quarta-feira, 18 de abril de 2007

Blame the state

Tudo o que acontece de ruim na sua vida tem a interferência do governo. Às vezes parece que algo aconteceu independentemente da ação governamental, mas, analisando a fundo, o governo também estava lá, impedindo que algo funcionasse direito na sua vida. Este texto pretende ser não mais que um pequeno apanhado dessas pequenas coisas aparentemente banais.

Para começar, as filas. Filas não são naturais, e tudo o que não é natural na organização humana é causado pelo governo. Quando se vai à padaria com mais pressa, é impossível não se deixar perturbar pela demora na fila. O governo é o único responsável por essa demora.

Quando estipula regras para a abertura de padarias (e bancos, supermercados e outros estabelecimentos em que se formam filas), o governo força que milhares de empreendedores ansiosos por entrar no mercado fiquem de fora por tempo demais, até que eles desistam ou não sejam mais suficientes para atender à demanda. Quando obriga que seja impressa uma nota fiscal a cada compra, além de obviamente elevar os preços dos produtos, o governo aumenta o tempo de fila. Quando o Estado resolve que o pão deve ser vendido por quilo, tira do mercado alguns mercadinhos que tinham no pão apenas um produto adicional e obriga o consumidor a encarar não só a fila do mercadinho, mas também a da padaria.

Claro, algumas filas existiriam mesmo sem a interferência do Estado: filas para comprar ingressos para um show, por exemplo, ou filas para entrar na melhor boate da cidade. Mas essas filas seriam extremamente reduzidas, porque sem Estado os cambistas estariam livres para negociar.

Quando seu filho se dá mal na escola, a culpa é do governo, também. É ele quem estipula regras de como, quando e quanto deve ser ensinado ao seu filho. O governo, ao regulamentar a educação, impede que você procure uma escola que se adapte ao estilo dele, obrigando, assim, seu filho a se adaptar à escola que freqüenta. Os métodos de ensino eficazes para alguns não funcionam com todos, e um dos prejudicados pode ser seu filho.

E, se seu encanamento entupiu, não pense duas vezes antes de acusar o Estado. Ele é quem impede, através de órgãos como o CREA, por exemplo, que formas diferenciadas de construção se firmem, porque exige que tudo seja devidamente fiscalizado e inspecionado, o que aumenta e inviabiliza o preço dos encanamentos autolimpantes (que, por sinal, economizam bastante no longo prazo por não exigirem manutenção – e aqui o governo também gasta mais do seu dinheiro).

Na conta de telefone, energia e água como no alto custo de um iPod e na quase impossibilidade de se assinar internet banda larga, lá está o Estado. Em cada pequeno defeito da sua vida, em cada infortúnio, lá você o enxerga, sempre piorando cada coisa que poderia dar certo. No atraso dos aviões como no preço da gasolina e no dos livros; no alto preço de uma geladeira como no do videogame e seu controle. Quando você tropeça na rua ou quando não consegue emprego. Tudo é culpa do Estado e sobre ele deve recair a ira de cada um que já foi assaltado, estuprado, seqüestrado; qualquer um que conheceu alguém que foi assassinado. Ao Estado deve-se culpar pela impossibilidade de se manter uma segurança privada mais eficiente que a pública. O que não se pode querer é que o culpado por todos esses crimes continue administrando a forma como tudo é feito, mas isso é assunto para outro dia.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Não me mate, eu produzo muitas riquezas

Ontem, após ter noticiado o massacre na universidade americana, a âncora do Jornal da Globo disse, segundo a minha memória: "E a pergunta que fica é: como esse massacre pôde acontecer no país que mais produz riquezas no mundo?" Gostaria que, se possível, alguém me indicasse estudos que apontam a proporcionalidade inversa entre massacres em universidades e produção de riquezas.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Relativismo moral, direito natural, senso comum e opressão

Um comentário que deixei no blog do Luiz, pertinente para cá:
1) O que normalmente chamam por aí de ética subjetiva, ou relativismo moral, é só mais um nome para "preferência". Se você diz "a ética é completamente subjetiva", isso implica que qualquer pessoa pode fazer o que quiser, sem qualquer restrição. Eu diria que "ética subjetiva" é uma contradição em termos - ética só pode ser objetiva, se não for passa a ser "vontade", "preferência".

2) Quando algumas pessoas dizem que as outras não têm direitos, isso não vai apenas contra a nossa concepção de direitos (propriedade sobre o próprio corpo e sobre os recursos escassos originalmente sem dono), vai também contra o senso comum. Todas as pessoas reconhecem intuitivamente que as outras têm direitos. Quando as pessoas se revoltam com o regime nazista, não é apenas uma preferência estética que elas estão demonstrando. Elas pensam que o fato de o regime ter matado e torturado milhões foi objetivamente errado. Veja o que Roderick Long diz:
"Most critics of Natural Law assume that the burden of proof lies with the proponent of Natural Law — presumably because they see Natural Law as something bizarre and implausible, something one couldn't sensibly believe unless there were a knock-down argument for it. But in fact, to believe in Natural Law is simply to believe that there are moral standards that transcend the practices and customs of any given community — that there are rational grounds for condemning the Nazi regime as immoral, that it is possible to be justified in so condemning it, even if we assume that what the Nazis did was perfectly in accordance with the values of Nazi culture. When we condemn Nazism, we don't ordinarily take ourselves to be expressing a purely personal, subjective preference, like the preference for chocolate over vanilla; rather, our ordinary practices of praising and condemning seem to implicitly assume that there are objective moral standards, i.e., that there is a Natural Law to which manmade laws are answerable."
É por isso que me parece que adotar a terminologia "lei natural" não é absurdo, porque é o mesmo princípio que ocorre a todos quando se pensa em "justiça".

