeda que ganhamos com as exportações. (Assim, quando, por exemplo, o governo restringe importações porque quer estimular exportações, indiretamente ele as está desestimulando.)

De qualquer forma, se nós dobrássemos a quantidade de moeda que possuímos, a única coisa que ocorreria seria uma diluição do poder de compra de cada unidade de moeda, com os preços aumentando, em média, 100%.

Contudo, essa diluição do poder de compra de cada unidade monetária não será uniforme e, portanto, “neutra”. Cada pessoa tem uma escala de valores ordinal dos bens que deseja em relação à quantidade de dinheiro que possui consigo. Com o aumento (ou mesmo a diminuição) da quantidade de moeda em seu bolso, essa escala de valoração muda. Assim, os preços dos bens da economia não aumentam de maneira uniforme. Podemos concluir que, embora um aumento da oferta de moeda não confira qualquer benefício social, ele causa mudanças na escala de valores dos indivíduos e, dessa forma, tem um efeito palpável na sociedade. No mundo real, quando, por exemplo, o governo aumenta a oferta monetária, ela nunca ocorre dessa maneira, de forma que a moeda disponível para cada pessoa aumente proporcionalmente de forma igual. No mundo real, certos indivíduos sempre pegam a nova moeda antes que outros. Os primeiros a pegarem o dinheiro se beneficiam de preços que ainda não foram afetados pelo aumento da quantidade de moeda. Paulatinamente o dinheiro vai se espalhando por toda a economia e a riqueza é redistribuída. Aqueles a quem a nova moeda alcança por último se tornam mais pobres em relação à situação anterior ao aumento da oferta monetária, enquanto que aqueles que pegam primeiro essa moeda se tornam mais ricos. Podemos concluir que um aumento (ou uma diminuição) da oferta monetária não aumenta nem diminui a riqueza total da sociedade, mas é capaz de alterar a distribuição dessa riqueza.

E se houver mais de uma moeda?

Até aqui nós vimos que a moeda surge como mercadoria, portanto seu valor também é governado por sua oferta e demanda. Qual é o valor da moeda? O valor da moeda é o nível de preços das outras mercadorias. A moeda é o único bem da economia que permanece em situação de escambo com todos os outros bens.

Notem que a “demanda” por moeda não é o mesmo que o desejo de ter mais dinheiro. A demanda por moeda é a demanda por uma disponibilidade de dinheiro em relação aos bens da economia. Mises chama essa disponibilidade de moeda de um indivíduo de “encaixe” – isto é, a quantidade de moeda que um indivíduo deseja ter disponível para seu uso a determinado momento. Como o futuro é incerto, necessariamente os indivíduos mantêm encaixes para serem usados a certos momentos. Para aumentar esses encaixes, as pessoas têm que vender bens (ou seja, preço dos bens cai porque as pessoas preferem ter mais dinheiro disponível consigo), e vice versa.
O bem que serve como moeda, porém, enquanto meio de troca, não nos torna mais ricos só por um aumento em sua quantidade. Veja que, se as pessoas quiserem aumentar seus encaixes e houver um aumento na quantidade de moeda na economia, isso só atrasa o estabelecimento dos encaixes dos indivíduos. Porque o que faz com que os indivíduos queiram aumentar (ou diminuir, não importa para o nosso exemplo) seus encaixes é a tentativa de estabelecer uma nova relação entre os preços da economia e a quantidade de meios de troca que possuem. Uma variação na quantidade de moeda, portanto, atrapalha no estabelecimento de uma nova relação de encaixes, uma vez que modifica a valoração individual dos bens da economia em relação à quantidade de moeda disponível para si.

Numa moeda que surge no mercado, assim, embora tenhamos uma estabilidade de preços muito grande, porque, em geral, a moeda escolhida vai ter a característica de reter muito valor e uma alta demanda sempre, os preços ainda variam em relação à quantidade de bens ofertados e ao nível desejado de encaixes monetários dos indivíduos.
Concluímos, então, que o valor da moeda é o seu poder de compra. O poder de compra de uma moeda tenderá a ser sempre uniforme, embora a oferta de bens em um lugar e os desejos dos consumidores em um lugar sejam diferentes dos desejos do consumidor em outro. Portanto, é fácil explicar porque, digamos, o preço do pão no Recife é mais alto do que o preço do pão em Caruaru. Porque são dois bens diferentes: um está mais perto do consumidor de Recife, que tem toda uma gama de bens e serviços diferentes à sua disposição em relação ao consumidor de Caruaru. Isso, no entanto, não invalida o fato de que o poder de compra de uma moeda tende a ser uniforme.

