terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Minhas palestras no Liberdade na Estrada


Em novembro, participei de quatro palestras do Liberdade na Estrada, organizado pelo Ordem Livre. O tema geral das palestras era "O que você faria se fosse presidente por um dia?" e minha palestra foi uma adaptação do texto "O liberalismo em cinco pontos para o Brasil".

Fabio Ostermann, co-palestrante e quem me convidou para as palestras, acaba de postar duas das palestras de que eu participei no Youtube (Recife e Campina Grande). As duas são praticamente iguais; há algumas pequenas diferenças na apresentação e nos pontos abordados, mas as mudanças foram basicamente cosméticas.

Apesar disso, eu coloco as duas aí embaixo, já no ponto em que eu apareço para que vocês possam aproveitar a Full Erick Vasconcelos Experience.

Obrigado aos meus outros colegas de palestra Adrualdo Catão e Taiguara Fernandes. E Feliz Natal a todos.

Recife (IFPE)



Campina Grande (UEPB)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Revenge porn e o controle da individualidade feminina


Para o Mercado Popular.

Carol Portaluppi foi a última mulher a ganhar notoriedade por ser vítima do revenge porn, a divulgação mesquinha de fotos íntimas por vingança. Meses atrás, outra garota acabou empurrada para o suicídio após ver sua vida social destruída com a divulgação de um seu vídeo privado no aplicativo WhatsApp.

É assunto sério, portanto, e claramente os indivíduos envolvidos nessas liberações de material privado devem ser processados criminalmente. E certamente é um assunto mais sério do que indica a reação de Renato Gaúcho, pai de Carol Portaluppi, de colocar sua filha (de 19 anos) de castigo:
O técnico de futebol, que está de malas prontas para voltar para o Rio — o contrato com o Grêmio, time gaúcho que comandava, não foi removado —, ainda colocou Carol de castigo, trancada em casa, e deu um gelo na filha. Ela está arrasada.
Para Renato Gaúcho, sua filha foi descuidada e digna de repreensão. Descuidada, sim; digna de repreensão, veja bem, vamos com calma.

Há duas facetas da questão: primeiro há o paternalismo implícito na ideia de que as mulheres jamais se podem deixar filmar ou fotografar durante o sexo e que será uma decisão necessariamente irracional; e, em segundo plano, existe a tropa da moralidade sempre presente na internet que descobriu que pode chamar qualquer mulher de vagabunda com mínima repercussão, mesmo que leve um ser humano à morte.

É evidente que em casos como a divulgação de vídeos íntimos, a mulher está numa situação particularmente vulnerável e está sempre sujeita a mais repercussões sociais do que os homens. Pouco discutível e, por isso, muitos homens se sentem na responsabilidade moral de "proteger" as mulheres - especialmente de si mesmas.

Esse paternalismo (no caso de Carol Portaluppi, literal) toma várias formas e age para sistematicamente restringir os tipos de comportamentos permitidos às mulheres. Renato Gaúcho, em seu ato indubitavelmente bem intencionado de repreender sua filha e chamar atenção para o a "má decisão" de ter deixado fotos íntimas na mão de um namorado, reforça a cultura de opressão feminina.

É isso que feministas como Susan Brownmiller querem dizer quando falam de uma "cultura do estupro"; não se trata do fato de que todos os homens sejam estupradores, mas de que o ato de alguns serve para moldar o comportamento sistemático das mulheres em relação a todos os homens. E a maioria esmagadora de homens, bem intencionados, também reage ao risco palpável de estupro das mulheres a qualquer dado momento, podando diversos comportamentos femininos, efetivamente restringindo ou destruindo sua individualidade.

Charles Johnson descreve a situação social feminina de perigo perene:
[A] ameaça de estupro impõe restrições ao comportamento das mulheres: Não saia sozinha à noite. Não chame a atenção no metrô. Não se vista assim. Não aja muito sensualmente. Não vá a essa festa. Não beba na festa. Se beber, então é melhor você gostar do que deve ocorrer depois e nem pensar em reclamar, porque você estava pedindo para algo acontecer.