3) O niilismo stirneriano adotado pelos anarco-individualistas contradiz o que eles próprios pregam (fim da opressão, etc). Aliás, a própria noção de opressão individual (e de indivíduo) perde o sentido.

4) Sobre a "opressão" da lei natural, bom, eu já vi socialistas (do tipo coletivista-autoritário) dizendo que é o sistema econômico que "obriga" as pessoas a trabalhar pra viver, que o trabalho não é um "fim" mas um "meio". Se ele tivesse qualificado a afirmação, dizendo que o sistema econômico vigente explora os trabalhadores e os torna mais pobres, eu concordaria. Mas é o mesmo caso da opressora lei da gravidade, que impede as pessoas de voar. É como aquela idiotice do "Manifesto contra o trabalho".

domingo, 8 de abril de 2007

Chama-me de qualquer coisa, mas fica certo de que qualquer coisa significará o que eu quero dizer

Um dos maiores problemas da atualidade – e eu falo sem medo de exagerar ou extrapolar meus limites – é a mania de criar minorias, dividir, separar, isolar, restringir, limitar, formar grupos cada vez menores para ser definidos por uma palavra que, sem perda de qualidade, poderia definir muito mais elementos do que de fato define.

Cada um deseja ter para si um nome exclusivo, porque não nota que todas as teorias em que acredita são semelhantes às do outro, que adota outro nome para si e acaba forçando uma diferença baseada na mera rivalidade: “apesar de iguais, nós nos odiamos. Por isso somos diferentes”. Não notam que até no ódio mútuo são semelhantes, porque seus olhos estão cegos à possibilidade de, quem sabe, mudar de nome.

Isso acontece tanto com os comunistas – P-SOL, Judean People’s Front, People’s Front of Judea, Popular Front of Judea e PC do B – quanto com os anarquistas – Anarco-capitalismo, anarco-individualismo – e com os social-democratas, que não deixam de ser comunistas – PT, PSDB, DEM. Não há como distinguir um único ideal díspare entre esses grupos, apenas o ódio irracional dedicado ao semelhante justamente pelo fato de ser semelhante.

Qualquer pessoa minimamente interessada por política é capaz de perceber que “Social-democracia” é democracia e que se interessa pelos trabalhadores – afinal, esse “social” deve servir para algo. De fato, qualquer democracia funciona pelos e para os trabalhadores: eles são a verdadeira maioria; são eles que decidem, no final – eu não me lembro de haver, na história, um país com maioria desempregada.

Também o comunismo do P-SOL e o do PC do B são iguais, já que ambos acreditam que a regulamentação estatal em busca do bem geral é necessária para o pleno desenvolvimento da sociedade e para o bem-estar social. P-SOL e PC do B, entretanto, como os partidos populares da Vida de Brian, filme do Monty Phyton, sempre se desgastam enquanto lutam entre si.

A chamada “esquerda”, porém, age para reduzir as diferenças entre si, faz alianças com seus semelhantes, e esse é o motivo de sua força crescente – não uma “revolução gramscista”. Quando estão aliados (numa democracia isso fica claro), o poderio dos partidos (escolas) multiplica-se, assim como a sua influência. Tudo graças ao reconhecimento de que se pensa igual – ou, no mínimo, de forma muito parecida. O que é preciso, como estratégia de fortalecimento, é a união aos partidos (escolas) de pensamentos semelhantes, o reconhecimento de que não se está só – estar só, que, geralmente, é descrito como angustiante, parece, entretanto, agradar à maioria; talvez pelo sentimento de exclusividade, de propriedade da idéia, do nome.

Naturalmente, não se deve deixar enganar por aqueles que não têm coerência com suas idéias, que acreditam que é possível, por exemplo, ser liberal no aspecto econômico e conservador no social, como os conservadores, que aparentemente acham que a sociedade está desvinculada de sua economia, como se a economia fosse algo além ou aquém da sociedade. Não se deve, na ânsia pela conquista de espaço, aliar-se àqueles que não têm consistência ou que discordam de você. Uma aliança entre liberais e conservadores apenas serviria para desvirtuar os primeiros, já que os segundos são incapazes de desenvolver qualquer teoria com o mínimo de consistência.