E se o valor de uma moeda, que tende a ser uniforme, é o seu poder de compra, o que acontece se existir mais de uma moeda? As duas moedas teriam seus dois poderes de compra. A razão de troca entre as duas moedas, assim, refletiria o poder de compra de cada uma. Essa razão é o “câmbio”. E o câmbio flutua de acordo com as alterações do poder de compra de cada moeda.

Historicamente, principalmente antes do advento dos bancos centrais, várias moedas podiam circular concomitantemente nos países. Em vários deles, por exemplo, o ouro e a prata circularam lado a lado. O câmbio entre o ouro e a prata tendia ao poder de compra de cada um dos metais, que, por sua vez, era determinado pela oferta e demanda de cada um deles. Se, digamos, um bem estivesse mais barato em prata do que em ouro, valeria a pena comprar o bem em questão em prata e vendê-lo em ouro. Assim, há sempre um incentivo para a manutenção do equilíbrio cambial entre as moedas em relação ao poder de compra de cada uma delas.

O mesmo vale para as moedas atuais. Se o real é capaz de comprar bens equivalentes a um preço mais baixo do que o dólar, a tendência no mercado vai ser comprar esses bens em real e vende-los em dólar, de forma que a demanda pelos bens em real faça os preços subirem novamente ao ponto de equilíbrio, que seria a paridade do poder de compra das duas moedas. Evidentemente, como no mercado para outros bens e serviços, nunca há equilíbrio – há desequilíbrio e forças que estão constantemente empurrando o estado para o equilíbrio.

O advento dos bancos

Ao longo da história, inicialmente para facilitar grandes transações, surgiram instituições para armazenar a moeda, que foram chamadas “bancos”. Embora as moedas metálicas fossem portáteis e divisíveis, havia grande praticidade em fazer trocas simplesmente com os recibos bancários. Esses recibos bancários davam direito ao portador de resgatar a quantidade de metal denominada nela ou transferir para a sua conta.

Ao contrário de armazéns para outros tipos de bens, armazenar a moeda era intrinsecamente mais central e importante economicamente, porque a moeda não é consumida, mas simplesmente transferida de uma pessoa para a outra. Gradativamente, recibos bancários passaram a ser utilizados como substitutos da moeda nas transações, já que os portadores desses recibos poderiam sacar a qualquer momento o equivalente em metal (ouro, prata ou outro material) para si. Outros métodos logo se desenvolveram também, como os cheques – que não passam de ordens dadas por um correntista para um banco para a transferência de uma quantia de dinheiro para outra pessoa.

Inicialmente, bancos operavam como armazéns, mas logo passaram a ser também instituições de crédito. Essas funções estavam originalmente separadas, mas logo foram incorporadas à atuação dos bancos pela posição em que se encontravam, de posse do dinheiro de um grande número de pessoas.

Assim, os bancos começaram não só a guardar o dinheiro que tinham em caixa, mas também a emprestá-lo. Ou seja, eles deixaram de ter 100% de reservas de moeda e passaram a ter reservas fracionadas, abaixo de 100%.

Por um lado, essa posição é vantajosa para o banco, porque ele pode receber um retorno pelo empréstimo do dinheiro. É também vantajosa para os correntistas dos bancos, porque, agora, em vez de pagarem pelo serviço de armazenamento, eles também recebem uma compensação por manterem o dinheiro em determinado banco.

Assim, quando um banco abandona 100% de reservas, há um aumento da quantidade de substitutos de moeda na economia em relação à quantidade de moeda presente nos bancos. Se todos os portadores desses substitutos decidissem sacar o equivalente em moeda ao mesmo tempo, o banco não seria capaz de honrar todos os compromissos. Porém, essa situação raramente é o caso.

Contudo, há limites severos para a atuação de um banco com “reservas fracionárias”. Ele não pode jamais ficar sem reserva alguma, caso contrário não seria capaz de honrar os recibos dos clientes que tentassem resgatar seus depósitos num determinado dia. Evidentemente, nem todas as pessoas fazem seus saques ao mesmo tempo, e por isso os bancos são capazes de continuar a operar com reservas menores do que todos os substitutos de moeda que colocam em circulação.

Atualmente os bancos atuam da mesma maneira, mesmo sem serem mais obrigados a terem em estoque ouro e prata para serem trocados pelas notas. Porém, da mesma forma, eles não mantêm em caixa todo o dinheiro de seus correntistas.

Ao aumentar os substitutos de moeda para além das reservas em caixa, os bancos causam um efeito inflacionário na economia. Isto é, da mesma forma como ocorreria com um aumento da oferta monetária normal, um aumento da oferta de substitutos de moeda causa os mesmos efeitos.