Além disso: você deve encontrar o Homem Certo e pedir auxilio a ele na sua proteção contra outros homens. (Ele poderá acompanhá-la à noite até em casa. E entrar numa situação difícil para dispersar os Homens Errados que estejam incomodando. E tornar-se seu namorado, noivo ou marido, para protegê-la.)

A consequência natural dessas restrições é que as mulheres em nossa sociedade têm seu comportamento sistematicamente restringido pelo medo dos homens. As mulheres não são livres porque precisam descobrir como viver com a existência de ampla, intensa e aleatória violência contra as mulheres.
revenge porn é sintomático e análogo ao do estupro porque esses "conselhos" sobre o comportamento feminino (de que ela não deve tirar fotos, ou se permitir filmar, ou agir assim ou assado durante o sexo) são dados não só por quem se preocupa com a vítima, mas também por aqueles que querem denegri-la!

Acaba sendo uma self-fulfilling prophecy: na internet, qualquer um pode denunciar, xingar e estigmatizar alguém com poucas repercussões. As próprias pessoas que já pretendem fazer coisas do tipo sempre que uma mulher for vitimada já avisam: "Não aja assim, ou você poderá ser xingada, denunciada e estigmatizada." É como se o fofoqueiro do bairro aconselhasse um conhecido a andar na linha para "não ficar mal falado" (por ele próprio).

Grande ironia que, atualmente, época em que vídeos caseiros ganham notoriedade e que as pessoas coletivamente descobrem que outros indivíduos comuns fazem sexo e têm fantasias, haja cada vez mais patrulhamento moral da intimidade. Não patrulhamento individual, claro; felizmente as pessoas, de modo geral, estão cada vez mais sexualmente tolerantes e abertas. Mas, graças à internet, qualquer vídeo vazado ganha uma dimensão gigantesca. Uma sociedade tradicional de 50 anos atrás era muito mais intolerante individualmente, mas a possibilidade de fotos e vídeos íntimos saírem de um pequeno círculo era muito pequena. Hoje, mesmo com o maior esclarecimento, um pequeno número de indivíduos espalhados pode ter um impacto social muito maior.

A mulher não deve apenas se certificar de que não esteja sendo filmada ou fotografada; se for, ela deve se assegurar de que não esteja fazendo nada que esteja muito fora do padrão de normalidade sexual. Foi isso que ocorreu com a garota levada ao suicídio: xingada e escorraçada, chamada de todas as variantes da palavra "puta" existentes - ironicamente por uma tropa de punheteiros de internet lamentando nossa decadência moral.

É um exemplo perverso de ordem espontânea hayekiana. Como bem observa Johnson, os liberais tendem a enfatizar os exemplos positivos de ordens espontâneas, porque elas mostram a desnecessidade do intervencionismo. No caso do machismo, porém, não é necessário nem que um homem queira conscientemente oprimir uma mulher - suas boas intenções já podem ser o bastante para arrancar a individualidade dela. Com más intenções, a questão dispensa comentários.

Não quero ser mal interpretado aqui, então vou colocar a situação com todas as letras: não há nada de errado em tirar fotos ou fazer filmes durante o sexo. É sexualmente interessante, excitante e divertido. Também não há nada de errado com outras fantasias sexuais, posições sexuais, locais variados para sexo.

A sexualidade não deve ser estática e desinteressante, pode ser explorada livremente e as mulheres não devem carregar o fardo de terem que estar sempre alertas porque algum seu parceiro pode ser um completo cretino e divulgar seu material íntimo. Culpa aí recai inteiramente sobre quem divulga as fotos e vídeos; é criminoso.

Vi muitas vezes argumentos feministas como os que eu acabei de apresentar serem rebatidos com alegações de que, por exemplo, você também não deve sair à noite na rua sozinho, mesmo se for homem - trata-se de uma precaução de bom senso.