De minha parte, agora, abdico a qualquer nome ou título para me aliar àqueles que concordam com minhas idéias, porque as palavras são apenas o que fazem delas, significam apenas o que lhes foi concedido, e não me importo de abrir mão da propriedade de uma palavra para conquistar aliados sob outro rótulo de significado semelhante.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Lola - Truman Capote (1964)

Sim, sob todos os aspectos era um presente curioso. Espantoso, realmente. Pois eu já tinha bichos suficientes: dois cães, um buldogue inglês e um terrier Kerry. Além disso, nunca fui entusiasmado por pássaros. Na verdade, confesso certa aversão por eles: quando uma gaivota vira e mergulha no mar, por exemplo, minha propensão é entrar em pânico e sair correndo. Certa vez, quando eu tinha cinco ou seis anos, um pardal entrou voando pela janela do meu quarto e ficou preso lá dentro: voou de um lado para o outro até eu quase desmaiar de emoções em que a piedade aparecia, mas o medo predominava. Por isso fiquei meio desanimado ao ganhar o presente de Natal de Graziella: um corvo jovem medonho com a asa cruelmente cortada.

Agora, mais de doze anos se passaram, pois isso aconteceu na manhã de Natal de 1952. Eu morava na Sicília na época, nas montanhas; a casa, situada no meio de um olival prateado, era feita de pedra rosa clara; tinha muitos quartos e um terraço com vista para o Etna e seu cume nevado. Lá embaixo víamos, nos dias ensolarados, o mar azul como um olho de pavão. Era uma linda casa, embora não fosse muito confortável, principalmente no inverno, quando o vento do norte grita e uiva, quando tomamos vinho para esquentar e mesmo assim o toque do piso de pedra é gelado como o beijo de um cadáver. Qualquer que seja o clima, inverno rigoroso ou verão escorchante, a casa não seria habitável sem Graziella, a moça do vilarejo que vem todas as manhãs e fica até depois do jantar. Ela tinha dezessete anos, era uma jovem vigorosa de corpo atarracado e forte: tinha pernas de um lutador japonês - ligeiramente arqueadas, com coxas grossas. Seu rosto, porém, era muito formoso: olhos castanhos e dourados como o brandy local; faces rosadas; sobrancelha castanha fina; o cabelo preto escovado rente ao crânio, mantido em sua posição graças a um par de pentes espanhóis. Levava uma vida dura, e dela reclamava constantemente, de um jeito divertido, jovial: o pai era o bêbado da aldeia, ou pelo menos um deles; a mãe, uma carola histérica; e Paolo, o irmão mais velho - ela o adorava, embora todas as semanas ele a espancasse e lhe roubasse o salário. Éramos bons amigos, Graziella e eu, e naturalmente trocávamos presentes no Natal. Dei-lhe um suéter e um colar de contas verdes. E ela, como retribuição, trouxe-me o corvo.

Já contei que ele era feio. E como. Um ser simultaneamente temível e patético. Por mais que me arriscasse a ofender Graziella, eu o teria libertado assim que fosse capaz de se virar sozinho. Mas as asas haviam sido cortadas muito fundo, jamais conseguiria voar; só andava, manquitolando, o bico preto aberto como a boca de um idiota, os olhos baços, perdidos. Graziella subira ao alto das encostas vulcânicas acima de Bronte e o capturara na ravina onde os corvos faziam seus ninhos, um vale pedregoso de espinheiros e arbustos retorcidos. "Eu o peguei com uma rede de pesca", contou. "Corri no meio dos pássaros. Quando atirei a rede, dois se emaranharam. Deixei um ir embora. O outro, este aqui, guardei numa caixa de sapato. Levei-o para casa e cortei as asas. Os corvos são muito espertos. Mais do que os papagaios. Ou que os cavalos. Se a gente fende sua língua, eles aprendem a falar." Graziella não era cruel, apenas assumia a indiferença mediterrânea ao sofrimento dos animais. Revoltou-se quando a impedi de mutilar a língua da ave; a bem da verdade, perdeu completamente o interesse pela pobre criatura, cujo bem-estar tornou-se minha penosa tarefa.

Eu o mantinha num quarto vago, sem mobília; ele vivia lá trancado, feito um parente insano. Pensei, bem, as asas vão crescer logo, aí ele poderá ir embora. Mas o Ano Novo chegou e se foi, as semanas passaram e finalmente Graziella explicou que meu presente de Natal só conseguiria subir aos céus novamente em seis meses.

Eu o detestava. Odiava visitá-lo; aquele era o quarto mais frio da casa, e o pássaro uma visão lamentável, impecavelmente triste. Contudo, a consciência de sua solidão me empurrava para lá - embora no início ele desse a impressão de gostar ainda menos do que eu das visitas: ficava quieto num canto, de costas para mim, um prisioneiro silencioso entre a tigela de água e a de comida. Com o tempo, porém, percebi que minha presença não era mais ressentida; ele parou de me evitar, olhava nos meus olhos e, com uma voz rouca e desafinada, emitia ruídos aparentemente amigáveis: cacarejos abafados. Começamos a fase das descobertas mútuas: descobri que ele gostava que lhe coçassem a cabeça, ele entendeu que suas bicadas de brincadeira me divertiam. Logo ele aprendeu a se equilibrar na ponta da minha mão, depois a sentar no meu ombro. Adorava me beijar - de leve, o bico roçava no meu queixo, nas faces, no lóbulo da orelha. Mesmo assim, continuei a sentir uma certa repulsa por ele, creio: a cor fúnebre, a sensação de tocar suas penas, odiosa (para mim) como sentir a pele de um peixe ou o couro de uma cobra.