Dado que a demanda por moeda dos indivíduos permaneça constante, essa “inflação” dilui o poder de compra de cada unidade de moeda. Como já expliquei anteriormente, um aumento dos meios de troca da economia não confere qualquer benefício social, e o mesmo vale para o aumento da quantidade de substitutos de moeda. A inflação ainda tem outros efeitos mais nocivos, que eu vou explicar mais à frente.

Falando especificamente dos bancos, embora eles tenham vantagens em expandir a quantidade de substitutos de moeda para fazer empréstimos, sua posição é relativamente frágil, já que eles necessariamente não serão capazes de honrar os saques de todos os indivíduos ao mesmo tempo. Então há uma limitação do quanto os bancos podem inflar a oferta monetária sem se colocarem em risco de falência.

Se o mercado bancário for aberto e qualquer pessoa puder abrir um banco, ou mesmo se não houver sanções relevantes para os indivíduos não usarem bancos e preferirem utilizar moeda em vez de substitutos de moeda, há uma pressão para que os bancos mantenham altas reservas de moeda em relação aos substitutos de moeda. Uma vez que nem todos os clientes bancários são clientes de um só banco, toda vez que uma transação entre correntistas de dois bancos for feita, um dos bancos terá que transferir moeda para o outro.

Se um banco deixa de honrar seus depósitos, esse banco tende a perder a confiança dos correntistas. O resultado são as “corridas bancárias”. Corridas bancárias nada mais são do que a tentativa de grande parte dos detentores de recibos bancários de resgatar seus depósitos. Como sob um sistema de reservas fracionárias os bancos não são capazes de resgatar os depósitos de todos os que desejem recuperar seu dinheiro ou transferi-lo para outro banco, esse banco fatalmente vai à falência.

Nós, brasileiros, estamos familiarizados com corridas bancárias. Já sofremos algumas, como durante o governo de Collor. Hoje há alguns índices que guiam o nível de capitalização dos bancos, como o índice de Basileia, mas abaixo dos 100% de reservas, eles sempre correrão riscos. Em condições normais, porém, haveria fortes desincentivos para os bancos emprestarem muito além de suas reservas.

Nascem os bancos centrais

Esses problemas enfrentados pelos bancos ao emprestar além de suas reservas não têm respostas efetivas dentro do mercado, a não ser pela manutenção de altas reservas. Os bancos poderiam – e de fato tentaram – estabelecer cartéis voluntários. Mas, como em outros mercados, cartéis voluntários são instáveis. Nesses cartéis, os bancos concordavam manter o mesmo nível de reservas, a resgatar as notas de outros bancos e a não tentarem transferir a moeda de outros bancos para os próprios cofres. Porém, invariavelmente, um dos bancos tentava aumentar o nível de reservas para tentar amenizar sua situação de vulnerabilidade.

Claramente esse tipo de cartel não funcionou. Por isso, os bancos procuraram pressionar os governos a estabelecerem cartéis bancários compulsórios, através dos bancos centrais.

Foi mais ou menos dessa forma que, em diferentes momentos, diversos países adotaram sistemas de bancos centrais. O Brasil ganhou o seu em 1964, enquanto o dos Estados Unidos, o Federal Reserve, foi fundado em 1913. Já o banco central inglês existe há séculos, mas foi ganhando cada vez mais atribuições e direitos ao longo dos anos.

Bancos centrais controlam a oferta monetária de seus países. Em geral, eles formam sistemas de carteis bancários que, de forma concertada, controlam a emissão de substitutos de moeda em determinado território. Com um banco central, os bancos convencionais teriam mais segurança ao emitir substitutos de moeda além de suas reservas, porque o banco central garante que esse banco não fique descapitalizado na eventualidade de uma corrida bancária. Efetivamente, os bancos se tornam correntistas do banco central. Durante a vigência do padrão-ouro, todo o ouro foi transferido para o banco central, que também coordenava a emissão dos substitutos de moeda. Com essa coordenação da emissão dos substitutos de moeda, os bancos estavam livres para emprestar além de suas reservas sem grandes repercussões no mercado, já que, com a emissão uniforme de notas bancárias, não existe o problema de que um banco possa exigir a transferência da reserva de outro para si, aumentando suas reservas em relação aos outros. Isso significa que os bancos comuns têm um limite estabelecido pelo banco central ao seu potencial inflacionário, mas também significa que eles têm mais segurança na expansão monetária.

