sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Estado vs. governo

(Me ocorreu postar isto enquanto lia o comentário do Richard sobre um post do Oikomania.)

A distinção sociológica entre "Estado" e "governo" é irrelevante. Ela dá a entender que o Estado é uma instituição neutra, como se fosse apenas um instrumento. Mas se o governo é quem controla o Estado, qual a relevância de distinguir entre os dois? O fato de que o governo não é permanente não muda nada. Por que não seria possível que os componentes do Estado se modificassem de tempos em tempos? Qual a utilidade de criar uma palavra só para designar a mudança desses componentes?

Essa distinção provavelmente advém de um desejo de absolver o "Estado" das críticas levantadas contra ele, colocando a culpa de todos problemas que surgem no "governo".

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ainda sobre as escolas

Um amigo comentou algo sobre o post anterior. Segundo ele, a escola poderia ser considerada um "sinalizador". Isto é, ela poderia indicar às pessoas quais são suas inclinações. Através da exposição a diferentes matérias, as pessoas são capazes de saber com quais elas se identificam mais para saber qual profissão ou área acadêmica adotar.

Essa era uma objeção na qual eu já tinha pensado, mas por algum motivo acabei não respondendo no post anterior.

Bom, o primeiro e mais óbvio ponto é que, se as matérias escolares servem apenas como sinalizadores, então não deveria ser obrigatório que as pessoas cumprissem certos padrões para serem aprovadas. Por que ser cobrado numa matéria na qual você, supostamente, deve se interessar voluntariamente?

Notas mínimas para aprovação existem para que as crianças e adolescentes sejam incentivadas a estudá-las. Se elas devem se interessar por algo, elas não podem ser "obrigadas" a estudar qualquer matéria.

Além disso, mesmo que cobranças sejam necessárias, essas cobranças só seriam necessárias naquelas matérias que as pessoas pretendem estudar de fato. Porque não faz sentido que pessoas que queiram estudar história sejam obrigadas a saber vários conteúdos de matemática.

O segundo ponto é que, se as escolas são realmente "sinalizadores", são necessários treze anos para que as pessoas saibam o que querem da vida? Não é um tanto sem sentido dizer que crianças de 9 anos estão sendo "orientadas" para sua vida futura quando estudam "ciências"?

É claro que esses argumentos não implicam na abolição da escola, mas implica, no mínimo, sua reformulação.

Como o próprio Richard observou, até as universidades são "sinalizadores". Mas se até universidades servem para indicar o que as pessoas devem fazer no resto da vida, por que fazer com que elas encarem longos enfadonhos anos de salas de aula?

Um modelo mais razoável, me parece, é o universitário americano, que é dividido em dois: college e university. Durante o college, as pessoas podem cursar as matérias que preferirem quase que livremente. Aí elas fazem os "testes" e vêem para onde pendem as próprias inclinações. No university elas passam a ter uma certa rigidez de currículo. Esse modelo já seria superior ao que existe no Brasil.

De qualquer forma, eu continuo considerando as escolas, no mínimo, irrelevantes. O papel delas como "sinalizadores" é apenas incidental. A mesma tarefa pode ser realizada por outros meios, como eu sugeri no outro post. Mas, no máximo, as escolas são prejudiciais. Não é possível justificar que as pessoas joguem fora anos e anos de suas vidas dentro de salas de aula.

domingo, 21 de outubro de 2007

Por que a escola deve acabar

Quando somos crianças ou adolescentes e vamos para a escola, entre uma aula sobre os componentes da célula e outra sobre movimento uniformemente variado, nós perguntamos aos nossos pais e aos professores: "Para que eu vou precisar disso na minha vida?".

A pergunta faz todo o sentido, você é jovem mas sabe que vai ter obrigações no futuro e talvez até tenha planos em mente. Os professores ou pais, no entanto, não acham que a pergunta faz todo o sentido. De fato, freqüentemente eles riem ou simplesmente desprezam a questão com uma atitude próxima a "Quando você for adulto você vai entender". Mas eu não entendi. E, suspeito, todo aquele que realmente pensou sobre o assunto também não entendeu.

Pois então, para que serve tudo o que você aprendeu na escola? Você provavelmente já esqueceu tudo o que supostamente fazia parte da educação "fundamental" (que deveria ser aquilo estritamente necessário, embora aborde milhões de outros conteúdos). Do ensino médio, imagino que você também não tenha levado nada para sua vida. Você lembra de algum conteúdo seu de biologia? Ou de física? Ou de química? Ou de português? A não ser que seu curso universitário ou seu trabalho lide diretamente com um desses assuntos, você não sabe nada sobre eles. Logo, eles foram uma completa perda de tempo. Teria sido mais produtivo ficar em casa e ver a Xuxa na televisão.

Mesmo que você se recorde do que foi ensinado, para que exatamente você usa esse conhecimento? Além de possivelmente esses anos escolares o terem tornado craque nas perguntas do Show do Milhão ou de A Grande Chance, imagino que sua vida não tenha sido acrescida em muito.

Eu não quero que quem estiver lendo isso ache que eu estou dizendo algo banal. Não. Eu estou dizendo que não apenas quase todo o conteúdo escolar é inútil, mas também que ele é prejudicial às pessoas.

As principais justificativas para que as pessoas sejam obrigadas a atravessar treze anos de educação, até onde eu sei, são as seguintes: (1) Há um conteúdo básico e universal cujo conhecimento é necessário a todos; (2) A escola serve para ensinar a viver em sociedade, como um "instrumento de cidadania"; (3) A escola provê às crianças o espaço e o tempo de socialização que elas não teriam de outra forma.

A primeira justificativa é claramente falsa. O único conteúdo educacional estritamente necessário às pessoas é o domínio básico da língua e de algumas operações matemáticas. As outras matérias são, no máximo, um complemento. O fato de que conteúdos obviamente complementares sejam obrigatórios e que isso seja aceito como natural por todos nos diz muito sobre a cultura que prevalece na sociedade hoje em dia. E, ademais, qualquer um pode testemunhar no orkut que os nossos milhões de alfabetizados (até mesmo em escolas particulares, das quais sai a maioria dos usuários de internet), poucos sabem escrever uma linha em português inteligível. Parem as aulas sobre moléculas cis e trans e os façam estudar concordância verbal.

A segunda justificativa é ridícula e demonstra uma visão totalitária da sociedade. Ela assume que as crianças devem ser doutrinadas a aceitar certos valores que permitam a vida em sociedade. Eu não pretendo aqui entrar nos problemas que uma proposta desse tipo acarreta. Basta dizer que, em primeiro lugar, as crianças não são animais que devem ser domesticados. Além disso, restaria saber quais valores são tão desejáveis à sociedade. Esses valores evidentemente seriam ditados pelos powers that be.

A terceira justificativa é a única que pode realmente ter algum fundamento. Mas, se ela for verdadeira, isso justifica que as crianças sejam obrigadas a freqüentar treze anos de escola? Imagino que não. E outro ponto permanece: essa socialização é desejável? Eu, ao menos, mantenho amizade com não muitos dos meus colegas de escola. Pela minha experiência, eu posso dizer que poucos dos amigos de escola permanecem no futuro. As pessoas, em geral, se tornam amigas daqueles com quem compartilham interesses ou que trabalham no mesmo ramo de atuação. A escola é só um espaço onde as crianças e os adolescentes passam seis horas por dia. Elas não têm nada em comum além do fato de que vão ter prova de matemática na próxima semana. Veja, leitor, o seu próprio caso. Quantos amigos do ensino médio você mantém até hoje? É possível que você tenha nutrido grande amizade por algumas pessoas durante o tempo que passou na escola, mas depois que saiu dela, sua amizade provavelmente morreu. É natural que isso tenha ocorrido. Se você fosse ligar para os seus antigos amigos, o que diria? "Como foi a prova na terça?"?

Esse tipo de socialização é realmente desejável? Quer dizer, não seria melhor colocar a criança em algo em que ela fosse se divertir ou se realizar? Não seria melhor mandar as crianças para uma escolinha de futebol? Para uma aula de balé? De guitarra? Piano? Desenho? Em todos esses ambientes, as crianças se divertiriam e provavelmente se interessariam infinitamente mais pelo que estariam vendo do que pelos conteúdos escolares. Elas também socializariam da mesma forma que na escola, com o diferencial de que, como só uma coisa é ensinada, a possibilidade de que as crianças convergissem a uma só área de interesse seria muito maior. Portanto, a qualidade da socialização seria mais alta.

Isso já responde à possível objeção de que a socialização em si é algo desejável. Mesmo que seja, não se segue que as crianças devam ir para uma escola e aprender conteúdos por que elas muito provavelmente não se interessariam, trancafiadas por várias horas todos os dias. Em outras atividades, as crianças e adolescentes também podem se socializar e se socializar de uma forma muito melhor.

Assim, eu acredito que os argumentos principais que pretendem estabelecer que as crianças devem ir à escola são falsos. Mas se o objetivo principal da escola, ensinar, é em sua maior parte desnecessário e se seu objetivo secundário, a socialização, é cumprido insatisfatoriamente, não há realmente nenhum motivo para que as crianças e os adolescentes continuem freqüentando-a. Nós devemos abandonar o modelo escolar.

Pode-se dizer que as crianças não saberiam desenvolver as próprias potencialidades sem algo como a escola. Porém, a escola não é o único modo de estimulá-las. O homeschooling é uma alternativa perfeitamente válida, e na minha concepção muito superior, ao modelo escolar. Os próprios pais podem ensinar às crianças, e esse acompanhamento de perto permitiria a adoção de um currículo mais adaptado aos interesses delas. Há ainda uma alternativa mais interessante, a do unschooling, que consiste em, basicamente, não direcionar a criança a nenhum caminho específico. Os pais poderiam estimulá-la através de certos livros e materiais didáticos, sem, contudo, fazer qualquer cobrança. Essa abordagem tem a vantagem de incentivar a curiosidade das crianças.

Evidentemente existem críticas a esse tipo de proposta. Pode-se dizer que haveria lacunas no aprendizado de quem não fosse à escola. No entanto, essas lacunas só existem em relação àqueles que freqüentaram as escolas. Como eu já observei, o conteúdo escolar é quase totalmente dispensável. Por isso, deve-se rejeitar essa crítica. Há ainda os que dizem que as crianças podem tender a ter visões distorcidas das coisas. Mas esse perigo não existe nas escolas? Aulas de história e geografia não são constantemente acusadas de doutrinamento? Neste modelo, há a vantagem de que as crianças seriam estimuladas a buscar as respostas por si, sem o peso de uma "versão oficial" pré-imposta pelo professor. Portanto, a escola novamente não resolve a questão.

A escola tem servido como uma espécie de álibi para os pais. Eles precisam trabalhar e querem se livrar dos filhos ao menos por algumas horas por dia. A escola oferece esse alívio. Eles não apenas pensam que estão se livrando de seus filhos, mas também que estão fazendo um bem a eles. Mas, para a criança, a escola é algo prejudicial. O que ela ensina, se ensina, é inútil. As pessoas podem aprender o que lhes interessa por si mesmas. Elas não têm que ficar trancafiadas seis horas por dia por anos num ambiente tedioso, de onde não levarão nem conhecimento nem amizades. As crianças podem se desenvolver muito mais, fazer coisas muito mais interessantes e divertidas, coisas que realmente contribuirão para suas vidas futuras. Elas podem fazer amizades mais duradouras e aprender sobre o que elas realmente gostam e querem para as próprias vidas. Elas não vão perguntar "Para que eu vou usar isso na minha vida?".