Certa manhã - era final de janeiro, as amendoeiras estavam floridas, pois a primavera chega cedo na Sicília: uma mistura de perfume e flores cobria a paisagem - descobri que o corvo havia fugido. O quarto em que vivia tinha portas tipo veneziana que davam para um jardim; durante a noite as portas se abriram, sabe-se lá como; talvez por causa do siroco, que soprava na época (trazendo consigo a areia fina do deserto africano). O pássaro desaparecera. Procurei no jardim inteiro; Graziella subiu o morro. A manhã passou, e a tarde. Ao anoitecer, já havíamos procurado "em todos os lugares": no meio dos espinhos do capão dos cactos, entre os túmulos do cemitério vizinho, dentro de uma caverna que cheirava a urina de morcego. Gradualmente, no decorrer de nossa busca, um fato finalmente foi admitido: eu gostava muito de Lola. Lola! O nome surgiu como uma lua cheia no céu, espontâneo e inevitável; até o momento, eu não lhe dera um nome: fazer isso, pensei, seria admitir que ela era uma aquisição permanente.

"Lola?"

Chamei-a da janela. Finalmente, fui para a cama. Claro, não consegui dormir. Tive visões: Lola, seu pescoço entre as presas de um gato; um gato vermelho a correr com ela para realizar seu banquete numa toca manchada de sangue e cheia de penas. Ou Lola, impossibilitada de voar, escondida, até que a fome e a sede a liquidassem.

"Lo-o-o-o-la-a-a?"

Não havíamos procurado dentro de casa. Talvez nunca tivesse saído, só passado por uma porta e entrado por outra. Acendi uma vela (a eletricidade quase nunca funcionava); fui de quarto em quarto; e, num deles, uma saleta sem uso, a vela iluminou um par de olhos familiares.

"Ah, Lola."

Ela subiu na minha mão; de volta ao quarto, eu a transferi para a guarda da cama de latão. Ela se agarrou com força e enfiou a cabeça cansada debaixo de uma das asas mutiladas. Logo pegou no sono, e eu também, assim como os cães (encolhidos e próximos da lareira ainda rubra do aromático fogo de lenha de eucalipto).

Os cachorros nunca tinham visto Lola, eu estava meio ansioso quando a apresentei a eles na manhã seguinte, pois os dois, e principalmente o Kerry, eram capazes de repentes malucos. Mas se era para ela ficar em casa conosco, isso precisava ser feito. Eu a pus no chão. O buldogue a cheirou com seu nariz achatado, trufado, depois bocejou, mas não de preguiça e sim de constrangimento; todos os cachorros bocejam quando ficam sem graça. Obviamente, não sabia o que ela era. Comida? Brinquedo? O Kerry concluiu que era brinquedo e lhe deu uma patada. Encurralou-a num canto. Ela reagiu, bicou seu focinho; Lola gritava de um modo rude e violento, como se proferisse os piores palavrões. Assustou o buldogue; ele correu para fora do quarto. Até o Kerry recuou - sentou-se e ficou olhando para ela, deslumbrado.

Dali para a frente os cães passaram a respeitar Lola para valer. Mostravam por ela a maior consideração; ela não dava a mínima. Usava a tigela de água deles para tomar banho; na hora das refeições, sempre insatisfeita com seu prato, atacava o deles, servindo-se do que lhe agradava. Transformou o buldogue em poleiro particular; em pé nas costas largas do cão, passeava pelo jardim como uma equilibrista de circo em cima do cavalo. De noite, na frente da lareira, ela se aninhava entre os dois, e se eles se mexessem ou fizessem algo que perturbasse o seu descanso, levavam uma bicada.

Lola era muito nova quando Graziella a apanhou - não passaria de um filhote. Em junho já hava triplicada de tamanho, crescera feito uma galinha. As asas haviam crescido de volta, ou quase. Mesmo assim ela não voava. A bem da verdade, recusava-se. Preferia andar. Quando os cães saíam a passear, ela ia junto com eles, saltitando. Certo dia me ocorreu que Lola talvez não soubesse que era um pássaro. Vai ver ela pensava ser um cachorro. Graziella concordou comigo, nós dois rimos muito; achamos tudo muito divertido, e nenhum dos dois imaginou que o engano de Lola acabaria certamente em tragédia: a maldição que aguarda quem recusa sua própria natureza e insiste em ser algo diferente do que realmente é.