O padrão-ouro que vigorava em grande parte do mundo no começo do século 20, porém, também era um empecilho à atuação dos bancos e bancos centrais. Foi então que, através de uma série de manobras políticas, os governos descolaram a oferta de moeda do estoque de ouro, transformando o que antes eram substitutos de moeda em moeda de facto. Para auxiliar essa mudança, os governos também estabeleceram leis de curso forçado para impedir que suas moedas pudessem ser preteridas em prol de outros meios de troca mais sólidos.

Em resumo, a função principal dos bancos centrais é a de controlar a oferta monetária. Sua outra função primordial é a de servir como “banco dos bancos” – ou seja, de servir como último recurso para os bancos comerciais em caso de descapitalização. Além disso, ele também serve como mecanismo cartelizador do mercado, impedindo a entrada de novos concorrentes através de pesadas regulamentações (afinal, novos concorrentes seriam um problema para o sistema como um todo).

Por que os estados criaram os bancos centrais

Antes dos bancos centrais, os estados tinham algum grau de controle sobre as moedas dos países através dos tesouros nacionais. Os tesouros, em geral, possuíam o poder de emissão de moeda, mesmo sob o padrão-ouro. Essas emissões de substitutos de moeda fatalmente tinham que ser sacadas

Os governos, via de regra, possuem fortes incentivos para estabelecerem bancos centrais, já que, com eles, os governos ganham maior poder de controlar a oferta monetária dos países. Como já explicado, um aumento na oferta monetária não é capaz de aumentar a riqueza social, mas é capaz de redistribuí-la.

Estados só têm três modos de se financiarem. O primeiro é cobrando impostos, que são bastante impopulares. O segundo é através da dívida pública, ou seja, da contração de empréstimos de indivíduos privados. O terceiro é através da expansão monetária, que redistribui dinheiro para si. Essa expansão monetária era originalmente chamada de inflação. Contudo, o termo “inflação” acabou, por um motivo ou outro, sendo aplicado a um aumento generalizado do nível de preços.

Por não ser facilmente perceptível pelo público, a inflação monetária (em oposição à inflação de preços) se torna um método especialmente atraente para os indivíduos que formam o governo para financiar suas atividades. Assim, o lobby bancário se juntou à vontade política dos governos ocidentais de terem maior poder sobre a moeda e todo esse processo culminou nos bancos centrais do mundo moderno.

Efeitos da inflação

Além dos efeitos redistributivos, a inflação monetária tem outros efeitos prejudiciais à economia.

Durante o século 19, sob o padrão-ouro, era comum um tipo específico de “ciclo econômico” descrito por David Hume. No exemplo do economista inglês, ele falava do caso da França, que havia aumentado a quantidade de francos em circulação. O maior número de francos em circulação elevava o nível de preços na França. Com preços mais altos em relação ao exterior, as importações são estimuladas e as exportações desestimuladas. Os francos enviados ao exterior, então, para pagar esse desequilíbrio na balança comercial, eram sacados junto aos bancos franceses. Como havia mais francos do que depósitos reais em ouro, há um fluxo do metal para fora do país. Para evitar que todo o ouro saísse da França, os bancos tinham que enxugar a oferta monetária, contraindo empréstimos. Se o aumento fosse ocasionado pelo governo, ele teria que cobrir o rombo através do tesouro nacional. A contração da oferta monetária causaria uma queda no nível de preços francês e geraria um superávit de exportações, que reverteria o fluxo de ouro para fora.

Esse problema era frequente nos países durante o século 19, mas eram crises relativamente brandas em comparação com as que temos hoje em dia. O padrão-ouro servia como uma espécie de freio à expansão bancária do crédito. Somente com a expansão governamental concertada do crédito através dos bancos centrais nós chegamos às devastadoras crises do século 20.

Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek desenvolveram a teoria dos ciclos austríaca, ligando-a inescapavelmente à inflação monetária, que chega à sociedade através dos empréstimos bancários.

Por conta da inflação monetária, a taxa de juros cai. Essa taxa de juros indica o nível de poupança de uma economia. Os empresários, ao verem a taxa de juros baixa, são levados a acreditar que há muita poupança para ser investida na economia. Assim, são estimulados investimentos em bens de capital, bens usados na produção de outros bens. O aumento dos preços dos bens de consumo que acompanha a primeira fase do processo inflacionário, acompanhada de um aumento dos salários e de uma expectativa de maiores retornos após o processo produtivo, cria uma sensação de prosperidade na economia como um todo. Essa é a fase do boom.