Mas isso tudo, é claro, tem um preço, e é um preço que a maioria não está disposta a pagar. Requer o abandono da crença de que a "educação" pode curar todos os males da sociedade -- isto é, a crença de que basta que as crianças e os adolescentes estejam trancados em escolas para que não tenhamos que trancá-los em cadeias. Requer o abandono da fé cega que a maioria tem nas escolas como transformadores sociais. Requer, ainda, que paremos de achar que o fato de que nosso filho tirou uma nota 10 na prova de matemática significa que ele é mais inteligente ou esforçado. Uma vez que esses mitos sejam abandonados, nós poderemos ver com mais clareza quais os reais méritos da educação escolar. Quando isso acontecer, acredito eu, teremos que abandoná-la.

sábado, 20 de outubro de 2007

Mom knows it all

- Vendo Teleton, mãe?
- É só uma vez por ano. Daqui a pouco vou doar alguma coisa.
- Por que você não doa também para o Criança Esperança?
- Não confio nessas coisas em parceria com governos estrangeiros.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

As ridículas discussões sobre videogames

Toda vez que há alguma discussão sobre videogames, é a mesma ladainha: "jogos tornam as pessoas anti-sociais". Os defensores dos videogames então falam das várias instâncias em que os videogames incentivam a socialização em vez de isolar o jogador. A premissa implícita é a de que há algo intrinsecamente bom na socialização, em fazer parte de grupos, ou ao menos no contato com pessoas de carne-e-osso. A premissa é falsa. Não há nada de intrinsecamente positivo em socializar-se. Os efeitos positivos dependem muito mais das pessoas com quem se está socializando do que do próprio mecanismo da socialização. Ou seja, sair e andar de skate com pessoas estúpidas e desagradáveis não tem nenhum valor, digam o que quiserem os psicólogos anti-videogames.

Esse tipo discussão sempre esconde um desejo de impor um estilo de vida às outras pessoas. É como o Serginho Groisman, que não consegue se contentar com o fato de que há pessoas que não se interessam por política e que não gostam de ler. É demais para a mente avançada dele. Da mesma maneira, a cruzada anti-videogames é sempre uma tentativa velada de salvar os jogadores de si mesmos. Porque é impossível que pessoas racionais e perfeitamente saudáveis gostem ou tenham escolhido ficar no computador no MSN ou jogar Metal Gear Solid em vez de ir para a praia pegar sol.

Mas essas pessoas que preferem MSN e Metal Gear Solid a praia e socialização existem e não vão mudar porque tem gente que não gosta do estilo de vida delas. É melhor aceitar isso (Serginho Groisman, esse aviso também serve para você).

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Uma coisa sobre bandas

Por que algumas bandas acham que têm o dever de politizar quem ouve suas músicas? Por que os integrantes delas assumem que só eles são politizados? Devo ter algum problema, eu não estou vendo a correlação entre tocar bateria e saber algo sobre política.

sábado, 22 de setembro de 2007

Lendo agora


Fazia tempo que eu não lia livros de política. Peguei dois agora. The Betrayal of the American Right, de Murray Rothbard, que narra as mudanças no espectro ideológico americano, e The Triumph of Conservatism, de Gabriel Kolko, que é uma reinterpretação da Era Progressista americana.

O livro de Rothbard está bastante interessante até agora; falou da tradição individualista dos anos 1920 nos EUA e como esses autores se localizavam à esquerda do espectro político. Com o New Deal, eles foram rapidamente jogados para a direita e tachados de reacionários. E, afinal, o livro é sobre meu tema preferido: História das Idéias.

Apesar disso, The Triumph of Conservatism me conquistou logo nas primeiras páginas. Eu sempre gostei de ler coisas mais radicais e malucas, e a tese do livro é tudo isso. Basicamente, Gabriel Kolko pretende demonstrar que, ao contrário do que diz o senso comum, na economia americana não havia uma tendência monopolista e concentradora na virada do século XIX para o XX. Pelo contrário, a tendência era de descentralização e competição. Segundo a sabedoria convencional, naquela época emergiam monopólios e trustes do livre mercado, e o governo progressista americano foi convocado para parar essa tendência através da regulação. Gabriel Kolko quer demonstrar o contrário: não só a tendência monopolista não existia anteriormente como as regulações do governo foram desenhadas especificamente para monopolizar o mercado em benefício dos grandes negócios. É um mindblow.

domingo, 2 de setembro de 2007

Privatização

Posto aqui porque divido o blog com alguém que entende do assunto e que vai ler no google reader e está offline no MSN (oi, Frost, como vai?).

Ao post. Se você freqüenta este blog deve ser a favor de privatizar tudo que é coisinha, não? Uma pergunta que me veio: como privatizar? Na verdade, a dúvida maior é outra: como privatizar coisas inúteis? Quer dizer, talvez a forma mais correta de privatizar um hospital seja doá-lo aos funcionários (se não me avisem, sim?). Mas e uma empresa de transporte urbano, que fazer com ela? O transporte deve ser desregulamentado e a empresa extinta. Que fazer com o prédio? Leiloar e dividir seu valor entre os funcionários foi minha primeira resposta, e também a que me pareceu mais certa.

Mas o fato é que é impossível reverter com justiça os danos que o governo causou a toda a sociedade para construir aquele prédio e manter a empresa durante anos e que os únicos beneficiados eram justamente aqueles que trabalhavam ali (claro, não é possível culpá-los, mas é um fato). A única justificativa que achei para que os prédios públicos sejam doados aos funcionários (incluindo aí os hospitais e tudo mais) não me parece mais que alguma apelação da minha formação cristã: eles ficariam desamparados - exatamente como estavam antes.

Agora, refletindo, claro que o desamparo seria culpa do Estado, que os tirou do mercado competitivo, não exigiu especializações etc. E o povo, que tem a ver com isso? É essa a ligação que não acho: por que o povo de um país deve amparar os que foram desamparados pelo Estado? Não tenho muito a ver com o emprego de nenhum funcionário da EMTU, reguladora aqui de Recife. Por que meus impostos devem construir um prédio para ser doado a quem vai trabalhar nele? Talvez - eis-me defendendo a democracia - um leilão de tudo, com plebiscito sobre onde e como aplicar fosse a medida mais justa. Mas surge outro problema, que eles não acabam jamais: como fazer essa votação? Eleições diretas seriam injustas por dois motivos: há mais pobres que ricos e mais impostos de ricos que de pobres (geralmente). Isso tenderia a distorcer também a devolução mais próxima possível da justa.

É isso. Fique à vontade pra responder com outro post, Frost. A casa é sua, fica com Deus.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Ninguém subverte as leis do meu país e sai impune

Estão vendo tudo na TV? O Supremo processa políticos. Isso não quer dizer que eles já foram condenados, mas que, ao menos, serão julgados. É, meu amigo, no Brasil, ninguém passa por cima da constituição. Somos um país de leis. Acabou a era do clientelismo na política nacional. É o amadurecimento da democracia brasileira. (Por sinal, quantas vezes já nossa democracia amadureceu? Vai cair de podre já, já.)

Estamos numa época de êxtase político no Brasil. Estou prestes a fazer um bolão de quanto tempo vai levar para todo mundo quebrar a cara e voltar ao estado de desilusão default -- que é muito melhor, convenhamos; é constrangedor ver gente se empolgando porque Marcos Valério foi indiciado.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Um jogo apropriado?

Final Fantasy Tactics

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Comentários avulsos

Bom, fim de período, não estou com muita paciência para fazer traduções para o Libertyzine, e mesmo que tivesse, estaria sem tempo disponível demais para isso. Enfim, melhor é postar um trecho de um livro do Millôr aqui. É do Homem do Princípio ao Fim, uma peça, com o texto representado, no trecho abaixo, por Fernanda Montenegro e Sérgio Brito:
FERNANDA
Outro problema sério, quando se pinta Adão, é saber se ele tinha ou não barba. Nas pinturas clássicas, ele, em geral, não tem barba quando está no Paraíso e tem barba quando já saiu do Paraíso.

A conclusão:

O castigo por ter comido a maçã foi fazer a barba toda manhã.

Mas há outros problemas metafísicos criados pelo Todo-Poderoso. Aqui mesmo, neste quadro, devidamente numerado, temos quatro desses problemas para o leitor meditar:

1) Responda, amigo.
Adão tinha umbigo?

2) Responda, irmão,
O pássaro,
Já nasce com a canção?

3) O mistério não acaba:
onde anda o bicho da goiaba
quando não é tempo de goiaba?

4) Mestre, respeito o Senhor,
mas não a sua Obra:
que paraíso é esse
que tem cobra?

Mas ali estava Adão, prontinho, feito de barro. Durante muito tempo, aliás, se discutiu se a mulher não teria sido feita antes. Mas está claro que a mulher foi feita depois. Primeiro, porque é mais caprichada. Mais bem acabada.

Deus, nela, desistiu do barro e usou cartilagem. E colocou nela alguns detalhes que têm feito um imenso sucesso pelos tempos afora. Segundo, vocês já imaginaram se a mulher tivesse sido feita antes, os palpites que ela ia dar na confecção do Homem?

- Ah, não põe isso não, põe aquilo! Ih, que bobagem, que nariz feio! Deixa ele careca, deixa! Põe mais um olho, põe! Ah, pelo menos põe um vermelho e outro amarelo, põe! Puxa, você não faz nada do que eu quero, hein? É de barro também, é? Parece um macaco, seu! Você é errado Todo-Poderoso! Ah, não põe boca, não, põe uma tromba! Ficou pronto depressa, hein? Você deixa eu soprar ele, deixa? Deixa que eu sopro, deixa!

Depois de devidamente soprado com o Fogo Eterno, Adão saiu pelo Paraíso experimentando as coisas. Tudo que ele fazia, ou dizia, era completamente original. nunca perdeu tempo se torturando: "Onde é que que eu ouvi essa?" "De onde é que eu conheço esse cara?" Deus, entre outros privilégios, deu a Adão o de denominar tudo. Foi ele quem chamou árvore de árvore, folha de folha e vaca de vaca. E tinha tanto talento para isso que todos os nomes que botou, pegaram.

SÉRGIO
Deus só pediu explicação a Adão no dia em que este batizou o hipopótamo. "Por que hi-po-pó-ta-mo?", perguntou o Todo-Poderoso. E então Adão deu uma resposta tão certa, tão clara, tão definitiva, que Deus nunca mais lhe perguntou nada: "Olha, Mestre - disse ele -, eu lhe garanto que nunca vi um animal com tanta cara de hipopótamo."
On a side note, estou também jogando pela terceira vez Final Fantasy 8, e só agora me ocorre que, além de ser uma linda história de amor, é o jogo mais anarco-capitalista que existe. Afinal, não existem defesas "nacionais", só existem mercenários. Oh, well.

sábado, 14 de julho de 2007

24 contos de Scott Fitzgerald

Estou meio dividido na hora de escolher o melhor conto da coletânea. Mas, bom, não quero dizer "então escolho este, este e este como melhores", não quero parecer indeciso, alguém que foge às decisões importantes, então vou escolher "O menino rico" como o #1. Reproduzirei aqui o começo, que é sensacional, e vocês, se mais que um lê isto aqui, comparam com o original no link dali de cima. Particularmente, achei ótima a tradução de Ruy Castro:
Comece com um indivíduo e, antes que se dê conta, você concluirá que criou um tipo; comece com um tipo e concluirá que o que criou foi — nada. Isso é porque todos somos aves raras, e mais raras ainda no que se passa por trás dos rostos e vozes, naquilo que escondemos dos outros e que nem nós mesmos conhecemos. Quando ouço um homem dizer que é "um sujeito comum, honesto e franco", já sei que ele tem alguma perversão terrível a esconder — e que sua afirmação de ser comum, honesto e franco é apenas uma forma de lembrar a si mesmo o próprio crime.

Não existem tipos, nem generalizações. Existe um menino rico e esta é sua história, não a de seus irmãos.
Agora que já me livrei da responsabilidade de escolher o melhor, não preciso escolher o segundo lugar. Vou deixar bem vago qual é o segundo lugar do livro, dizer que muitos estão empatados na segunda posição e tal. Pois então, "Uma viagem ao estrangeiro", "O amor à noite", "Um belo casal" e "Os nadadores" são incrivelmente bons, de modo que realmente não posso colocar um acima do outro.