Lola era ladra; se não fosse, jamais teria usado as asas. Contudo, o tipo de artigo que gostava de furtar - coisas brilhantes, uvas, canetas-tinteiro, cigarros - normalmente ficavam em lugares altos; portanto, para chegar ao tampo da mesa ela ocasionalmente dava um (literal) salto voador. Certa vez, pegou um par de dentaduras. Os dentes pertenciam a uma convidada, uma senhora idosa e difícil de lidar. Ela disse que não achava a menor graça e começou a chorar. Para piorar, ignorávamos onde Lola escondia seus tesouros (segundo Graziella, todos os corvos são ladrões e invariavelmente possuem um esconderijo para os bens furtados). O único procedimento sensato seria tentar fazer com que Lola revelasse onde escondera a dentadura. Ela admirava o ouro: um anel de ouro que eu usava às vezes provocava seu olhar de cobiça. Nós (Graziella e eu) montamos uma armadilha com o anel: deixamos a jóia em cima da mesa de almoço, onde Lola comia migalhas, e nos escondemos atrás da porta. No momento em que se julgou sozinha, ela pegou o anel e correu para fora da sala de jantar, percorreu o corredor e entrou na "biblioteca" - uma sala pequena e abafada, cheia de edições baratas dos clássicos, propriedade do inquilino anterior. Ela pulou do chão até uma poltrona, e de lá para a estante; ali, como se fosse uma fenda na montanha que conduzia à caverna de Ali Babá, ela se esgueirou entre dois livros e sumiu atrás deles: evaporou, como Alice através do espelho. A obra completa de Jane Austen ocultava seu tesouro, que encontramos logo. Além da dentadura furtada, ele consistia em um chaveiro com as chaves do meu carro, desaparecido havia algum tempo (não desconfiei de Lola, pensei que o perdera), um monte de dinheiro picado - milhares de liras reduzidas a pedacinhos, como se destinadas a um ninho futuro, cartas antigas, meu melhor par de abotoaduras, elásticos, pedaços de barbante, a primeira página de um conto que eu parara de escrever por não achar a primeira página, uma moeda norte-americana de um centavo, uma rosa seca, um botão de cristal.

No início daquele verão Graziella anunciou seu noivado com um rapaz chamado Luchino, que era garçom, tinha cintura fina, cabelos oleosos encaracolados e perfil de artista de cinema. Falava um pouco de inglês, um pouco de alemão, usava sapatos de camurça verde e possuía uma Vespa. Graziella tinha motivos para cnsiderá-lo um noivo formidável; mesmo assim, não gostei da história. Na minha opinião, ele era comum e saudável, normal demais para um sujeito ladino como Luchino (que tinha reputação de ser gigolô semiprofissional de turistas solitárias: solteironas suecas, viúvas e viúvos alemães), embora tais atividades, a bem da verdade, não fossem incomuns entre os jovens do vilarejo.

Mas o regozijo de Graziella era irresistível. Ela espalhou fotografias de Luchino pela cozinha inteira, em cima do fogão, em cima da pia, na parte interna da porta da geladeira, até no tronco da árvore que crescera na frente da janela da cozinha. A paixão, claro, interferiu no modo como ela cuidava de mim: agora, ao etilo siciliano, ela tinha as meias do namorado para cerzir, sua roupa para lavar (e era uma montanha!), isso sem mencionar as horas que dedicava ao preparo do enxoval de noiva, à roupa de baixo bordada e a experimentar o véu de noiva. Com freqüência, no almoço, ela me servia um prato de espaguete frio e duro, e ovos fritos frios no jantar. Ou absolutamente nada; ela vivia com pressa, correndo para encontrar o namorado na piazza, para um passeio ao crepúsculo. Contudo, em retrospecto, sua felicidade não me causava inveja; serviu apenas como prelúdio para um desfecho amargo, infeliz.

Certa noite de agosto seu pai (muito amado, apesar das bebedeiras) recebeu (de um turista norte-americano) uma dose de gim em copo alto, com sugestão de tomar tudo de um só gole, o que lhe causou um derrame que o deixou paralítico. No dia seguinte, um acontecimento ainda mais terrível: Luchino, percorrendo uma estradinha interiorana na Vespa, fez uma curva e atropelou uma menina de três anos, matando-a instantaneamente. Levei Lucrino e Graziella de carro ao enterro da menina; depois, na volta para casa, Luchino se manteve quieto e não chorou, mas Graziella gemia e chorava como se tivessem partido seu coração: presumi que pranteava a criança morta. Mas não, Luchino corria o risco de ser preso, e deveria pagar uma indenização enorme - o casamento não seria realizado em breve, nem nos próximos anos (se é que ocorreria um dia).

A pobre moça ficou desolada. O médico recomendou repouso. Um dia fui visitá-la, para saber como estava passando. Levei Lola comigo, pretendedo animar a enferma. Em vez disso, a visão do pássaro a horrorizou; ela gritou. Disse que Lola era uma bruxa, que lola tinha o malocchio, o mau-olhado, e que a dupla tragédia, o derrame do pai e o acidente de Luchino, haviam sido obra de Lola, castigo por ela ter capturado e cortado as asas do pássaro. Ela afirmou que era verdade: qualquer criança sabe que os corvos são materializações de espíritos malignos e sombrios. E completou: "Nunca mais entrarei em sua casa".

E não voltou, mesmo. Nem qualquer outra empregada. Por conta das acusações de Graziella, criou-se o mito de que a minha casa estava impregnada de mau-olhado. Não era só Lola, eu também possuía o malocchio. Não se poderia acusar alguém de coisa pior, na Sicília. Para completar, não havia defesa contra tal acusação. No começo eu brincava com isso, embora não houvesse nada de humorístico no episódio. As pessoas faziam o sinal da cruz quando encontravam comigo na rua; ou, assim que eu passava, formavam um chifrinho com as mãos, apontando para mim - um gesto da magia negra destinado a anular o poder de meus olhos malignos, enfeitiçados por trás dos óculos de tartaruga.