Mas, pelo contrário, é um problema a naturalização do perigo associado a atos banais como sair de casa à noite. A violência não é inevitável - é um ato consciente de indivíduos que, se pegos, serão responsabilizados por ela. Admira que conservadores, sempre ciosos da aplicação da punição penal, e muitos liberais não percebam esse ponto. Digamos que o Brasil não está fadado a ser violento para sempre e que o primeiro passo para a derrota dessa violência é aceitando que a culpa de um assalto não é de quem andou numa rua na hora errada, assim como o responsável pelo estupro não é a mulher que escolheu sair com uma saia curta demais.

E a garota que escolher um dia querer fazer um vídeo sensual para ver mais tarde também não será culpada se seu namorado mais tarde se provar um cafajeste.

Porque, ao contrário da tropa da moralidade da internet, na vida real as pessoas tomam más decisões às vezes.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Funk é cultura, goste você ou não


Para o Mercado Popular.

Recentemente, no site El Hombre, foi publicado o texto de Artur Dias "A indefensável e insistente culturalização do funk carioca". É aquele tipo de artigo da ala da esquerda que eu chamo de Time Adorno de análise cultural: elitismo exacerbado combinado a melindres sobre a mercantilização que corrompe a verdadeira cultura popular.

Incidentalmente, é curioso encontrar esse tipo de artigo. Meses atrás, ganhou manchetes o projeto que passou no mestrado de Cultura e Territorialidades da UFF que discutia o funk como representação cultural legítima. O tema de Mariana Gomes foi amplamente criticado por ser um tema trivial e indigno da academia, inclusive por colegas meus liberais. Imagino que eles se regozijarão com o artigo de Artur Dias, que defende a ideia exatamente oposta.

Para Artur, o funk é um fenômeno artificial importado que não representa de fato a brasilidade. Comentando a perseguição sofrida pelo funk à qual chamou atenção o jurista Nilo Batista, Dias afirma que não há paralelo entre a perseguição que o samba sofreu no começo do século 20 e a perseguição e criminalização atual do funk. O samba, sempre segundo Artur Dias, se desenvolveu "magnetizando pluralidade linguística, rítmica, melódica, estética, instrumental", enquanto o funk sinal de banalização do "grotesco", tratando-se de um ritmo "monossilábico, enrijecido, uníssono, disforme, monocórdico".

O samba ocorreu de "dentro para fora", enquanto o funk é uma nacionalização tosca do miami bass americano; uma imposição cultural. O funk, no mais, apresenta um discurso ideológico

"elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social."

Palavras fortes. Caso alguém ainda esteja esperando, adianto que Artur Dias parece ter se esquecido de dizer por que nada disso pode ser cultura.

Mesmo que todas as acusações dele fossem verdadeiras (e não são), não há nada que impeça um ritmo grotesco, monocórdico, de discurso elitista e paternalista de caracterizar cultura popular.

Cultura não é só aquilo de que gostamos. Cultura engloba toda uma gama de experiências sociais - algumas delas nós não estamos preparados para aceitar. Isso deveria ser óbvio para alguém tão obviamente de esquerda como Artur Dias. Afinal, de que servem as extensas denúncias e lamentações sobre a "cultura do estupro" se cultura não puder englobar também aspectos sociais negativos de um povo?

O mérito da qualidade cultural do funk nem entra aqui em questão. É fato que o funk é representação cultural, gostem ou não eu, você ou Artur Dias.