Mas eu posso até dizer que tenho um carinho especial pelos dois últimos. O tom dos contos de Fitzgerald é quase sempre pessimista e eu, com meu espírito juvenil, ficava sempre torcendo para os protagonistas não se darem por vencidos. Enquanto os personagens observavam apaticamente suas vidas irem pelo ralo, eu ficava com aquele nó na garganta, querendo obrigá-los a fazer algo, a não aceitar aquela situação, a revertê-la, a humilhar quem os colocou nela, a fazê-los se sair por cima. "Os nadadores" e "Um belo casal" fazem isso parcialmente. Eles não deixam com que os protagonistas sejam destruídos sem lutar.

Ah, e qualquer um se apaixona pelas mulheres que Scott cria. Outra observação necessária: é necessário se acostumar com as descrições dele. No começo, parecem maçantes, e você vai pensar que ele não sabe fazer começos de histórias. Mas dois ou três contos mais tarde você se acostuma, porque sabe que a qualquer momento vai aparecer uma coisa bonita assim:
Fifi Schwartz. Uma bela e radiante judia, cuja testa alta estendia-se até que seu cabelo, como um brasão heráldico, explodisse em madeixas, ondas e caracóis de um vermelho escuro e macio. Os olhos eram grandes, claros, úmidos e brilhantes; a cor intensa de seus lábios e faces era real, assomando quase à superfície depois de bombardeada por seu jovem e impetuoso coração.
O trecho aí em cima é o começo do terceiro parágrafo de "A menina do hotel". Ok, em resumo, no livro estão algumas das melhores 473 páginas que qualquer um poderá jamais ler.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

O duplipensar de Olavo de Carvalho

Em primeiro lugar, quero explicar porque usei "duplipensar" no título. São dois os motivos: 1) É a palavra mais adequada, e 2) Pra mostrar que eu li 1984, porque sou muito metidinho. Mas vamos ao Olavo.

Olavo de Carvalho costuma defender a doutrina católica como necessária para a trinomia "tradição, família e propriedade". A doutrina católica é a mesma que diz "ao levar um tapa, dê o outro lado", e isso me parece bastante pacífico. Não entendo como Olavo consegue mesmo assim apoiar uma guerra, que significa, na melhor das hipóteses, "ao levar um tapa, desconte", e, no caso do Iraque, "previna-se de levar um tapa: estapeie antes". Olavo critica os muçulmanos como irracionais, e critica a jihad, mas não vejo como não relacionar a defesa da guerra de Olavo com a jihad: "vamos atacá-los, são muçulmanos. São diferentes de nós" - e aí o Olavo pede um trocado pra continuar escrevendo, porque ninguém é de ferro.

Depois ele defende de novo a Igreja Católica e diz que a "esquerda" pensa errado. Mas ele pensa tão errado quanto ou mais. A esquerda é consistente na maior parte de suas idéias, mesmo se virmos o ponto de vista da igreja. Olavo de Carvalho é contra o casamento gay, o que significa que ele é contra o livre-arbítrio. Repare-se que a igreja não proíbe o casamento gay, proíbe apenas os católicos de se casarem com homens e as católicas com mulheres. A igreja não pede que os governos proíbam o casamento gay, pede que seus fiéis gays não se casem nem mantenham relações homossexuais. Mas Olavo de Carvalho cai na inconsistência que vê na esquerda, vai contra o princípio primeiro do cristianismo, contradiz-se sem pestanejar, defendendo que o homem deve ser proibido pelo homem de fazer o que Deus não proibiu.

Para ele, a economia deve ser livre, mas as relações pessoais não. Quer sinceridade? Prefiro o contrário. Acredito que mais direitos são violados quando se impede que alguém se case, que alguém adote. Mais direitos são violados se as drogas são proibidas do que se a importação de chocolate for taxada. Olavo vê isso? Penso que não. Ao contrário dele, que acha que todo esquerdista é mau e cínico, acho que o Olavo é só irracional, o que o põe numa posição de neutralidade.

De novo os esquerdistas: eles, em geral, defendem abertamente a existência de um Estado regulador para que a economia se desenvolva de forma mais "justa". Olavo se diverte atacando o governo, fingindo que odeia o Estado, mas requerendo cada vez mais Estado pra que as guerras aconteçam cada vez com mais freqüência. É como odiar a agressão e pedir pra cada vez mais o pessoal ser agredido - mas agressão para Olavo tem dois sentidos: duplipensando bem, quando agredimos a agressão é justa, quando somos agredidos é injusta, e quando não acontece precisa começar, porque senão vira tédio. Olavo passou do patamar de achar que está ao lado de Deus para o de achar que é Deus e não se deu conta disso. Porque o único capaz de ser justo mesmo fazendo coisas "injustas" é Deus. E Olavo defende ele pode fazer isso.

Durante todo este post eu falei de "Olavo de Carvalho" como sinônimo de conservador. Só achei que seria mais válido especificar um dos conservadores do tipo pra que ninguém reclamasse de falta de objetividade.

Para ter uma idéia da genialidade do Olavo, é só clicar aqui.

A necessidade do lado mau

Um dos meus hobbies é reparar como as pessoas que dizem que algo não é alguma coisa se contradizem dando características dessa coisa a esse algo. Por exemplo, há pessoas que adoram falar que "esse mundo aqui não é conto de fadas, não! A maldade está solta por aí!"

Gostaria que me mostrassem um único conto de fadas sem maldade solta por aí. A diferença que vejo entre o nosso mundo e o dos contos de fadas é que aqui, na Terra, a maldade é inocente. Ela não sabe que é má, tem boas intenções. Enquanto nas historinhas a bruxa tem gargalhadas cruéis e afirma o tempo todo que é má e invejosa, o vilão do mundo real acredita que, na verdade, o mocinho é o grande vilão. Na Terra todos querem ser heróis.

Por isso os debates políticos são tão inócuos, tão improfícuos: o liberal diz que o estatista é cínico e mau e feio, e que por isso está errado. O estatista faz o caminho inverso: "você é egoísta, cínico, não tem coração!" e o debate fica eternamente em decidir primeiro quem está certo, para depois de convencer que o outro é mau dizer os motivos de suas idéias serem más. Acontece que ninguém vai se convencer de sua maldade, porque, se o outro é mau, ele só pode estar usando de ardis maquiavélicos para te carregar para o lado da maldade (e eu não direi o lado negro..., não gosto de Star Wars).

Na verdade vejo isso como uma necessidade que o homem tem de aproximar a vida real do mundo dos contos de fadas, de ter um inimigo bem definido, com todas as características da maldade que se pode ter - incluindo, talvez, a verruga no nariz e as unhas longas e sujas. Mas não há muita perfeição na Terra, e as pessoas costumam sempre - displante! - acertar em algum aspecto.

A esquerda costuma estar certa em suas idéias sobre costumes e cultura, a direita tem mania de acertar no que diz respeito à economia e à política, mas ambas rejeitam a parte certa do adversário, porque dão maior valor àquilo em que estão certos (e talvez estejam certos justamente porque, por dar mais valor a esses aspectos da vida humana, é a eles que se dedicam com mais afinco).

Mas o ponto principal deste texto é outro, e eu estava só enrolando até achar uma boa forma de dizer isso: Alguém acha que os ditadores do Brasil acreditavam que eram maus? Alguém acha que eles se diziam maus? Hitler já foi pego gargalhando cinistramente enquanto planejava a morte de milhares de mocinhos judeus? Hitler era padrasto de alguém? Toda a maldade que existe - e ela existe, está por toda a parte, em pequenas doses ou em doses maiores - deve ser combatida não apenas com espadas, dizendo "você é mau! Você é mau!", porque não adianta. As pessoas chamam Hugo Chávez de mau, mas, pelos céus que ele não se acha má pessoa. Talvez nem seja má pessoa, mas está tomado de más idéias, coitado, que ele acha que são boas.

Ninguém assume que é mau. Pelo menos não se estiver são. É preciso convencer as pessoas de sua maldade por partes, debatendo não a pessoa inteira, mas os pedaços pequenos que ela tem - "concordo disso, discordo daquilo, tenho dúvidas (é bom ter dúvidas) naquilo outro" e é assim que a maldade se dissipa, se dilui na humanidade, ficando cada vez menor, cada vez menor, para que no fim a vida seja como o fim de um conto de fadas.

(Sim, eu sei. Final piegas, mas eu gosto de ter essa esperança de que as coisas vão melhorar, melhorar, melhorar até não poder mais. Afinal - mais uma pieguice (e quem disse que sou contra pieguice?) - de que valeria viver sem acreditar que você pode contribuir para algo no mundo.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sobre o socialismo marxista e suas influências

Escrevi o texto abaixo para ajudar uma amiga de Gustavo. Ela precisava de um resumo das influências de Marx, do socialismo anterior a ele e das diferenças entre o socialismo e o comunismo no marxismo.

***


Algumas influências do socialismo marxista

Embora o que se entenda por “socialismo” hoje em dia se refira, em termos amplos, à propriedade coletiva (via Estado ou não) dos “meios de produção”, o que se entendia pela palavra ao longo da história não era exatamente isso. Historicamente, o “socialismo” se referia, basicamente, a uma preocupação com o social. Esta definição pode parecer trivial; no entanto, basta observarmos um pouco a história dos pensadores e movimentos chamados de socialistas para vermos que essa é a única característica que os distinguia.

As teorias socialistas tiveram seu início a partir das teorias liberais clássicas, por mais paradoxal que possa parecer – dada a oposição que hoje pensamos entre as duas tradições, graças principalmente a Karl Marx. Com a crescente liberalização das relações sociais, surgiu uma nova disciplina: a economia política. Com essa disciplina, veio a tentativa de entender as relações sociais na sua totalidade. Havia uma impressão generalizada de que o trabalho, e, por extensão, a divisão do trabalho, traziam uma maior prosperidade para todos.

As teorias liberais clássicas, principalmente aquelas formalizadas por Jean-Baptiste Say, em seu Traité d’economie politique (1803), opunham duas classes de pessoas: os trabalhadores e empreendedores, por um lado, que constituíam a classe produtiva, e os grandes donos de terras e rentiers, privilegiados por conquistas do passado, que não nada produziam. Segundo Say, que colocava sob um mesmo nome tanto a agricultura, a manufatura e o comércio – “indústria” – a primeira classe era a dos “industrieux” – o que deu o nome a um novo movimento na França: o industrialismo.

Benjamin Constant, similarmente, deu nova inspiração aos movimentos de transformação política com seu panfleto anti-napoleônico Le espirit de Conquete (1815), que argumentava que as conquistas de Napoleão não durariam, porque violavam as condições da liberdade individual, a saber, a paz e o comércio.

No fim do período napoleônico, em 1814, dois liberais clássicos, Charles Comte (1782-1837) e Charles Dunoyer (1786-1862), lançaram o jornal Le Censeur europeen, que pretendia avançar os princípios da liberdade individual e do governo representativo. Mais tarde, em 1817, o jornal mudou de foco e passou a enfatizar a própria sociedade industrial, argumentando que, se a indústria não era o objetivo das sociedades modernas, deveria passar a ser. A mudança de rumos do jornal da defesa de algumas liberdades constitucionais para uma defesa da própria sociedade industrial não foi uma mudança trivial; se antes a agenda dizia respeito às instituições representativas, o novo foco tinha relação com a exploração econômica e estruturas de classe. A análise dava ênfase no impacto do sistema econômico sobre o desenvolvimento da cultura política e tentava explicar a passagem de um estágio social a outro.

Segundo eles, a liberdade era o estado que permitia que os homens exercessem suas faculdades e obtivessem o produto de seus trabalhos. O mal era o que interferia na liberdade. Assim, o industrialismo seria o único sistema que permitiria ao homem exercer suas faculdades sem o medo de ser vítima de força, fraude, exploração ou guerra. Como colocou Charles Comte em seu Traité de Legislation (1826): “Em todas as nações uma parte da população domina ou pretende dominar os outros, e é para evitar castigos físicos mais ou menos severos que alguns homens, chamados governados, súditos ou escravos, obedecem ou tentam evitar as ações que se lhes são impostas. A história da espécie humana é composta, numa palavra, de lutas que nasceram do desejo de tomar os prazeres físicos de toda a espécie e impor sobre todos uma dor proporcional.” Assim, a teoria de classes radicalmente liberal nascida na França via no Estado a fonte da exploração e opressão. O mesmo pensamento mais tarde viria a ser importado pelo socialismo marxista.