Acordei certa vez, por volta da meia-noite, e decidi (pronto!) ir embora. Partir antes do amanhecer. Foi uma decisão e tanto, eu vivia ali havia dois anos e não gostava da idéia de ficar sem um teto, de repente. Desabrigado, com dois cães enormes e um pássaro fora da gaiola. Mesmo assim, pus as coisas no carro: parecia uma cornucópia: sapatos, livros, vara de pescar saindo pela janela; com alguns empurrões, consegui enfiar os cachorros no carro. Mas não havia sobrado lugar para Lola. Ela teve de se empoleirar no meu ombro, o que não estava longe do ideal, pois ela era uma passageira nervosa, a cada virada ou freada brusca ela gritava ou me sujava.

Cruzamos o estreito de Messina e a Calábria, para chegar a Nápoles e a Roma. Uma viagem agradável de recordar: por vezes, quando estou quase pegando no sono, revejo algumas cenas. Um piquenique nas montanha calabresas: céu azul intenso, rebanho de cabras adiante, os assobios breves e agudos do pastor de cabras, com um apito de bambu. E Lola a devorar pedacinhos de pão embebidos em vinho tinto. Ou Cape Palinuro, uma praia calabresa escondida, na beira do bosque, onde tomávamos o sol ainda quente de outubro quando um porco selvagem saiu do mato e correu em nossa direção como se pretendesse nos atacar. Só eu fui intimidado: corri para o mar. Os cães se prepararam para a defesa, com Lola a seu lado a bater asas e gritar para encorajá-los, com uma voz esganiçada; juntos, conseguiriam afugentar o porco de volta para o bosque. Naquela mesma tarde chegamos até as ruínas de Paestum: fim de tarde magnífico, o céu parecia outro mar, a meia-lua era um navio ancorado a balançar no céu de estrelas e em torno de nós o mármore enluarado, os templos caídos de uma época distante. Dormimos na praia, ao lado das ruínas; ou eles dormiram - Lola e os cães: fui atormentado pelos mosquitos e temores da mortalidade.



Decidimos passar o inverno em Roma, primeiro num hotel (o gerente nos expulsou após cinco dias, e nem chegava a ser um estabelecimento de primeira classe), depois num apartamento no número 33 da Via Margutta, rua estreita freqüentemente retratada por pintores ruins, famosa pelo número de gatos que ali se abrigam, felinos sem dono que vivem nos pátios enormes, dependendo da caridade das velhas meio doidas que todos os dias percorrem os esconderijos dos gatos com sacos de restos de comida.

Nosso apartamento ficava na cobertura: para atingi-lo era preciso subir seis lances de escada escura e íngreme. Tínhamos três cômodos e uma sacada. Aluguel o apartamento por causa do terraço; em oposição à vista vasta de meu terraço na Sicília, a sacada oferecia um cenário tranqüilo em miniatura, perfeito como a luz de velas: vários telhados romanos, cor-de-laranja e ocre esmaecidos, e algumas janelas (por trás das quais alguns momentos de vida familiar podiam ser acompanhados). Lola adorava a sacada. Raramente saía de lá. Gostava de se empoleirar na beirada do parapeito de pedra e observar o tráfego na rua de pedras arredondadas, lá em baixo: as velhas que alimentavam os gatos da Margutta; um músico ambulante que aparecia em todas as tardes e tocava gaita de foles até que alguém, sentindo-se chantageado, lhe desse uma moeda; um bem-apessoado afiador de facas que anunciava seus serviços com uma canção entoada no mais feroz barítono (as donas de casa corriam!).

Quando o sol brilhava Lola tomava seu banho no parapeito da sacada. Uma sopeira de prata lhe servia de banheira; depois de uma rápida imersão na água rasa, ela abria e fechava as asas, e como se expulsasse uma capa de cristal, sacudia o corpo, inflava as penas; mais tarde, por longas e prazerosas horas, ela tomava sol com a cabeça virada para trás, o bico entreaberto, os olhos fechados. Observá-la era uma experiência apaziguante.

O signor Fioli pensava assim. Sentado à sua janela, que ficava exatamente em frente da sacada, ele acompanhava todos os movimentos de Lola, enquanto ela estivesse visível. O signor Fioli me interessava. Dei-me ao trabalho de descobrir seu nome e um pouco de sua história. Ele tinha 93 anos, e aos noventa perdera a capacidade de falar: quando queria atrair a atenção da família (uma neta viúva e cinco bisnetos adultos) ele tocava uma sineta. Fora isso, e embora nunca saísse do quarto, parecia perfeitamente capacidado a cuidar de si. Sua visão era excelente: via tudo que Lola fazia, e se ela cometia um ato que chamasse a atenção pela delicadeza ou estupidez, um sorriso adoçava seu rosto de idoso sério, muito viril. Ele havia sido marceneiro, a empresa que fundara ainda funcionava no térreo do prédio em que residia; três de seus bisnetos trabalhavam lá.