Entretanto, à medida que a moeda entra na economia, se torna claro que os investimentos feitos foram incorretos, porque não havia fundos reais de poupança para cobri-los. Sem a poupança para financiar os investimentos, os empreendedores vão à falência em massa. Essa é a fase da depressão, ou bust. Os preços caem, salários despencam, há desemprego e empobrecimento. É preciso rearranjar os fatores de produção dentro da economia, porque anteriormente eles estavam dedicados a projetos que se revelaram errôneos.

Austríacos como Mises e Hayek afirmam que foi esse processo que ocorreu nos anos 1920 nos EUA, culminando com a crise de 29. Seus seguidores, inclusive, afirmam que o mesmo processo desembocou na crise imobiliária americana de 2008. No Brasil, temos atualmente um processo parecido em curso, com um crescimento enorme do setor imobiliário através da expansão creditícia. Esses ciclos de expansão industrial e depressão têm sido constantes desde o advento dos bancos centrais e da extensão do crédito para investimentos através do setor bancário.

A inflação monetária, através do aumento de preços dos bens da economia, se acentuada, também pode fazer com que as pessoas comecem a comprar cada vez mais bens, porque há a impressão generalizada de que se aguardarem, os preços vão subir ainda mais. Com a queda na demanda por moeda e o aumento na demanda por bens, a inflação de preços passa a ser ainda maior do que a própria expansão monetária. Governos geralmente, ao invés de contraírem a oferta de moeda para conter o aumento dos preços, são levados a expandir a oferta monetária ainda mais com o aumento dos preços dos bens de consumo, já que as pessoas não têm dinheiro em seus encaixes para comprar os bens a preços altíssimos. É nesse ponto que a inflação passa a ser hiperinflação – a demanda por bens aumenta astronomicamente enquanto a demanda por moeda cai assustadoramente.

Essa situação foi comum no Brasil nos anos 1980 e no começo dos anos 1990. A expansão monetária, porém, no país, acontecia através da compra de bens de consumo diretamente pelo governo, e não alcançava o mercado através do mercado de crédito. Se fosse pelo mercado de crédito, teríamos um ciclo de crescimento e retração industrial. No caso brasileiro, houve o que se chama de “inflação simples”. O banco central brasileiro emitia moeda e comprava títulos do tesouro com essa nova moeda, financiando os gastos do governo. Esses gastos batiam diretamente na economia, que não tinha a sensação de prosperidade típica dos ciclos de inflação de crédito. Ao contrário, só havia gastos do governo e o aumento generalizado dos preços que culminava em hiperinflação.

Soluções?

O que eu apresentei aqui foi uma visão geral da teoria monetária da escola austríaca de economia, que é geralmente associada a Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek, mas remonta a Carl Menger e Eugen Böhm-Bawerk no século 19. Hoje em dia a escola voltou a ganhar uma certa notoriedade. Junto com a teoria monetária, apresentei também uma explicação austríaca para o fenômeno dos ciclos econômicos e uma crítica à inflação. Eu também apresentei, embora não tenha citado nomes, uma resposta às principais críticas às visões desses autores.

Em termos de política, os austríacos diferem um pouco nas soluções para os problemas econômicos atuais. Em geral, porém, eles são favoráveis à retirada do governo do envolvimento com a moeda. Mises e seus seguidores, via de regra, recomendam um fim imediato à expansão monetária e um retorno ao padrão-ouro, que, pragmaticamente, limitaria a capacidade de os governos e bancos de causarem inflação e problemas econômicos maiores. Hayek, por outro lado, recomendava um esquema complexo de moedas concorrentes cujos valores estariam atrelados a uma cesta de bens.

Qualquer que seja a solução, porém, ela sempre envolve a retirada do estado da seara da moeda.

Da minha parte, eu ficaria satisfeito com o simples fim das leis de curso forçado, permitindo que os indivíduos utilizassem o que quisessem como moeda. Assim, poderiam escolher a moeda que quisessem dentre as já existentes ou, como no passado, eleger uma nova mercadoria para preencher esse papel.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Todas as dicas que recebemos e protestos que ouvimos são inúteis

Chegam as eleições e todos querem nos ver votando bem, votando certo, aquele voto matreiro, democrático, de várzea e de raiz. Pedem que assistamos ao horário eleitoral, que acompanhemos a história dos candidatos, que conheçamos os projetos de todos os candidatos antes de eleger nosso favorito e depositar o futuro do país nas mãos do nosso escolhido.

Aí, óbvio, depois das eleições e depois que os novos bandidos tomam posse, passam a criticar o fato de que os outros não estudaram em quem votar, que votaram sem conhecer todas as gerações do candidato até o elo perdido, ou até Noé, dependendo de suas crenças. E que por isso o país está como está, por isso a corrupção toma conta do país, esse grande demônio, o maior de todos os entraves ao desenvolvimento brasileiro, a corrupção.