Na Inglaterra, no começo do século XIX, era o liberal David Ricardo quem tinha o maior prestígio na economia política. Partindo das idéias de Adam Smith, David Ricardo avançou a idéia do valor-trabalho, isto é, a idéia de que a fonte do valor é o trabalho. Alguns autores, porém, tiraram conclusões de certa forma diversas das de David Ricardo, partindo de sua própria estrutura analítica. Um desses grupos foi o dos que ficaram conhecidos como ricardianos socialistas, dos quais o maior foi Thomas Hodgskin (1787-1869).

Hodgskin, embora chamado de “socialista”, defendia coisas que poucos socialistas atuais admitiriam: defendia o livre-comércio, o livre-mercado e a suspensão de todas as regulações. Também era um defensor dos direitos naturais lockeanos, a partir do qual, em conjunção com a teoria do valor-trabalho de Ricardo, ele postulou que havia um total não-pago aos trabalhadores – o que mais tarde viria a ser chamado de “mais-valia” pelos marxistas. Em seu panfleto de 1825, Labor Defended Against the Claims of Capital – intitulado dessa forma para ironizar o título de um panfleto de James Mill chamado Commerce Defended – Hodgskin avaliava que a exploração só era possível através dos privilégios estabelecidos politicamente na seara da produção. O que ele chamava de “capitalismo” não era um regime de livre-mercado, mas de privilégios monopolísticos estabelecidos pelo Estado em benefício de uma plutocracia.

Outros socialismos

Dentro do movimento “industrialista” havia duas facções mutuamente antagônicas que não se perceberam como tal de imediato. Havia a facção liberal e individualista de Charles Comte e Charles Dunoyer, e a facção autoritária e coletivista (apesar dos epítetos, não há nenhum juízo de valor aqui) de Saint-Simon e Auguste Comte.

Os primeiros, como já se mostrou viam uma contradição indissolúvel entre o poder político e a sociedade industrial. Saint-Simon (1760-1825) e Auguste Comte (1798-1857), por outro lado, embora compartilhando o mesmo entusiasmo pela sociedade industrial (e daí a confusão entre as duas tendências “industrialistas”), almejavam uma sociedade onde haveria grandes banqueiros e cientistas no controle do poder político; assim, segundo eles, e usando um slogan que mais tarde viria a ser adotado pelo marxismo, eles queriam substituir o “governos dos homens” pela “administração das coisas”. Ou seja, embora Saint-Simon seja conhecido como “socialista”, o que ele defendia poderia ser caracterizado como uma tecno-plutocracia.

Entre aqueles que são citados como os primeiros socialistas, também deve-se mencionar Robert Owen (1771-1858) e Charles Fourier (1772-1837). Em termos gerais, ambos defendiam a formação de pequenas cooperativas, em que o trabalhador seria recompensado de acordo com seus esforços.

Robert Owen era inicialmente adepto das teorias liberais-utilitaristas de Jeremy Bentham (1748-1832), mas mais tarde, com uma preocupação com as condições sociais da Inglaterra, veio a postular a necessidade da união entre os homens, para que não houvesse mais uma competição entre o trabalho e a máquina, mas uma subordinação desta última. Assim, ele apontava a necessidade da formação de coletivos, de pequenas comunidades cooperativas, em que a produção seria compartilhada. Isso o levou a formar a comunidade de New Harmony nos Estados Unidos, que fracassou.

O fracasso em New Harmony mais tarde levaria Josiah Warren (1798-1874) a asseverar que o problema era a ausência da propriedade privada e da soberania individual, criando assim uma variedade muito peculiar do pensamento: o anarquismo individualista americano. Neste anarquismo, não só há propriedade privada, como também há um livre-mercado; a defesa e a lei são providas por meio de associações voluntárias. A idéia seria aprimorada até o final do século XIX, por pensadores como Stephen Pearl Andrews (1812-1886), William B. Greene (1819-1878), Lysander Spooner (1808-1887) e Benjamin R. Tucker (1854-1939).

Mas voltando um pouco à história convencional do socialismo, temos Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), aquele que primeiro se intitulou anarquista, e que foi influenciado tanto pela facção individualista dos industrialistas quanto pela facção coletivista. A filosofia de Proudhon, embora chamada também de socialista, era cheia de nuances e difícil de caracterizar sob um rótulo só. Em seu livro Qu'est ce que la propriété?, de 1840, que carrega a famosa frase “a propriedade é um roubo”, Proudhon postula que as propriedades existentes eram todas provenientes de privilégios. Ele propõe, então, um novo sistema de propriedade, chamado por ele de possessão, em que não haveria propriedade da terra por donos ausentes; a propriedade estaria intrinsecamente condicionada ao trabalho direto na terra. O mutualismo, sua teoria econômica, propunha um novo sistema de concessão de crédito para sanar a escassez artificial provocada pelos privilégios políticos.

Uma parte das teorias de Proudhon seria desenvolvida nos Estados Unidos, pelos anarquistas individualistas supracitados, que enfatizavam a possessão e o mutualismo. Outra parte de seu pensamento influenciaria o anarco-comunismo de Mikhail Bakunin (1814-1876) e o marxismo.

O socialismo marxista

Eu tentei mostrar algumas das influências óbvias do pensamento de Karl Marx. Evidentemente, o que eu escrevi até aqui não é uma lista compreensiva – mas serve para dar uma noção de que as teorias marxistas não surgiram num vácuo. O liberalismo havia fornecido sua estrutura básica. A economia política de Karl Marx é totalmente baseada na de David Ricardo, influenciada por Thomas Hodgskin e sua teoria da exploração. A formalização das “contradições” de classe que Marx viria a mencionar estavam presentes no trabalho dos liberais Jean-Baptiste Say, Charles Comte e Charles Dunoyer. O pensamento de Proudhon levaria Marx a identificar as “relações de produção”, isto é, à específica estipulação de direitos de propriedade, como um dos fatores que favoreciam o domínio de classes. E os movimentos socialistas anteriores a Marx o levariam a identificar o que ele designaria como “proletariado” como sendo a classe explorada.

Assim, os pilares do pensamento marxista são as seguintes teses: (1) a história da humanidade é a história das lutas de classes – isto é, a luta de uma classe dominante relativamente pequena contra uma classe produtiva relativamente grande, explorada economicamente; (2) a classe dominante é unida por seu interesse em manter seu domínio e maximizar sua apropriação de “mais-valia”; (3) o domínio de classe se manifesta através de arranjos específicos de “relações de produção”, isto é, de certas estipulações de direitos de propriedade; (4) o Estado é a agência de dominação de classe; (5) a classe dominante só pode se manter numa posição exploratória sob uma certa “superestrutura social” – isto é, se houver uma opinião pública favorável; (6) o avanço das “forças produtivas”, isto é, o avanço do domínio exploratório a uma escala cada vez maior (até, eventualmente, uma escala global), faz que hajam sucessivas crises; o domínio exploratório perde sua legitimidade; há um aumento da “consciência de classe”, ou seja, da consciência da classe relativamente mais numerosa de que está sendo explorada, e surgem as “condições objetivas” para uma revolução que acabará com a exploração e estabelerá uma sociedade sem classes.

Segundo Marx, seria o capitalismo laissez-faire que levaria a uma exploração cada vez maior do proletário. Isso ocorreria porque o capitalista apropria-se da “mais-valia” social, isto é, um número de horas de trabalho não-pagas. Ele só seria capaz de fazer isso porque controla o aparato do Estado.

Uma vez que, segundo Marx, o Estado é a própria institucionalização do domínio de classe (é a definição dessa instituição), a revolução proletária deve tomar o aparato estatal. Esse período intermediário, de tomada das estruturas do Estado, foi chamado por Marx de socialismo (embora, como já assinalado, o termo “socialismo” tenha vários significados – sendo inclusive empregado pelos anarco-individualistas americanos para descrever sua filosofia radicalmente anticomunista). Com o controle do Estado, não haveriam mais contradições econômicas sistemáticas e haveria uma absorção da sociedade pelo Estado. Sem contradições econômicas, o Estado não tem razão de existir e, portanto, desapareceria, deixando em seu lugar uma sociedade sem classes – que foi chamada por Marx de comunismo.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Por que as reformas liberais são mais difíceis do que parecem

Nem toda privatização é libertária, embora a privatização em si seja um objetivo libertário. Da mesma forma, não é porque o liberalismo/libertarismo quer tirar poderes do estado que qualquer diminuição do poder estatal necessariamente leva a uma ordem mais justa. Sobre isso, eu fiz um post no orkut há pouco:
Imagine uma sociedade em que há dois grupos (desconsiderando todos os outros fatores). O Grupo A é subsidiado com X/2 reais e o Grupo B com X reais.

Agora imagine que o governo pare de subsidiar o Grupo A. Agora os privilégios relativos do Grupo B aumentaram em relação ao Grupo A. Você diria que os direitos de A são mais ou menos violados agora? Eu diria sem dúvidas: mais.

Mas esse não é um argumento a favor de aumentar os subsídios a A, para que a situação de A e B fique igualada. Eu não sou a favor disso. É um argumento a favor de diminuir os subsídios a B.

Você pode dizer: "Mas isso te faria considerar menos injusto um aumento dos subsídios a A". De fato, mas dizer que algo é menos injusto não é dizer que aquilo não é injusto. Dificilmente esse pode ser um argumento a favor do aumento dos subsídios a A.

Meu ponto é que se deve manter as coisas em contexto. Privatização pode ser uma coisa libertária, mas nem toda privatização é uma coisa libertária. Extinção dos programas estatais é um objetivo libertário, mas nem todas as extinções de programas estatais levam a fins libertários.
Ou seja, não é porque um tipo de subsídio deixa de existir que se estabelece um cenário mais justo. Deve-se manter as coisas em contexto. Quando eu li o trabalho de Chris Matthew Sciabarra pela primeira vez, achei seus comentários sobre dialética (na verdade, a "dialética" dele tem a ver com "contexto") eram triviais. Só mais tarde eu vim a perceber como é difícil você manter as coisas em contexto — e conseqüentemente vim a apreciar mais o trabalho dele. A primeira impressão que você poderia ter ao ler meu exemplo dos grupos A e B era que qualquer eliminação de subsídios estabeleceria uma situação mais justa. Obviamente esse não é o caso.

domingo, 8 de julho de 2007

Herbert Spencer knows it all

Do texto que eu traduzi recentemente de Herbert Spencer, esta passagem especialmente é sensacional. Explica perfeitamente a incapacidade dos liberais de fazerem alianças corretas e de se posicionarem apropriadamente no espectro político:
Das criaturas mais baixas às mais altas, a inteligência progride por meio de atos discriminatórios; e ela continua a progredir entre os homens, desde o mais ignorante até o mais culto. Classificar corretamente — colocar no mesmo grupo coisas que são essencialmente da mesma natureza e em outros grupos coisas que são de naturezas essencialmente diferentes — é condição essencial para uma correta orientação das ações. A partir de uma visão rudimentar, que nos alerta que um grande corpo opaco passa por perto (da mesma forma que olhos fechados virados para uma janela, percebendo a sombra causada por uma mão colocada na frente deles, nos diz que algo está se movendo à nossa frente), avança-se a uma visão desenvolvida, a qual, por meio de combinações de formas, cores e movimentos apreciados com exatidão identifica objetos a grandes distâncias como presas ou inimigos, e assim torna possível melhorar os ajustes de conduta que permitam a obtenção de comida ou a prevenção da morte. Essa progressiva percepção das diferenças e a conseqüente maior exatidão das classificações, que constitui um dos principais aspectos do aprimoramento da inteligência, é igualmente vista quando abandonamos uma visão física relativamente simples em favor da relativamente complexa visão intelectual — a visão que permite que coisas previamente agrupadas de acordo com características externas ou circunstâncias extrínsecas sejam reagrupadas em maior conformidade com suas estruturas ou naturezas intrínsecas. Uma visão intelectual pouco desenvolvida é tão indiscriminatória e errônea em suas classificações quanto uma visão física pouco desenvolvida. Observe, por exemplo, as primeiras organizações das plantas em grupos de árvores, arbustos e ervas: o tamanho, sendo a característica mais facilmente notável, era a base da distinção; e as combinações formadas por essa classificação unia várias plantas extremamente desiguais em suas naturezas e separava outras muito parecidas. Ou, ainda melhor, tome-se por exemplo a classificação popular que coloca juntos, sob o mesmo nome geral, peixes e mariscos, e sob o mesmo subnome, mariscos, coloca juntos crustáceos e moluscos; não, a que vai mais longe e considera como peixes os mamíferos cetáceos. Em parte por causa da similaridade de seus modos de vida aquáticos, em parte por conta da semelhança geral em seus sabores, criaturas de naturezas essenciais muito mais separadas que um peixe de uma ave são associadas na mesma classe e na mesma subclasse.