Artur erra porque adota um conceito idealizado de "brasilidade", no qual se encaixa o samba, mas não o funk. Brasilidade, porém, não é nada mais que um delírio proto-totalitário que insiste em não morrer desde o movimento modernista no Brasil. Desde então, a alta cultura e arte brasileira não desiste de procurar uma "identidade nacional", uma "brasilidade", um Macunaíma. É verdade que o samba nasceu e cresceu no meio do povo, mas cresceu e se adaptou, internalizou outras expressões culturais, importou de fora muitas expressões. O que falar do samba de gafieira? Do samba-exaltação getulista? De Ary Barroso e Noel Rosa? Imagino também que não sejam expressões culturais, porque são oriundos da "elite", importando elementos estrangeiros e atentando contra a nossa brasilidade.

É desconcertante ver pessoas que deveriam possuir um pouco mais de sensibilidade cultural se curvarem a nacionalismos culturais toscos. Se o samba é expressão de brasilidade, o Nordeste e o Norte não devem ser muito Brasil, já que nestes lugares é gênero musical relativamente menor.

Da mesma forma, é verdade que o funk é oriundo do miami bass. But that's not a bug, it's a feature. A Bossa Nova veio do jazz (e era tocada pela elite). É compreensível que nacionalistas culturais como Artur Dias desconfiem do intercâmbio cultural. Mas não há o que temer. As trocas culturais devem ser celebradas, a não ser que Artur queira ser o primeiro a dizer para os Racionais que o que eles fazem não entra na conta da cultura brasileira porque é apenas a importação de um ritmo ameri... estadunidense.

Quanto ao discurso do funk carioca, the jury is still out. Valesca Popozuda canta sobre a libertação do corpo feminino, mas é evidente que é um discurso que pode ser uma faca de dois gumes: pode tanto ser um grito de libertação quanto, em determinados contextos, levar a mulher a um aprisionamento num papel social restrito.

Eu, ao contrário de Artur Dias, não vou enquadrar todo o discurso funkeiro sob um rótulo. Mas, infelizmente para ele, o funk é cultura popular, sendo importada, elitista, comércio, o que for. Porque cultura engloba até aquilo que nós odiamos (estou curioso para saber o que ele pensaria sobre os ritmos mais populares de onde eu moro, notadamente o forró "brega").

De minha parte, porém, tenho uma visão mais otimista sobre o funk, até porque não estou preso a uma concepção de quase cem anos de cultura nacional.

Afinal,

O tempo passa
O mundo gira
O mundo é uma bola

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Criando uma economia dual


No livro Por que as nações fracassam, de Daron Acemoglu e James Robinson, um trecho do capítulo 9 comenta as dificuldades econômicas dos negros sob o apartheid. Ao contrário do que se pensa em geral, os negros, até o começo do século 20, experimentavam rápido crescimento econômico e mudanças nas condições de vida. A nova legislação racista empurrou a maioria da população para a pobreza e a dependência econômica.

Tenho o livro em inglês e decidi postar o capítulo aqui, já que o tema está em voga desde a morte de Nelson Mandela.

***

MAKING A DUAL ECONOMY

The “dual economy” paradigm, originally proposed in 1955 by Sir Arthur Lewis, still shapes the way that most social scientists think about the economic problems of less-developed countries. According to Lewis, many less-developed or underdeveloped economies have a dual structure and are divided into a modern sector and a traditional sector. The modern sector, which corresponds to the more developed part of the economy, is associated with urban life, modern industry, and the use of advanced technologies. The traditional sector is associated with rural life, agriculture, and “backward” institutions and technologies. Backward agricultural institutions include the communal ownership of land, which implies the absence of private property rights on land. Labor was used so inefficiently in the traditional sector, according to Lewis, that it could be reallocated to the modern sector without reducing the amount the rural sector could produce. For generations of development economists building on Lewis’s insights, the “problem of development” has come to mean moving people and resources out of the traditional sector, agriculture and the countryside, and into the modern sector, industry and cities. In 1979 Lewis received the Nobel Prize for his work on economic development.