Há, no mínimo, dois erros básicos nos pressupostos assumidos pelos críticos das escolhas dos brasileiros nos pleitos: o primeiro é a suposição errada de que a corrupção é esse monstro todo, e que é a maior imoralidade rolando por aí. Que o dinheiro da corrupção, se fosse aplicado em outros programas do governo, solucionaria os problemas do mundo todo, e chegaríamos enfim à terra do leite e do mel. Volto à corrupção mais tarde.

O segundo pressuposto equivocado é o de que é possível conhecer um candidato assistindo ao seu programa eleitoral - claro que os quatro segundos cedidos a um candidato a vereador do PCO são suficientes para despertar o interesse em mim de pesquisar sobre todo o seu passado, de levantar sua ficha, de gastar horas de vida pesquisando se, talvez, esse vereador que filmou seu programa em uma webcam barata não é, de fato, o mais interessante para minha cidade. Faça-me o favor.

Além disso, até nas campanhas majoritárias, não existe nenhuma diferença entre as propostas dos candidatos. Candidato A vai construir mais creches, mas também tem planos pra infraestrutura viária e pra reformar policlínicas. Candidato B vai melhorar a infraestrutura viária, aka construir mais ruas, mas também prevê a construção de escolas e creches, além de mais UPAs. Candidato C vai construir mais hospitais, além de tudo o que os outros candidatos farão. Candidato D idem. O que o guia eleitoral me ensina, então? Vote em qualquer um.

Nenhum guia vai dizer "Processado por peculato, Fulano responde hoje também por improbidade administrativa e homicídio doloso. Mas vote nele mesmo assim, porque ele gosta de futebol e dança de salão". Todos vão prometer fazer coisas maravilhosas. Continuar um grande trabalho ou fazer as mudanças necessárias, conforme o candidato esteja na situação ou na oposição. No fim das contas, os planos são os mesmos. É, portanto, impossível conhecer um candidato pelas propagandas - afinal, propagandas são amostras unilaterais do propagandeado.

Outra possibilidade seria conhecê-los através do jornalismo. Mas as denúncias dos jornais são tão inócuas que não fazem nem cócegas nas convicções da população. "Candidato Cicrano colocou seu cunhado na Secretaria de Obras", dizem os jornais, como se isso fosse OH MEU DEUS TERRÍVEL. Não é. "Candidato Beltrano não cumpriu todas suas promessas de campanha", ou "não concluiu uma obra no bairro X", ou "não solucionou o problema da saúde". Enfim. Grandes coisas.

Voltando à corrupção, segundo este site que não sei se é confiável, foram desviados até agora R$64,5 bilhões este ano. A arrecadação já ultrapassa um trilhão. Claro que o valor desviado é elevado. Mas 6% da arrecadação não seriam suficientes para resolver absolutamente nenhum dos problemas estruturais do país. O argumento da corrupção é inválido e, acredito, negativo para o debate da situação brasileira.

Explico: todo tipo de discussão sobre a situação da saúde pública é desviada de "a saúde pública é uma merda por incompetência estatal" para "não, o problema é a corrupção". Educação? Mesma coisa. Infraestrutura? Idem. O problema da corrupção é ampliado com uma lupa muito mais forte do que merece, e acaba distorcendo a importância de outras causas mais relevantes dos problemas que temos no dia-a-dia: os lobbies, os cartéis, o assistencialismo e, principalmente, a incompetência e a ineficiência.

O desvio do assunto para a corrupção desvirtua e desqualifica o real debate, que é sobre a ineficiência intrínseca à administração estatal, devido à elevada burocracia, à origem "automática" e abundante do dinheiro e aos excessivos direitos dos servidores públicos - estabilidade e nenhum estímulo à produção, por exemplo, dentre outros vícios da administração estatal que não podem ser corrigidos devido à sua própria natureza.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Desempregômetro

Isto é uma das coisas mais estúpidas que surgiram nas últimas décadas. O sentido que esse quadro faz é zero, e me parece impossível que alguém - qualquer pessoa que seja - tenha feito isso sem má-fé ou com qualquer vestígio de boa intenção, tão óbvia a falácia.

O primeiro erro, e o mais básico, é a idéia de que o consumo é constante. Não é. Ele varia (e muito) em função do preço. Um celular de R$799,00, custasse R$2.099,00, seria muito menos consumido. Como o consumo dita a produção, seriam produzidos menos celulares do modelo no Brasil, e, conseqüentemente, menos pessoas trabalhariam na fábrica da empresa no Brasil, pois a demanda por mão de obra seria menor.