Agora, a verdade acima exemplificada vale também para as visões intelectuais que têm relação com coisas não prontamente apresentáveis aos sentidos, como, entre outras, instituições e medidas políticas. Pois quando pensamos sobre estas, os resultados de uma inadequada aptidão intelectual, ou de um inadequado desenvolvimento dela, ou de ambos, são classificações errôneas e conseqüentes conclusões incorretas. De fato, a probabilidade de erro aqui é muito maior, uma vez que as coisas com a qual o intelecto se ocupa não admitem exame da mesma simples maneira. Você não é capaz de tocar ou de ver uma instituição política: ela só pode ser conhecida por um esforço construtivo da imaginação. Você também não pode apreender através da percepção física uma medida política: isto requer, igualmente, um processo de representação mental pelo qual seus elementos são agrupados no pensamento e em que a natureza essencial da combinação é concebida. Aqui, portanto, ainda mais que nos casos acima mencionados, uma visão intelectual defeituosa é mostrada por agrupamentos formados por características externas ou por circunstâncias extrínsecas.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

O que é liberalismo? O que é conservadorismo?

No orkut escrevi isto, que me pareceu digno de aparecer aqui:
Questões de rótulos são sempre complicadas, rótulos políticos são os piores. Isso acontece porque em geral as posições políticas não carregam simplesmente um conteúdo "programático", elas não se resumem aos princípios que as pessoas defendem explicitamente, mas englobam também uma série de posições culturais e estéticas.

Por exemplo, nos EUA, há toda uma carga cultural em volta dos rótulos "conservative" e "liberal" (os "liberals" de lá, que são basicamente os social-democratas do resto do mundo). Os conservadores são aquele tipo de gente que vive nos subúrbios, que dirigem SUVs que gastam litros e litros de gasolina, que são carolas de igreja. Os liberais são associados com uma vida urbana, com o vegetarianismo, com uma preocupação com o meio-ambiente, reciclagem, etc. Veja que essas coisas não têm diretamente nada a ver com política. Esse tipo de coisa leva algumas pessoas a fazer livros como este, que falam como um liberal entrou na "vida" conservadora.

Hoje em dia, em geral, talvez por conta do predomínio cultural da esquerda (embora isso seja duvidoso, porque a esquerda não é homogênea), no Brasil as posições dos liberais e conservadores muitas vezes se confundem. Assim, você vê liberais mostrando um certo elitismo cultural, fazendo pouco caso dos problemas dos pobres, sendo extremamente moralistas, etc - coisas tipicamente associadas aos conservadores. Você poderia dizer que esse tipo de postura é o que chamam de "liberal-conservadora".

Por outro lado, existe também um liberalismo progressista (que é a posição histórica dos liberais), mais populista, mais preocupado com os pobres, com os direitos dos gays, etc - ou seja, um liberalismo não-moralista, o que normalmente é desdenhado pelos liberais conservadores, que dizem que "liberdade não é libertinagem" (duh).

Claro que esse tipo de postura não diz nada quanto às posições políticas daqueles que as defendem, mas eu só quis mostrar como essas questões de rótulos são realmente delicadas. Por isso eu faço a seguinte separação (mas eu não sei se os outros da comunidade concordariam com ela):

- Conservadores: a ordem é o valor maior; não fazem uma oposição fundamental ao poder do estado; rejeitam quaisquer mudanças radicais na sociedade, em quaisquer partes da vida do país (seja na esfera econômica, seja na moral) - por esse comprometimento com a ordem, os conservadores são levados a defender a presença do estado onde quer que esteja havendo mudanças que quebrem com a ordem estabelecida. Por isso também você não vê neles uma oposição fundamental aos impostos, às regulações, etc, pois isso pode levar à uma ruptura social que eles não estão dispostos a aceitar. Daí se segue também o elitismo conservador de que eu falei antes também, porque há uma presunção de que a manutenção de um status é mais importante do o modo pelo qual esse status foi obtido.

- Liberais: a liberdade é o valor maior, nem toda ordem é desejável simplesmente por ser um tipo de ordem; a oposição ao poder do estado é mais fundamental, o que leva a uma rejeição mais enfática das atividades estatais e uma relutância maior em aceitar a necessidade das ações do estado; as mudanças em geral são avaliadas de acordo com a conveniência para alcançar o ideal, não como males em si.

Essa é uma divisão psicológica e certamente tem seus problemas de aplicação. Mas é melhor que divisão que diz que "liberais = liberalismo social e econômico; conservadores = conservadorismo social/liberalismo econômico".

E, além disso, não há nenhuma incompatibilidade intrínseca entre o cristianismo (ou mesmo o catolicismo, especificamente) e o liberalismo. Lord Acton, por exemplo, foi um liberal radical católico. No cristianismo em geral, eu citaria os batistas, que sempre foram radicalmente anti-políticos (são até hoje) e foram um dos grupos que mais defenderam (senão o que mais defendeu) a separação entre o estado e a religião.

domingo, 1 de julho de 2007

Um diamante do tamanho do Ritz

Jasmine, a filha mais velha, era parecida com Kismine - exceto pelas pernas ligeiramente arqueadas e pelos pés e mãos grandes -, mas era completamente diferente em temperamento. Seus livros favoritos contavam histórias de garotas pobres que sustentavam pais enviuvados. John soube por Kismine que Jasmine nunca se recuperara do choque e desapontamento provocados pelo fim da Guerra Mundial, porque estava prestes a ir para a Europa como especialista em cantinas de acampamento. Ficara até deprimida por algum tempo, e Braddock Washington tomara medidas para promover uma nova guerra nos Bálcãs, mas Jasmine viu uma foto de soldados sérvios feridos e perdeu o interesse pelo negócio.
F. Scott Fitzgerald, 1922

sábado, 30 de junho de 2007

Saki dá uma boa sugestão

Em The Toys of Peace, após receber brinquedos que não remetessem à guerra, Eric pergunta:
“Are we to play with these civilian figures?” asked Eric.

“Of course,” said Harvey, “these are toys; they are meant to be played with.”

“But how?”

It was rather a poser. “You might make two of them contest a seat in Parliament,” said Harvey, “an have an election—”

“With rotten eggs, and free fights, and ever so many broken heads!” exclaimed Eric.

“And noses all bleeding and everybody drunk as can be,” echoed Bertie, who had carefully studied one of Hogarth’s pictures.
Políticos de narizes quebrados? Sweet.

Por que eu não sou e nunca fui um hayekiano, e por que Hayek não teve qualquer influência sobre mim

Hayek temia que quaisquer tentativas de estabelecer uma ética racionalista (o que ele chamava de "racionalismo construtivista") levassem a delírios totalitários. A saída que ele encontrou foi uma aposta na ignorância humana: só podemos proteger a liberdade individual se abandonarmos quaisquer projetos de estabelecer uma ética objetiva e que nos confortemos com a "ordem espontânea". Mas a ordem espontânea é contraditória nesses termos. Porque a ordem que surge depende dos valores que os indivíduos carregam consigo; sem valores culturais que prezem pela união da sociedade, ela se dissolve. Uma ordem "espontânea" que abdique da busca de quaisquer valores sociais ou éticos é apenas um apego à tradição. Esse conceito de espontaneidade livre de quaisquer valores éticos de Hayek também não o permite dizer que nada é ou não é espontâneo. Ele pode dizer que certas ações do governo foram apenas emergências espontâneas de um determinado contexto social. Até mesmo as políticas econômicas que Hayek defendia perdem quase todo o peso frente ao conceito de espontaneidade que ele próprio defendia. Por que opor-se a medidas inflacionistas se é o governo que as está tomando? E o governo pode ser considerado apenas uma instituição social espontânea, criada pelos próprios indivíduos para satisfazer às próprias necessidades, ou não? E, admitindo-se que a inflação traga resultados ruins, por que deveríamos nos opor a ela de qualquer forma? Seria porque ela traz pobreza social? Mas por que deveríamos querer a riqueza? Não seria esse padrão ético uma espécie de racionalismo construtivista, uma tentativa de moldar à sociedade de acordo com os próprios caprichos que pode desembocar em algum tipo de dirigismo totalitário?

Sherlock Holmes, detetives em geral e eu

Mal posso acreditar quanto tempo - 19 anos, cada um deles com um peso moral quase insuportável - passei sem saber quais prazeres que Sherlock Holmes era capaz de proporcionar. Sempre tive a idéia de que detetives da literatura eram frios demais, inumanos demais. Era somente um preconceito, mal conheço a literatura em geral, muito menos o gênero específico dos detetives. Talvez essa preferência por personagens mais humanos seja vulgar, mas era algo que realmente me incomodava: a tendência de atribuir todas as qualidades aos heróis. Sherlock Holmes, no entanto, é impaciente, fica com raiva, não calcula tudo o que vai acontecer. Me sinto meio banal por requerer algo tão comum dos personagens, mas eu tinha que sentir que eles tinham um coração batendo no peito. Sherlock Holmes, embora possua um poder de abstração fora do comum, e informações absurdas, me parece vivo e conseguiu quebrar, ao menos um pouco, o preconceito que eu tinha. Depois de ler o livro ao lado, A Ciclista Solitária e outras histórias, da maravilhosa L&PM Pocket (215 pgs.), posso partir para detetives mais hardcore (mas ainda rezo para que eles sejam seres vivos, não apenas incríveis máquinas de investigação e resolução de casos).

sábado, 23 de junho de 2007

The unquestionable truth


Liberty, vol. 1, no. 1, 6 de agosto de 1881.

Nós não somos nem precisamos ser iguais

A inteligência convencional aconselha uma união entre liberais e conservadores para "enfrentar o pensamento esquerdista dominante no país". Enquanto isso, podemos ignorar ou subestimar a importância da divergência entre as duas correntes, porque é estúpido perder tempo com esse tipo de discussão quando há um inimigo maior para combater, a saber, a "esquerda". O que falta é união, coisa que sobra nos esquerdistas - mestres em organização e propaganda.

Esse é o raciocínio estratégico padrão da "direita" brasileira. O único problema é que esqueceram de avisar aos esquerdistas que eles eram unidos.

A esquerda, ao contrário do que diz a sabedoria convencional, não é nem nunca foi unida. Na verdade, esquerdistas são altamente sectários, e eu diria até que esse é um dos motivos do crescimento intelectual esmagador dos "socialistas" (sei que esse é um rótulo vago, mas não tenho outro aplicável aqui) no fim do século XIX e durante o século XX. Foi com discussões internas, sobre teoria e estratégia, que eles refinaram as próprias idéias e cresceram. Eles não pensaram em subestimar as diferenças entre as correntes para combater o inimigo maior, o status quo. Combateram ambos, criaram inimizades com velhos aliados e criaram novas correntes, alianças e tendências, e assim cresceram.

Na esquerda, ou ao menos no que é chamado normalmente de esquerda, podemos identificar vários partidos políticos brasileiros: PT, PDT, PCdoB, PSTU, P-SOL, PCO. Eles são todos iguais? Todas as variantes do comunismo, a social-democracia, o ambientalismo, o comunitarismo, o sindicalismo, a maioria das variantes do anarquismo, o progressismo e o socialismo cristão são todos iguais? Todas essas correntes, subcorrentes e tendências da esquerda são bastante conhecidas, mas quando criticar é necessário, a esquerda se torna um bloco uno que só pode ser derrotado com uma grande coligação "de direita".