Lewis and development economists building on his work were certainly right in identifying dual economies. South Africa was one of the clearest examples, split into a traditional sector that was backward and poor and a modern one that was vibrant and prosperous. Even today the dual economy Lewis identified is everywhere in South Africa. One of the most dramatic ways to see this is by driving across the border between the state of KwaZulu-Natal, formerly Natal, and the state of the Transkei. The border follows the Great Kei River. To the east of the river in Natal, along the coast, are wealthy beachfront properties on wide expanses of glorious sandy beaches. The interior is covered with lush green sugarcane plantations. The roads are beautiful; the whole area reeks of prosperity. Across the river, it is as if it were a different time and a different country. The area is largely devastated. The land is not green, but brown and heavily deforested. Instead of affluent modern houses with running water, toilets, and all the modern conveniences, people live in makeshift huts and cook on open fires. Life is certainly traditional, far from the modern existence to the east of the river. By now you will not be surprised that these differences are linked with major differences in economic institutions between the two sides of the river.

To the east, in Natal, we have private property rights, functioning legal systems, markets, commercial agriculture, and industry. To the west, the Transkei had communal property in land and all-powerful traditional chiefs until recently. Looked at through the lens of Lewis’s theory of dual economy, the contrast between the Transkei and Natal illustrates the problems of African development. In fact, we can go further, and note that, historically, all of Africa was like the Transkei, poor with premodern economic institutions, backward technology, and rule by chiefs. According to this perspective, then, economic development should simply be about ensuring that the Transkei eventually turns into Natal.

This perspective has much truth to it but misses the entire logic of how the dual economy came into existence and its relationship to the modern economy. The backwardness of the Transkei is not just a historic remnant of the natural backwardness of Africa. The dual economy between the Transkei and Natal is in fact quite recent, and is anything but natural. It was created by the South African white elites in order to produce a reservoir of cheap labor for their businesses and reduce competition from black Africans. The dual economy is another example of underdevelopment created, not of underdevelopment as it naturally emerged and persisted over centuries.

South Africa and Botswana, as we will see later, did avoid most of the adverse effects of the slave trade and the wars it wrought. South Africans’ first major interaction with Europeans came when the Dutch East India Company founded a base in Table Bay, now the harbor of Cape Town, in 1652. At this time the western part of South Africa was sparsely settled, mostly by hunter-gatherers called the Khoikhoi people. Farther east, in what is now the Ciskei and Transkei, there were densely populated African societies specializing in agriculture. They did not initially interact heavily with the new colony of the Dutch, nor did they become involved in slaving. The South African coast was far removed from slave markets, and the inhabitants of the Ciskei and Transkei, known as the Xhosa, were just far enough inland not to attract anyone’s attention. As a consequence, these societies did not feel the brunt of many of the adverse currents that hit West and Central Africa.

The isolation of these places changed in the nineteenth century. For the Europeans there was something very attractive about the climate and the disease environment of South Africa. Unlike West Africa, for example, South Africa had a temperate climate that was free of the tropical diseases such as malaria and yellow fever that had turned much of Africa into the “white man’s graveyard” and prevented Europeans from settling or even setting up permanent outposts. South Africa was a much better prospect for European settlement. European expansion into the interior began soon after the British took over Cape Town from the Dutch during the Napoleonic Wars. This precipitated a long series of Xhosa wars as the settlement frontier expanded further inland. The penetration into the South African interior was intensified in 1835, when the remaining Europeans of Dutch descent, who would become known as Afrikaners or Boers, started their famous mass migration known as the Great Trek away from the British control of the coast and the Cape Town area. The Afrikaners subsequently founded two independent states in the interior of Africa, the Orange Free State and the Transvaal.

The next stage in the development of South Africa came with the discovery of vast diamond reserves in Kimberly in 1867 and of rich gold mines in Johannesburg in 1886. This huge mineral wealth in the interior immediately convinced the British to extend their control over all of South Africa. The resistance of the Orange Free State and the Transvaal led to the famous Boer Wars in 1880–1881 and 1899–1902. After initial unexpected defeat, the British managed to merge the Afrikaner states with the Cape Province and Natal, to found the Union of South Africa in 1910. Beyond the fighting between Afrikaners and the British, the development of the mining economy and the expansion of European settlement had other implications for the development of the area. Most notably, they generated demand for food and other agricultural products and created new economic opportunities for native Africans both in agriculture and trade.