O segundo erro é a idéia, presumida pelo site, de que algum país é capaz de produzir 100% do que consome. Em economia, existe um trocinho chamado vantagem comparativa, que mais ou menos prova que o comércio entre países é benéfico para os dois lados, pois o custo de produção de frutas no Japão é alto o bastante para compensar que, em vez de produzir as frutas, eles produzam carros, e troquem os carros por frutas produzidas no Brasil. Dessa forma, o simples fato de o Brasil exportar coisas significa que existe um "excesso" de produção (com uso de mais mão-de-obra, naturalmente) em áreas mais eficientes* da economia brasileira. Esse excesso de produção precisa ser escoado para o exterior para que tenham algum valor, pois o mercado interno simplesmente não tem demanda o bastante para absorver tudo o que aqui se faz.

Portanto, defender que o Brasil importe menos é defender maior escassez de produtos, reduzindo o acesso da população à variedade de marcas e produtos provenientes do mercado externo (já que teríamos apenas as marcas nacionais para optar), reduzindo, por sua vez, a satisfação da população (embora seja possível que se esteja satisfeito por ter um Gol, ter um Golf é mais satisfatório, e ter um Civic é ainda mais satisfatório. A redução de barreiras à importação facilitaria o acesso do brasileiro a carros de categorias muito superiores às que ele tem acesso hoje, desembolsando o mesmo valor).

Defender, na verdade, qualquer tipo de interferência do Estado no mercado, seja no interno ou no externo, é defender uma redução da tendência natural à eficiência que o lucro e a concorrência proporcionariam, caso não houvesse tantas barreiras.

Próximo passo: criar uma lei exigindo que as empresas brasileiras absorvam os "desempregados" criados pela importação (porque não há gente trabalhando no país onde as coisas são fabricadas, provavelmente é tudo feito por robôs 100% autônomos e sem necessidade de combustíveis).

*Ou, como é muito provável, mais subsidiadas, regulamentadas ou cartelizadas - os considerados "setores estratégicos", como o petroleiro e a agronomia.

sábado, 24 de março de 2012

Problemas com a adoção da senciência como critério moral de respeito à vida

Vegetarianos usam o padrão de senciência (capacidade de sentir) para argumentar que os animais, como os humanos, têm direitos.

Com isso eles pretendem evitar os problemas morais entre os próprios humanos (bebês e doentes mentais, por exemplo, que parecem ter pouco mais agência moral que animais) e fornecer uma moralidade de respeito à vida mais robusta.

Mas acho que há alguns problemas nessa tentativa. São apenas comentários esparsos, devo elaborar isso mais tarde:

1) Não há uma conexão lógica entre sentir ou não dor e o direito à vida

Não se segue que a vida de um ser tenha valor porque ele é capaz de sentir dor (ou mesmo que tenha capacidade de sentir prazer, etc). Não há nenhuma conexão lógica entre os dois fatos. Se, subitamente, um ser for sedado (digamos que não haja coação nessa sedação), ele perde a capacidade de sentir dor e portanto também o direito à vida?

2) A senciência parece conferir apenas alguns direitos, não outros

Bebês e doentes mentais claramente não são capazes de sobreviver sozinhos. No entanto, animais podem viver e de fato vivem sem auxílio humano. Mesmo assim, os defensores dos direitos dos animais não alegam que a senciência seja um bom parâmetro para defender que os animais tenham direito, digamos, a não ser animais de estimação.

Então a senciência serve para dar o direito à vida, mas não à liberdade dos animais. Isso fica ainda mais claro em casos como o da esterilização de cães e gatos, promovida por diversos vegans. Claramente os animais têm interesse no prazer sexual (pois são seres sentientes), mas são privados disso pelos interesses humanos.

Em resumo, a gente acaba em duas situações ruins: tirar direitos dos bebês e demais incapazes ou dar mais direitos aos animais, o que soa estranho.

3) A senciência não parece vindicar alguns dos direitos que nós achamos ser válidos

Parece difícil justificar a retaliação legal com base na senciência. Um criminoso não deixa de ser senciente porque assaltou alguém, e contudo deve ser punido. A base normal de direitos, que inclui a reciprocidade, resolve melhor esse ponto aparentemente incômodo.

terça-feira, 20 de março de 2012

Uma carta acerca da tolerância, ou: Por que ninguém tem paciência com os fumantes?