Não posso responder definitivamente por que existe essa impressão de que a esquerda é unida ou unitária, mas eu atribuo isso ao fato de que o discurso mainstream é vagamente de "esquerda", o que passa a sensação de que vivemos rodeados de esquerdistas uniformes. Só que nada é mais falso e os liberais (e também os conservadores, por que não?) vão perder muito se continuarem a fingir que são aliados naturais. Uma diferenciação radical entre os liberais e os conservadores seria melhor para ambos. Somente com esse tipo de definição intelectual um movimento ideológico pode ganhar força. Se os liberais e conservadores continuarem achando que são apenas subcorrentes de um movimento maior chamado "direita", vão permanecer com o pensamento obnubilado. O reconhecimento das diferenças da mais força aos argumentos.

domingo, 27 de maio de 2007

O que já foi feito pelos negros no Brasil?

Negros engajados normalmente perguntam "O que já foi feito pelos negros no Brasil?".

Fico doente com isso.

Se eles perguntassem "O que já foi feito para atrapalhar os negros no Brasil?", eu teria mais respeito por eles.

Porque nada foi feito pelos negros no Brasil, mas muito já foi feito contra eles. E, a despeito do histórico, eles têm esperança de que podem reverter o poder estatal, que sempre foi usado contra eles, para ajudá-los. Existe maior credulidade?

Os movimentos negros tinham a obrigação de desconfiar de qualquer projeto que fosse proposto para auxiliá-los. Eles nunca foram ajudados, por que seriam agora? Por que eles acham que algo fundamentalmente mudou na sociedade? Por que eles não demonstram ceticismo em relação a tudo que seja alienígena aos próprios negros?

Se eu tivesse sido discriminado por anos por alguém e, de repente, esse alguém começasse a me dar presentes, a reação natural seria que eu o olhasse com desconfiança.

Os negros, pelo contrário, a julgar pela atitude que tomam quando propõem qualquer coisa que os beneficiaria (e.g., cotas em universidades), convidariam essa pessoa para suas casas e fariam um grande jantar em homenagem a ela. They should know better.

sábado, 19 de maio de 2007

Não existe gênio moderado

A genialidade exige radicalismo. Ninguém pode ser considerado gênio se não considera sua hipótese válida em todos os momentos e aspectos. Logicamente, podemos dizer que a moderação é o reduto de todos os que esquecem de levar as próprias idéias às últimas conseqüências e, por isso, não tem respaldo. Empiricamente, o maior nome que a moderação já construiu foi Maynard Keynes.

Minha teoria é irrefutável, portanto.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Na primeira edição do jornal Liberty, Benjamin Tucker escreveu...

"Liberty, Equality, Fraternity, these three; but the greatest of these is Liberty. Formerly the price of Liberty was eternal vigilance, but now it can be had for fifty cents a year.”

(A inflação também é notável.)

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Blame the state

Tudo o que acontece de ruim na sua vida tem a interferência do governo. Às vezes parece que algo aconteceu independentemente da ação governamental, mas, analisando a fundo, o governo também estava lá, impedindo que algo funcionasse direito na sua vida. Este texto pretende ser não mais que um pequeno apanhado dessas pequenas coisas aparentemente banais.

Para começar, as filas. Filas não são naturais, e tudo o que não é natural na organização humana é causado pelo governo. Quando se vai à padaria com mais pressa, é impossível não se deixar perturbar pela demora na fila. O governo é o único responsável por essa demora.

Quando estipula regras para a abertura de padarias (e bancos, supermercados e outros estabelecimentos em que se formam filas), o governo força que milhares de empreendedores ansiosos por entrar no mercado fiquem de fora por tempo demais, até que eles desistam ou não sejam mais suficientes para atender à demanda. Quando obriga que seja impressa uma nota fiscal a cada compra, além de obviamente elevar os preços dos produtos, o governo aumenta o tempo de fila. Quando o Estado resolve que o pão deve ser vendido por quilo, tira do mercado alguns mercadinhos que tinham no pão apenas um produto adicional e obriga o consumidor a encarar não só a fila do mercadinho, mas também a da padaria.

Claro, algumas filas existiriam mesmo sem a interferência do Estado: filas para comprar ingressos para um show, por exemplo, ou filas para entrar na melhor boate da cidade. Mas essas filas seriam extremamente reduzidas, porque sem Estado os cambistas estariam livres para negociar.

Quando seu filho se dá mal na escola, a culpa é do governo, também. É ele quem estipula regras de como, quando e quanto deve ser ensinado ao seu filho. O governo, ao regulamentar a educação, impede que você procure uma escola que se adapte ao estilo dele, obrigando, assim, seu filho a se adaptar à escola que freqüenta. Os métodos de ensino eficazes para alguns não funcionam com todos, e um dos prejudicados pode ser seu filho.

E, se seu encanamento entupiu, não pense duas vezes antes de acusar o Estado. Ele é quem impede, através de órgãos como o CREA, por exemplo, que formas diferenciadas de construção se firmem, porque exige que tudo seja devidamente fiscalizado e inspecionado, o que aumenta e inviabiliza o preço dos encanamentos autolimpantes (que, por sinal, economizam bastante no longo prazo por não exigirem manutenção – e aqui o governo também gasta mais do seu dinheiro).

Na conta de telefone, energia e água como no alto custo de um iPod e na quase impossibilidade de se assinar internet banda larga, lá está o Estado. Em cada pequeno defeito da sua vida, em cada infortúnio, lá você o enxerga, sempre piorando cada coisa que poderia dar certo. No atraso dos aviões como no preço da gasolina e no dos livros; no alto preço de uma geladeira como no do videogame e seu controle. Quando você tropeça na rua ou quando não consegue emprego. Tudo é culpa do Estado e sobre ele deve recair a ira de cada um que já foi assaltado, estuprado, seqüestrado; qualquer um que conheceu alguém que foi assassinado. Ao Estado deve-se culpar pela impossibilidade de se manter uma segurança privada mais eficiente que a pública. O que não se pode querer é que o culpado por todos esses crimes continue administrando a forma como tudo é feito, mas isso é assunto para outro dia.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Não me mate, eu produzo muitas riquezas

Ontem, após ter noticiado o massacre na universidade americana, a âncora do Jornal da Globo disse, segundo a minha memória: "E a pergunta que fica é: como esse massacre pôde acontecer no país que mais produz riquezas no mundo?" Gostaria que, se possível, alguém me indicasse estudos que apontam a proporcionalidade inversa entre massacres em universidades e produção de riquezas.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Relativismo moral, direito natural, senso comum e opressão

Um comentário que deixei no blog do Luiz, pertinente para cá:
1) O que normalmente chamam por aí de ética subjetiva, ou relativismo moral, é só mais um nome para "preferência". Se você diz "a ética é completamente subjetiva", isso implica que qualquer pessoa pode fazer o que quiser, sem qualquer restrição. Eu diria que "ética subjetiva" é uma contradição em termos - ética só pode ser objetiva, se não for passa a ser "vontade", "preferência".

2) Quando algumas pessoas dizem que as outras não têm direitos, isso não vai apenas contra a nossa concepção de direitos (propriedade sobre o próprio corpo e sobre os recursos escassos originalmente sem dono), vai também contra o senso comum. Todas as pessoas reconhecem intuitivamente que as outras têm direitos. Quando as pessoas se revoltam com o regime nazista, não é apenas uma preferência estética que elas estão demonstrando. Elas pensam que o fato de o regime ter matado e torturado milhões foi objetivamente errado. Veja o que Roderick Long diz:
"Most critics of Natural Law assume that the burden of proof lies with the proponent of Natural Law — presumably because they see Natural Law as something bizarre and implausible, something one couldn't sensibly believe unless there were a knock-down argument for it. But in fact, to believe in Natural Law is simply to believe that there are moral standards that transcend the practices and customs of any given community — that there are rational grounds for condemning the Nazi regime as immoral, that it is possible to be justified in so condemning it, even if we assume that what the Nazis did was perfectly in accordance with the values of Nazi culture. When we condemn Nazism, we don't ordinarily take ourselves to be expressing a purely personal, subjective preference, like the preference for chocolate over vanilla; rather, our ordinary practices of praising and condemning seem to implicitly assume that there are objective moral standards, i.e., that there is a Natural Law to which manmade laws are answerable."
É por isso que me parece que adotar a terminologia "lei natural" não é absurdo, porque é o mesmo princípio que ocorre a todos quando se pensa em "justiça".

3) O niilismo stirneriano adotado pelos anarco-individualistas contradiz o que eles próprios pregam (fim da opressão, etc). Aliás, a própria noção de opressão individual (e de indivíduo) perde o sentido.

4) Sobre a "opressão" da lei natural, bom, eu já vi socialistas (do tipo coletivista-autoritário) dizendo que é o sistema econômico que "obriga" as pessoas a trabalhar pra viver, que o trabalho não é um "fim" mas um "meio". Se ele tivesse qualificado a afirmação, dizendo que o sistema econômico vigente explora os trabalhadores e os torna mais pobres, eu concordaria. Mas é o mesmo caso da opressora lei da gravidade, que impede as pessoas de voar. É como aquela idiotice do "Manifesto contra o trabalho".

domingo, 8 de abril de 2007

Chama-me de qualquer coisa, mas fica certo de que qualquer coisa significará o que eu quero dizer

Um dos maiores problemas da atualidade – e eu falo sem medo de exagerar ou extrapolar meus limites – é a mania de criar minorias, dividir, separar, isolar, restringir, limitar, formar grupos cada vez menores para ser definidos por uma palavra que, sem perda de qualidade, poderia definir muito mais elementos do que de fato define.

Cada um deseja ter para si um nome exclusivo, porque não nota que todas as teorias em que acredita são semelhantes às do outro, que adota outro nome para si e acaba forçando uma diferença baseada na mera rivalidade: “apesar de iguais, nós nos odiamos. Por isso somos diferentes”. Não notam que até no ódio mútuo são semelhantes, porque seus olhos estão cegos à possibilidade de, quem sabe, mudar de nome.

Isso acontece tanto com os comunistas – P-SOL, Judean People’s Front, People’s Front of Judea, Popular Front of Judea e PC do B – quanto com os anarquistas – Anarco-capitalismo, anarco-individualismo – e com os social-democratas, que não deixam de ser comunistas – PT, PSDB, DEM. Não há como distinguir um único ideal díspare entre esses grupos, apenas o ódio irracional dedicado ao semelhante justamente pelo fato de ser semelhante.

Qualquer pessoa minimamente interessada por política é capaz de perceber que “Social-democracia” é democracia e que se interessa pelos trabalhadores – afinal, esse “social” deve servir para algo. De fato, qualquer democracia funciona pelos e para os trabalhadores: eles são a verdadeira maioria; são eles que decidem, no final – eu não me lembro de haver, na história, um país com maioria desempregada.

Também o comunismo do P-SOL e o do PC do B são iguais, já que ambos acreditam que a regulamentação estatal em busca do bem geral é necessária para o pleno desenvolvimento da sociedade e para o bem-estar social. P-SOL e PC do B, entretanto, como os partidos populares da Vida de Brian, filme do Monty Phyton, sempre se desgastam enquanto lutam entre si.

A chamada “esquerda”, porém, age para reduzir as diferenças entre si, faz alianças com seus semelhantes, e esse é o motivo de sua força crescente – não uma “revolução gramscista”. Quando estão aliados (numa democracia isso fica claro), o poderio dos partidos (escolas) multiplica-se, assim como a sua influência. Tudo graças ao reconhecimento de que se pensa igual – ou, no mínimo, de forma muito parecida. O que é preciso, como estratégia de fortalecimento, é a união aos partidos (escolas) de pensamentos semelhantes, o reconhecimento de que não se está só – estar só, que, geralmente, é descrito como angustiante, parece, entretanto, agradar à maioria; talvez pelo sentimento de exclusividade, de propriedade da idéia, do nome.