Certa manhã - na mesma manhã que antecede o Natal, quase um ano após o dia em que Lola entrou em minha vida - enchi a sopeira de Lola de água mineral (ela preferia tomar banho com água mineral, quanto mais gasosa melhor), levei-a para a sacada e acenei para o signor Fioli (quye, como de costume, estava sentado na beira da janela, esperando para ver o banho de Lola), depois entrei, sentei-me à escrivaninha e comecei a escrever algumas cartas.

De repente, ouvi o tilintar da sineta do signor Fioli: um só já familiar, pois eu o escutava vinte vezes ao dia; mas nunca soara daquele jeito: toques rápidos como a batida de um coração excitado. Eu me perguntei o porquê daquilo e fui espiar: vi Lola, a adoradora do sol, bestificada e encolhida no parapeito - e, atrás dela, um gato amarelado e enorme, um gato que se esgueirara pelos telhados e agora se arrastava sobre a barriga no parapeito, com seus olhos verdes a brilhar.

O signor Fioli tocou a sineta. Eu gritei. O gato saltou, exibindo as garras. Mas, no último segundo, Lola percebeu o perigo. Ela pulou do parapeito, no espaço vazio. O gato decepcionado, o signor Fioli e eu acompanhamos a sua extradordinária descida.

"Voa, Lola, voa!"

Suas asas, embora abertas, permaneciam imóveis. Lenta e gravemente, como se estivesse presa a um pára-quedas, ela foi descendo, descendo.

Uma caminhonete passava na rua, lá embaixo. Primeiro pensei que Lola fosse cair na sua frente: seria um perigo terrível. Mas o que aconteceu foi pior, apavorante, terrível: ela pousou em cima dos sacos que estavam sendo transportados na caminhonete. E ficou lá. E a caminhonete seguiu em frente: dobrou a esquina e sumiu da Via Margutta.

"Volte, Lola, volte!"

Corri atrás dela; deslizei pelos seis andares de escada de pedra lisa; caí, ralei o joelho, perdi os óculos (eles saltaram dos meus olhos e bateram na parede). Lá fora, corri até a esquina onde a caminhonete virara. Ao longe, para lá da névoa composta de miopia e lágrimas, vi que a caminhonete parara num sinal de trânsito. Mas, antes que eu pudesse alcançá-la, o sinal abriu e a caminhonete, com Lola a bordo, a levou para longe de mim para sempre, perdendo-se no meio do trânsito que circulava pela Piazza di Spagna.

Poucos minutos transcorreram desde o ataque do gato, uns quatro ou cinco. Contudo, precisei de uma hora para refazer meu percurso, subir a escada, abaixar e pegar os óculos quebrados. Enquanto isso, o signor Fioli continuava sentado à janela, esperando com uma expressão consternada, sofrida, surpresa. Quando viu que eu havia retornado ele tocou a sineta e me chamou ao terraço.

Eu lhe disse: "Ela pensava que era outra coisa".

Ele franziu a testa.

"Um cão."

Ele franziu a testa com mais força.

"Ela foi embora."

Ele entendeu. Baixou a cabeça. Eu também.

Adoro o bem geral:

Sempre faz mal pra mim.

Anarco-capitalismo e anarco-individualismo são a mesma coisa

O anarco-capitalismo (como é chamado) é igual ao anarco-individualismo. Pelo menos igual ao anarco-individualismo americano (Warren, Spooner, Tucker etc) - não tenho muita familiaridade para falar de Stirner, por exemplo (embora ele tenha influenciado Tucker).

As bandeiras do anarco-individualismo são as mesmas do anarco-capitalismo. Os ancaps defendem a propriedade privada; os anarco-individualistas também. Spooner e Warren eram explícitos lockeanos. Tucker, proudhoniano, defendia a posse da terra a partir da ocupação e uso (nada inadmissível para um ancap - afinal, entre os liberais, Herbert Spencer, p. ex., chegou a defender o controle comunal da terra). Quanto à propriedade intelectual, em ambos os campos alguns defendem e outros não. Spooner e os demais "natural lawyers" que escreviam na revista Liberty eram notórios defensores da propriedade intelectual. Dos anarco-capitalistas atuais, muitos (acho que até a maioria) defende a extinção das patentes e copyrights. Ou seja, mesma situação do anarco-individualismo.

Se a suposta diferença é que os ancaps apóiam o mercado e os aninds não, é falso. Tucker dizia com todas as letras defender o mercado. De fato, se você defende a propriedade privada, você defende o mercado.

Se a diferença é a de que os anarco-individualistas eram "socialistas", é falsa também, porque eles usavam os termos capitalismo e socialismo de forma diferente ("socialismo" significava a posse do trabalho do próprio produto e "capitalismo" significava o sistema de privilégios monopolísticos ao capital). Os ancaps só usam uma terminologia diferente ("capitalismo" é livre-mercado, "socialismo" é centralização e controle estatal).

A diferença reside no fato de que os ancaps defendem forças privadas de defesa em vez do estado? Mas Tucker também defendia. E Spooner. E Proudhon.