O motivo pelo qual liberais clássicos como John Locke escreveram cartas acerca da tolerância era reconhecerem que era necessário o mínimo de respeito aos hábitos e crenças das outras pessoas para que uma sociedade pacífica fosse possível.

A ideia liberal clássica era que todo mundo poderia ter sua casa, sua família, seu trabalho e que, depois de suar durante o dia, poderia entrar na sua propriedade e louvar o seu deus sem ninguém encher o saco.

Não é à toa que os liberais sempre estiveram na vanguarda de lutas pelos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais e de outras minorias - porque sabiam que sem uma esfera privada bem delineada em relação ao que é "público", fatalmente a gente cai em situações sociais de conflito.

Por exemplo, por conta da intolerância social com os usuários de drogas, o que temos é um combate bizarro a entorpecentes que custa uma bolada e mata milhares todo ano. Também foi assim quando os puritanos resolveram que as bebidas deveriam sumir da vida americana.

O argumento não é que você, pai de família honrado, respeitável e tradicional, tenha que receber os maconheiros em casa com toda a pompa, mas só que você não vai ficar fazendo barraco quando vir alguém com baseado na rua. Afinal, a vida é do maconheiro, deixa ele.

Assim, sob o liberalismo, todo o progresso social era no sentido de que os hábitos, mesmo os ruins, são privados, e ninguém tem nada a ver com isso.

Igualmente, qualquer boçal hoje em dia sabe que o cigarro faz mal, que seu uso excessivo pode causar câncer, além de, segundo as carteiras de cigarro, infarto, impotência, horror, gangrena, malformações fetais, derrame cerebral e todos os males da história (interessantemente, ninguém observa que o cigarro também traz vários efeitos psicológicos positivos, como relaxamento e tranquilidade).

Só que, apesar de a sociedade já ser bastante bem informada sobre o cigarro, e embora seja um hábito essencialmente privado (apesar do que tenta passar a propaganda exagerada sobre o "fumo passivo"), o tabaco continua sendo demonizado.

A Anvisa achou de proibir os cigarros com sabor, porque estimulam o fumo e podem levar os jovens a esse hábito objetivamente desprezível.

Não vou nem tentar argumentar contra isso, a coisa é palpavelmente absurda e qualquer zé neguinho consegue ver que a tendência não é das mais benévolas enquanto a Anvisa continuar baixando decreto dizendo o que 190 milhões de pessoas podem ou não consumir, principalmente em questões banais como o cigarro (e, diga-se, a questão de incentivar ou não o fumo de menores é absurdamente irrelevante e oportunista nesse caso).

Eu só vou observar que, apesar de várias pessoas de esquerda serem favoráveis a liberação de drogas e à não-criminalização de hábitos privados, os argumentos que eles usam dão munição para os super-burocratas da Anvisa. Enquanto a ideia adotada não for a de John Locke e seus amigos, lá de 1600 e bolinha, vamos continuar recebendo notícias pela manhã de que um dos nossos hábitos foi subitamente proibido e a gente nem viu.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Existe um ponto ótimo de biodiversidade?

Qual seria o nível adequado de proteção à biodiversidade?

A pergunta é menos óbvia do que parece. Hoje em dia a tendência é considerar que a biodiversidade é um bem (público) e que, portanto, é necessária legislação para protegê-la.

Tudo bem, mas quanto? Deve haver um parâmetro para se saber qual o nível de proteção de florestas, rios, mares, etc.

Qual é o objetivo da política ambiental, então?

Pode-se enunciar no mínimo duas alternativas:

1) Todas as espécies (animais/vegetais/etc) devem ser preservadas;

2) Ao menos algumas espécies (animais/vegetais/etc) devem ser preservadas.

A opção (1), embora esteja embutida no discurso ecológico da maioria dos ambientalistas, é uma posição extremamente radical que precisa de argumentos muito fortes para ser defendida.

Afinal, a manutenção de espécies insustentáveis tem um custo, e impedir que quaisquer espécies venham a se extinguir é uma empreitada que tem custos muito altos.

Como argumentar em favor dessa posição é muito difícil, só resta a opção (2) para os que são a favor da biodiversidade.

Mas, se você é levado a defender essa alternativa, os argumentos passam a ser pontuais: por que se deve defender determinada espécie? Por que não outra? Quais os benefícios presentes e futuros da manutenção dessas espécies? E assim por diante.

Em resumo, defender a biodiversidade em si não é uma posição tão óbvia quanto parece.

(Além do mais, é fato que há vários benefícios na extinção de algumas espécies; o caso mais óbvio é o de bactérias e vírus que causam doenças.)