Naturalmente, não se deve deixar enganar por aqueles que não têm coerência com suas idéias, que acreditam que é possível, por exemplo, ser liberal no aspecto econômico e conservador no social, como os conservadores, que aparentemente acham que a sociedade está desvinculada de sua economia, como se a economia fosse algo além ou aquém da sociedade. Não se deve, na ânsia pela conquista de espaço, aliar-se àqueles que não têm consistência ou que discordam de você. Uma aliança entre liberais e conservadores apenas serviria para desvirtuar os primeiros, já que os segundos são incapazes de desenvolver qualquer teoria com o mínimo de consistência.

De minha parte, agora, abdico a qualquer nome ou título para me aliar àqueles que concordam com minhas idéias, porque as palavras são apenas o que fazem delas, significam apenas o que lhes foi concedido, e não me importo de abrir mão da propriedade de uma palavra para conquistar aliados sob outro rótulo de significado semelhante.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Lola - Truman Capote (1964)

Sim, sob todos os aspectos era um presente curioso. Espantoso, realmente. Pois eu já tinha bichos suficientes: dois cães, um buldogue inglês e um terrier Kerry. Além disso, nunca fui entusiasmado por pássaros. Na verdade, confesso certa aversão por eles: quando uma gaivota vira e mergulha no mar, por exemplo, minha propensão é entrar em pânico e sair correndo. Certa vez, quando eu tinha cinco ou seis anos, um pardal entrou voando pela janela do meu quarto e ficou preso lá dentro: voou de um lado para o outro até eu quase desmaiar de emoções em que a piedade aparecia, mas o medo predominava. Por isso fiquei meio desanimado ao ganhar o presente de Natal de Graziella: um corvo jovem medonho com a asa cruelmente cortada.

Agora, mais de doze anos se passaram, pois isso aconteceu na manhã de Natal de 1952. Eu morava na Sicília na época, nas montanhas; a casa, situada no meio de um olival prateado, era feita de pedra rosa clara; tinha muitos quartos e um terraço com vista para o Etna e seu cume nevado. Lá embaixo víamos, nos dias ensolarados, o mar azul como um olho de pavão. Era uma linda casa, embora não fosse muito confortável, principalmente no inverno, quando o vento do norte grita e uiva, quando tomamos vinho para esquentar e mesmo assim o toque do piso de pedra é gelado como o beijo de um cadáver. Qualquer que seja o clima, inverno rigoroso ou verão escorchante, a casa não seria habitável sem Graziella, a moça do vilarejo que vem todas as manhãs e fica até depois do jantar. Ela tinha dezessete anos, era uma jovem vigorosa de corpo atarracado e forte: tinha pernas de um lutador japonês - ligeiramente arqueadas, com coxas grossas. Seu rosto, porém, era muito formoso: olhos castanhos e dourados como o brandy local; faces rosadas; sobrancelha castanha fina; o cabelo preto escovado rente ao crânio, mantido em sua posição graças a um par de pentes espanhóis. Levava uma vida dura, e dela reclamava constantemente, de um jeito divertido, jovial: o pai era o bêbado da aldeia, ou pelo menos um deles; a mãe, uma carola histérica; e Paolo, o irmão mais velho - ela o adorava, embora todas as semanas ele a espancasse e lhe roubasse o salário. Éramos bons amigos, Graziella e eu, e naturalmente trocávamos presentes no Natal. Dei-lhe um suéter e um colar de contas verdes. E ela, como retribuição, trouxe-me o corvo.

Já contei que ele era feio. E como. Um ser simultaneamente temível e patético. Por mais que me arriscasse a ofender Graziella, eu o teria libertado assim que fosse capaz de se virar sozinho. Mas as asas haviam sido cortadas muito fundo, jamais conseguiria voar; só andava, manquitolando, o bico preto aberto como a boca de um idiota, os olhos baços, perdidos. Graziella subira ao alto das encostas vulcânicas acima de Bronte e o capturara na ravina onde os corvos faziam seus ninhos, um vale pedregoso de espinheiros e arbustos retorcidos. "Eu o peguei com uma rede de pesca", contou. "Corri no meio dos pássaros. Quando atirei a rede, dois se emaranharam. Deixei um ir embora. O outro, este aqui, guardei numa caixa de sapato. Levei-o para casa e cortei as asas. Os corvos são muito espertos. Mais do que os papagaios. Ou que os cavalos. Se a gente fende sua língua, eles aprendem a falar." Graziella não era cruel, apenas assumia a indiferença mediterrânea ao sofrimento dos animais. Revoltou-se quando a impedi de mutilar a língua da ave; a bem da verdade, perdeu completamente o interesse pela pobre criatura, cujo bem-estar tornou-se minha penosa tarefa.

Eu o mantinha num quarto vago, sem mobília; ele vivia lá trancado, feito um parente insano. Pensei, bem, as asas vão crescer logo, aí ele poderá ir embora. Mas o Ano Novo chegou e se foi, as semanas passaram e finalmente Graziella explicou que meu presente de Natal só conseguiria subir aos céus novamente em seis meses.

Eu o detestava. Odiava visitá-lo; aquele era o quarto mais frio da casa, e o pássaro uma visão lamentável, impecavelmente triste. Contudo, a consciência de sua solidão me empurrava para lá - embora no início ele desse a impressão de gostar ainda menos do que eu das visitas: ficava quieto num canto, de costas para mim, um prisioneiro silencioso entre a tigela de água e a de comida. Com o tempo, porém, percebi que minha presença não era mais ressentida; ele parou de me evitar, olhava nos meus olhos e, com uma voz rouca e desafinada, emitia ruídos aparentemente amigáveis: cacarejos abafados. Começamos a fase das descobertas mútuas: descobri que ele gostava que lhe coçassem a cabeça, ele entendeu que suas bicadas de brincadeira me divertiam. Logo ele aprendeu a se equilibrar na ponta da minha mão, depois a sentar no meu ombro. Adorava me beijar - de leve, o bico roçava no meu queixo, nas faces, no lóbulo da orelha. Mesmo assim, continuei a sentir uma certa repulsa por ele, creio: a cor fúnebre, a sensação de tocar suas penas, odiosa (para mim) como sentir a pele de um peixe ou o couro de uma cobra.

Certa manhã - era final de janeiro, as amendoeiras estavam floridas, pois a primavera chega cedo na Sicília: uma mistura de perfume e flores cobria a paisagem - descobri que o corvo havia fugido. O quarto em que vivia tinha portas tipo veneziana que davam para um jardim; durante a noite as portas se abriram, sabe-se lá como; talvez por causa do siroco, que soprava na época (trazendo consigo a areia fina do deserto africano). O pássaro desaparecera. Procurei no jardim inteiro; Graziella subiu o morro. A manhã passou, e a tarde. Ao anoitecer, já havíamos procurado "em todos os lugares": no meio dos espinhos do capão dos cactos, entre os túmulos do cemitério vizinho, dentro de uma caverna que cheirava a urina de morcego. Gradualmente, no decorrer de nossa busca, um fato finalmente foi admitido: eu gostava muito de Lola. Lola! O nome surgiu como uma lua cheia no céu, espontâneo e inevitável; até o momento, eu não lhe dera um nome: fazer isso, pensei, seria admitir que ela era uma aquisição permanente.

"Lola?"

Chamei-a da janela. Finalmente, fui para a cama. Claro, não consegui dormir. Tive visões: Lola, seu pescoço entre as presas de um gato; um gato vermelho a correr com ela para realizar seu banquete numa toca manchada de sangue e cheia de penas. Ou Lola, impossibilitada de voar, escondida, até que a fome e a sede a liquidassem.

"Lo-o-o-o-la-a-a?"

Não havíamos procurado dentro de casa. Talvez nunca tivesse saído, só passado por uma porta e entrado por outra. Acendi uma vela (a eletricidade quase nunca funcionava); fui de quarto em quarto; e, num deles, uma saleta sem uso, a vela iluminou um par de olhos familiares.

"Ah, Lola."

Ela subiu na minha mão; de volta ao quarto, eu a transferi para a guarda da cama de latão. Ela se agarrou com força e enfiou a cabeça cansada debaixo de uma das asas mutiladas. Logo pegou no sono, e eu também, assim como os cães (encolhidos e próximos da lareira ainda rubra do aromático fogo de lenha de eucalipto).

Os cachorros nunca tinham visto Lola, eu estava meio ansioso quando a apresentei a eles na manhã seguinte, pois os dois, e principalmente o Kerry, eram capazes de repentes malucos. Mas se era para ela ficar em casa conosco, isso precisava ser feito. Eu a pus no chão. O buldogue a cheirou com seu nariz achatado, trufado, depois bocejou, mas não de preguiça e sim de constrangimento; todos os cachorros bocejam quando ficam sem graça. Obviamente, não sabia o que ela era. Comida? Brinquedo? O Kerry concluiu que era brinquedo e lhe deu uma patada. Encurralou-a num canto. Ela reagiu, bicou seu focinho; Lola gritava de um modo rude e violento, como se proferisse os piores palavrões. Assustou o buldogue; ele correu para fora do quarto. Até o Kerry recuou - sentou-se e ficou olhando para ela, deslumbrado.

Dali para a frente os cães passaram a respeitar Lola para valer. Mostravam por ela a maior consideração; ela não dava a mínima. Usava a tigela de água deles para tomar banho; na hora das refeições, sempre insatisfeita com seu prato, atacava o deles, servindo-se do que lhe agradava. Transformou o buldogue em poleiro particular; em pé nas costas largas do cão, passeava pelo jardim como uma equilibrista de circo em cima do cavalo. De noite, na frente da lareira, ela se aninhava entre os dois, e se eles se mexessem ou fizessem algo que perturbasse o seu descanso, levavam uma bicada.

Lola era muito nova quando Graziella a apanhou - não passaria de um filhote. Em junho já hava triplicada de tamanho, crescera feito uma galinha. As asas haviam crescido de volta, ou quase. Mesmo assim ela não voava. A bem da verdade, recusava-se. Preferia andar. Quando os cães saíam a passear, ela ia junto com eles, saltitando. Certo dia me ocorreu que Lola talvez não soubesse que era um pássaro. Vai ver ela pensava ser um cachorro. Graziella concordou comigo, nós dois rimos muito; achamos tudo muito divertido, e nenhum dos dois imaginou que o engano de Lola acabaria certamente em tragédia: a maldição que aguarda quem recusa sua própria natureza e insiste em ser algo diferente do que realmente é.

Lola era ladra; se não fosse, jamais teria usado as asas. Contudo, o tipo de artigo que gostava de furtar - coisas brilhantes, uvas, canetas-tinteiro, cigarros - normalmente ficavam em lugares altos; portanto, para chegar ao tampo da mesa ela ocasionalmente dava um (literal) salto voador. Certa vez, pegou um par de dentaduras. Os dentes pertenciam a uma convidada, uma senhora idosa e difícil de lidar. Ela disse que não achava a menor graça e começou a chorar. Para piorar, ignorávamos onde Lola escondia seus tesouros (segundo Graziella, todos os corvos são ladrões e invariavelmente possuem um esconderijo para os bens furtados). O único procedimento sensato seria tentar fazer com que Lola revelasse onde escondera a dentadura. Ela admirava o ouro: um anel de ouro que eu usava às vezes provocava seu olhar de cobiça. Nós (Graziella e eu) montamos uma armadilha com o anel: deixamos a jóia em cima da mesa de almoço, onde Lola comia migalhas, e nos escondemos atrás da porta. No momento em que se julgou sozinha, ela pegou o anel e correu para fora da sala de jantar, percorreu o corredor e entrou na "biblioteca" - uma sala pequena e abafada, cheia de edições baratas dos clássicos, propriedade do inquilino anterior. Ela pulou do chão até uma poltrona, e de lá para a estante; ali, como se fosse uma fenda na montanha que conduzia à caverna de Ali Babá, ela se esgueirou entre dois livros e sumiu atrás deles: evaporou, como Alice através do espelho. A obra completa de Jane Austen ocultava seu tesouro, que encontramos logo. Além da dentadura furtada, ele consistia em um chaveiro com as chaves do meu carro, desaparecido havia algum tempo (não desconfiei de Lola, pensei que o perdera), um monte de dinheiro picado - milhares de liras reduzidas a pedacinhos, como se destinadas a um ninho futuro, cartas antigas, meu melhor par de abotoaduras, elásticos, pedaços de barbante, a primeira página de um conto que eu parara de escrever por não achar a primeira página, uma moeda norte-americana de um centavo, uma rosa seca, um botão de cristal.