A propósito, não acho que o fato de o anarco-capitalismo seja diferente do anarco-individualismo por causa de uma teoria do valor diferente. Primeiro porque isso não impede que os ancaps, mesmo com uma teoria subjetiva, façam uma análise da exploração estatal. Segundo porque os autores liberais clássicos eram considerados "capitalistas" (embora não usassem o termo, como aliás nem Spooner usava o termo "anarquia") e utilizavam a teoria do valor-trabalho (e, aliás, também faziam uma análise de classe, como os liberais franceses).

Pra mim, só uma teoria do valor não é suficiente para distanciar uma tradição de outra. A diferença tem que ser substancial (até porque não há nem concodância dentro do anarco-capitalismo, e mesmo assim ninguém diz que David Friedman faz parte do "anarco-conseqüencialismo" e Rothbard do "anarco-naturalismo").

Se os rótulos "anarco-capitalismo" e "anarco-individualismo" sumissem de repente e só existisse um rótulo, "anarquismo de mercado", ninguém ia notar a diferença.

O problema, claro, é a reação instantânea dos esquerdistas e anarquistas tradicionais a qualquer coisa que tenha a palavra "capitalismo" no meio. E a escolha infeliz de uma palavra tão dúbia quanto "capitalismo" pra nomear a teoria (não que a palavra "socialismo" seja menos dúbia...).

Mas o ancapismo mereceria uma estudada nem que fosse por curiosidade. Os ancaps realmente se mostraram dispostos a demonstrar a viabilidade do próprio sistema (desenvolvendo a teoria, exemplos históricos, etc). Os outros anarquistas parecem que meio pararam no tempo em Bakunin. (E com infantilidades do tipo "anarquistas de verdade não comem carne".)

terça-feira, 3 de abril de 2007

Como me tornei um liberal

Esse foi um texto que postei há um tempo numa comunidade do orkut, mas esqueci de postar aqui. Então lá vai:
Eu nunca fui marxista, era um tipo de social-democrata senso comum (defensor de cotas, p. ex.). No ensino médio, eu me interessava por história e política e, assim, acabava comprando a versão socialista do mundo dos meus professores. O que eu estranhava, no entanto, era o fato de autores que se diziam "críticos" não rejeitarem tanto a idéia do individualismo. Para mim, era a própria qualidade de indivíduo deles que permitia que eles criticassem qualquer coisa. Me parecia que eles confundiam individualismo com ganância ou egoísmo. Anyway.

No segundo ano do ensino médio, quando eu tinha 16 anos (hoje tenho 19, não faz tanto tempo), eu achei alguma coisa na internet sobre individualismo, e achei incrível existir outra versão dos fatos (estudantes do ensino médio não sabem que existe mais de uma interpretação das coisas, muito embora a maioria que goste de história e política fique xingando os outros de alienados etc). Descobri até que existia uma explicação diferente e mais coerente da crise de 29, achei sensacional.

Mas foi só por causa de um artigo de Alceu Garcia no antigo Indivíduo que eu me interessei definitivamente pelo liberalismo e especificamente por economia. Eu nunca achei que a maior parte das coisas que se dizia sobre economia fazia sentido. Inflação, pra mim, sempre foi expansão monetária e não "aumento geral no nível de preços". Inclusive, em qualquer aula sobre de história do Brasil o encilhamento, nós vemos que foi a expansão desenfreada de moeda que levou a República Velha ao colapso econômico. A partir desse artigo de Alceu Garcia, eu fui procurar mais coisas sobre a escola austríaca (eu já vi essa história sendo contada tantas vezes que podia editar um livro chamado "It Usually Begins with Alceu Garcia"). O que me atraiu nela foi que os austríacos tentavam apresentar uma explicação dedutiva da economia, com conclusões inequívocas.

Só que, embora a escola austríaca fizesse uma defesa convincente da economia de mercado, para mim faltava alguma coisa. Eu precisava de uma defesa moral da propriedade privada. Eu já conhecia a tradição do jusnaturalismo e, para mim, parecia plausível que todos tivessem direito às suas propriedades. Esse é o senso de justiça de todo mundo (não roubar), embora muitas vezes as pessoas não ajam de acordo com ele (como quando elas votam por medidas regulatórias e redistributivas). Enfim, procurando por uma justificativa moral da propriedade privada, eu encontrei Robert Nozick e Ayn Rand. Eles também me atraíram porque não eram anarquistas e na época eu não queria rejeitar completamente o estado. Eu detestei Anarquia, Estado e Utopia, de Nozick. Atlas Shrugged de Ayn Rand também não me convenceu que A = A justificava moralmente a propriedade privada. Foi só quando eu encontrei um artigo de Hans Hoppe sobre o tema que eu me convenci da moralidade da propriedade privada (eu também já li críticas a ele, mas me parecem misguided).

Finalmente, uns seis meses atrás eu comecei a visitar os blogs da libertarian left e, ao ler um debate de Roderick Long com um objetivista, me convenci que o anarco-capitalismo não só é viável, mas é moral e economicamente superior. That's where I stand.