No início daquele verão Graziella anunciou seu noivado com um rapaz chamado Luchino, que era garçom, tinha cintura fina, cabelos oleosos encaracolados e perfil de artista de cinema. Falava um pouco de inglês, um pouco de alemão, usava sapatos de camurça verde e possuía uma Vespa. Graziella tinha motivos para cnsiderá-lo um noivo formidável; mesmo assim, não gostei da história. Na minha opinião, ele era comum e saudável, normal demais para um sujeito ladino como Luchino (que tinha reputação de ser gigolô semiprofissional de turistas solitárias: solteironas suecas, viúvas e viúvos alemães), embora tais atividades, a bem da verdade, não fossem incomuns entre os jovens do vilarejo.

Mas o regozijo de Graziella era irresistível. Ela espalhou fotografias de Luchino pela cozinha inteira, em cima do fogão, em cima da pia, na parte interna da porta da geladeira, até no tronco da árvore que crescera na frente da janela da cozinha. A paixão, claro, interferiu no modo como ela cuidava de mim: agora, ao etilo siciliano, ela tinha as meias do namorado para cerzir, sua roupa para lavar (e era uma montanha!), isso sem mencionar as horas que dedicava ao preparo do enxoval de noiva, à roupa de baixo bordada e a experimentar o véu de noiva. Com freqüência, no almoço, ela me servia um prato de espaguete frio e duro, e ovos fritos frios no jantar. Ou absolutamente nada; ela vivia com pressa, correndo para encontrar o namorado na piazza, para um passeio ao crepúsculo. Contudo, em retrospecto, sua felicidade não me causava inveja; serviu apenas como prelúdio para um desfecho amargo, infeliz.

Certa noite de agosto seu pai (muito amado, apesar das bebedeiras) recebeu (de um turista norte-americano) uma dose de gim em copo alto, com sugestão de tomar tudo de um só gole, o que lhe causou um derrame que o deixou paralítico. No dia seguinte, um acontecimento ainda mais terrível: Luchino, percorrendo uma estradinha interiorana na Vespa, fez uma curva e atropelou uma menina de três anos, matando-a instantaneamente. Levei Lucrino e Graziella de carro ao enterro da menina; depois, na volta para casa, Luchino se manteve quieto e não chorou, mas Graziella gemia e chorava como se tivessem partido seu coração: presumi que pranteava a criança morta. Mas não, Luchino corria o risco de ser preso, e deveria pagar uma indenização enorme - o casamento não seria realizado em breve, nem nos próximos anos (se é que ocorreria um dia).

A pobre moça ficou desolada. O médico recomendou repouso. Um dia fui visitá-la, para saber como estava passando. Levei Lola comigo, pretendedo animar a enferma. Em vez disso, a visão do pássaro a horrorizou; ela gritou. Disse que Lola era uma bruxa, que lola tinha o malocchio, o mau-olhado, e que a dupla tragédia, o derrame do pai e o acidente de Luchino, haviam sido obra de Lola, castigo por ela ter capturado e cortado as asas do pássaro. Ela afirmou que era verdade: qualquer criança sabe que os corvos são materializações de espíritos malignos e sombrios. E completou: "Nunca mais entrarei em sua casa".

E não voltou, mesmo. Nem qualquer outra empregada. Por conta das acusações de Graziella, criou-se o mito de que a minha casa estava impregnada de mau-olhado. Não era só Lola, eu também possuía o malocchio. Não se poderia acusar alguém de coisa pior, na Sicília. Para completar, não havia defesa contra tal acusação. No começo eu brincava com isso, embora não houvesse nada de humorístico no episódio. As pessoas faziam o sinal da cruz quando encontravam comigo na rua; ou, assim que eu passava, formavam um chifrinho com as mãos, apontando para mim - um gesto da magia negra destinado a anular o poder de meus olhos malignos, enfeitiçados por trás dos óculos de tartaruga.

Acordei certa vez, por volta da meia-noite, e decidi (pronto!) ir embora. Partir antes do amanhecer. Foi uma decisão e tanto, eu vivia ali havia dois anos e não gostava da idéia de ficar sem um teto, de repente. Desabrigado, com dois cães enormes e um pássaro fora da gaiola. Mesmo assim, pus as coisas no carro: parecia uma cornucópia: sapatos, livros, vara de pescar saindo pela janela; com alguns empurrões, consegui enfiar os cachorros no carro. Mas não havia sobrado lugar para Lola. Ela teve de se empoleirar no meu ombro, o que não estava longe do ideal, pois ela era uma passageira nervosa, a cada virada ou freada brusca ela gritava ou me sujava.

Cruzamos o estreito de Messina e a Calábria, para chegar a Nápoles e a Roma. Uma viagem agradável de recordar: por vezes, quando estou quase pegando no sono, revejo algumas cenas. Um piquenique nas montanha calabresas: céu azul intenso, rebanho de cabras adiante, os assobios breves e agudos do pastor de cabras, com um apito de bambu. E Lola a devorar pedacinhos de pão embebidos em vinho tinto. Ou Cape Palinuro, uma praia calabresa escondida, na beira do bosque, onde tomávamos o sol ainda quente de outubro quando um porco selvagem saiu do mato e correu em nossa direção como se pretendesse nos atacar. Só eu fui intimidado: corri para o mar. Os cães se prepararam para a defesa, com Lola a seu lado a bater asas e gritar para encorajá-los, com uma voz esganiçada; juntos, conseguiriam afugentar o porco de volta para o bosque. Naquela mesma tarde chegamos até as ruínas de Paestum: fim de tarde magnífico, o céu parecia outro mar, a meia-lua era um navio ancorado a balançar no céu de estrelas e em torno de nós o mármore enluarado, os templos caídos de uma época distante. Dormimos na praia, ao lado das ruínas; ou eles dormiram - Lola e os cães: fui atormentado pelos mosquitos e temores da mortalidade.



Decidimos passar o inverno em Roma, primeiro num hotel (o gerente nos expulsou após cinco dias, e nem chegava a ser um estabelecimento de primeira classe), depois num apartamento no número 33 da Via Margutta, rua estreita freqüentemente retratada por pintores ruins, famosa pelo número de gatos que ali se abrigam, felinos sem dono que vivem nos pátios enormes, dependendo da caridade das velhas meio doidas que todos os dias percorrem os esconderijos dos gatos com sacos de restos de comida.

Nosso apartamento ficava na cobertura: para atingi-lo era preciso subir seis lances de escada escura e íngreme. Tínhamos três cômodos e uma sacada. Aluguel o apartamento por causa do terraço; em oposição à vista vasta de meu terraço na Sicília, a sacada oferecia um cenário tranqüilo em miniatura, perfeito como a luz de velas: vários telhados romanos, cor-de-laranja e ocre esmaecidos, e algumas janelas (por trás das quais alguns momentos de vida familiar podiam ser acompanhados). Lola adorava a sacada. Raramente saía de lá. Gostava de se empoleirar na beirada do parapeito de pedra e observar o tráfego na rua de pedras arredondadas, lá em baixo: as velhas que alimentavam os gatos da Margutta; um músico ambulante que aparecia em todas as tardes e tocava gaita de foles até que alguém, sentindo-se chantageado, lhe desse uma moeda; um bem-apessoado afiador de facas que anunciava seus serviços com uma canção entoada no mais feroz barítono (as donas de casa corriam!).

Quando o sol brilhava Lola tomava seu banho no parapeito da sacada. Uma sopeira de prata lhe servia de banheira; depois de uma rápida imersão na água rasa, ela abria e fechava as asas, e como se expulsasse uma capa de cristal, sacudia o corpo, inflava as penas; mais tarde, por longas e prazerosas horas, ela tomava sol com a cabeça virada para trás, o bico entreaberto, os olhos fechados. Observá-la era uma experiência apaziguante.

O signor Fioli pensava assim. Sentado à sua janela, que ficava exatamente em frente da sacada, ele acompanhava todos os movimentos de Lola, enquanto ela estivesse visível. O signor Fioli me interessava. Dei-me ao trabalho de descobrir seu nome e um pouco de sua história. Ele tinha 93 anos, e aos noventa perdera a capacidade de falar: quando queria atrair a atenção da família (uma neta viúva e cinco bisnetos adultos) ele tocava uma sineta. Fora isso, e embora nunca saísse do quarto, parecia perfeitamente capacidado a cuidar de si. Sua visão era excelente: via tudo que Lola fazia, e se ela cometia um ato que chamasse a atenção pela delicadeza ou estupidez, um sorriso adoçava seu rosto de idoso sério, muito viril. Ele havia sido marceneiro, a empresa que fundara ainda funcionava no térreo do prédio em que residia; três de seus bisnetos trabalhavam lá.

Certa manhã - na mesma manhã que antecede o Natal, quase um ano após o dia em que Lola entrou em minha vida - enchi a sopeira de Lola de água mineral (ela preferia tomar banho com água mineral, quanto mais gasosa melhor), levei-a para a sacada e acenei para o signor Fioli (quye, como de costume, estava sentado na beira da janela, esperando para ver o banho de Lola), depois entrei, sentei-me à escrivaninha e comecei a escrever algumas cartas.

De repente, ouvi o tilintar da sineta do signor Fioli: um só já familiar, pois eu o escutava vinte vezes ao dia; mas nunca soara daquele jeito: toques rápidos como a batida de um coração excitado. Eu me perguntei o porquê daquilo e fui espiar: vi Lola, a adoradora do sol, bestificada e encolhida no parapeito - e, atrás dela, um gato amarelado e enorme, um gato que se esgueirara pelos telhados e agora se arrastava sobre a barriga no parapeito, com seus olhos verdes a brilhar.

O signor Fioli tocou a sineta. Eu gritei. O gato saltou, exibindo as garras. Mas, no último segundo, Lola percebeu o perigo. Ela pulou do parapeito, no espaço vazio. O gato decepcionado, o signor Fioli e eu acompanhamos a sua extradordinária descida.

"Voa, Lola, voa!"

Suas asas, embora abertas, permaneciam imóveis. Lenta e gravemente, como se estivesse presa a um pára-quedas, ela foi descendo, descendo.

Uma caminhonete passava na rua, lá embaixo. Primeiro pensei que Lola fosse cair na sua frente: seria um perigo terrível. Mas o que aconteceu foi pior, apavorante, terrível: ela pousou em cima dos sacos que estavam sendo transportados na caminhonete. E ficou lá. E a caminhonete seguiu em frente: dobrou a esquina e sumiu da Via Margutta.

"Volte, Lola, volte!"

Corri atrás dela; deslizei pelos seis andares de escada de pedra lisa; caí, ralei o joelho, perdi os óculos (eles saltaram dos meus olhos e bateram na parede). Lá fora, corri até a esquina onde a caminhonete virara. Ao longe, para lá da névoa composta de miopia e lágrimas, vi que a caminhonete parara num sinal de trânsito. Mas, antes que eu pudesse alcançá-la, o sinal abriu e a caminhonete, com Lola a bordo, a levou para longe de mim para sempre, perdendo-se no meio do trânsito que circulava pela Piazza di Spagna.

Poucos minutos transcorreram desde o ataque do gato, uns quatro ou cinco. Contudo, precisei de uma hora para refazer meu percurso, subir a escada, abaixar e pegar os óculos quebrados. Enquanto isso, o signor Fioli continuava sentado à janela, esperando com uma expressão consternada, sofrida, surpresa. Quando viu que eu havia retornado ele tocou a sineta e me chamou ao terraço.

Eu lhe disse: "Ela pensava que era outra coisa".

Ele franziu a testa.

"Um cão."

Ele franziu a testa com mais força.

"Ela foi embora."

Ele entendeu. Baixou a cabeça. Eu também.