The Xhosa, in the Ciskei and Transkei, reacted quickly to these economic opportunities, as the historian Colin Bundy documented. As early as 1832, even before the mining boom, a Moravian missionary in the Transkei observed the new economic dynamism in these areas and noted the demand from the Africans for the new consumer goods that the spread of Europeans had begun to reveal to them. He wrote, “To obtain these objects, they look … to get money by the labour of their hands, and purchase clothes, spades, ploughs, wagons and other useful articles.”

The civil commissioner John Hemming’s description of his visit to Fingoland in the Ciskei in 1876 is equally revealing. He wrote that he was

struck with the very great advancement made by the Fingoes in a few years … Wherever I went I found substantial huts and brick or stone tenements. In many cases, substantial brick houses had been erected … and fruit trees had been planted; wherever a stream of water could be made available it had been led out and the soil cultivated as far as it could be irrigated; the slopes of the hills and even the summits of the mountains were cultivated wherever a plough could be introduced. The extent of the land turned over surprised me; I have not seen such a large area of cultivated land for years.

As in other parts of sub-Saharan Africa, the use of the plow was new in agriculture, but when given the opportunity, African farmers seemed to have been quite ready to adopt the technology. They were also prepared to invest in wagons and irrigation works.

As the agricultural economy developed, the rigid tribal institutions started to give way. There is a great deal of evidence that changes in property rights to land took place. In 1879 the magistrate in Umzimkulu of Griqualand East, in the Transkei, noted “the growing desire of the part of natives to become proprietors of land—they have purchased 38,000 acres.” Three years later he recorded that around eight thousand African farmers in the district had bought and started to work on ninety thousand acres of land.

Africa was certainly not on the verge of an Industrial Revolution, but real change was under way. Private property in land had weakened the chiefs and enabled new men to buy land and make their wealth, something that was unthinkable just decades earlier. This also illustrates how quickly the weakening of extractive institutions and absolutist control systems can lead to newfound economic dynamism. One of the success stories was Stephen Sonjica in the Ciskei, a self-made farmer from a poor background. In an address in 1911, Sonjica noted how when he first expressed to his father his desire to buy land, his father had responded: “Buy land? How can you want to buy land? Don’t you know that all land is God’s, and he gave it to the chiefs only?” Sonjica’s father’s reaction was understandable. But Sonjica was not deterred. He got a job in King William’s Town and noted:

I cunningly opened a private bank account into which I diverted a portion of my savings … This went only until I had saved eighty pounds … [I bought] a span of oxen with yokes, gear, plough and the rest of agricultural paraphernalia … I now purchased a small farm … I cannot too strongly recommend [farming] as a profession to my fellow man … They should however adopt modern methods of profit making.

An extraordinary piece of evidence supporting the economic dynamism and prosperity of African farmers in this period is revealed in a letter sent in 1869 by a Methodist missionary, W. J. Davis. Writing to England, he recorded with pleasure that he had collected forty-six pounds in cash “for the Lancashire Cotton Relief Fund.” In this period the prosperous African farmers were donating money for relief of the poor English textile workers!

This new economic dynamism, not surprisingly, did not please the traditional chiefs, who, in a pattern that is by now familiar to us, saw this as eroding their wealth and power. In 1879 Matthew Blyth, the chief magistrate of the Transkei, observed that there was opposition to surveying the land so that it could be divided into private property. He recorded that “some of the chiefs … objected, but most of the people were pleased … the chiefs see that the granting of individual titles will destroy their influence among the headmen.”

Chiefs also resisted improvements made on the lands, such as the digging of irrigation ditches or the building of fences. They recognized that these improvements were just a prelude to individual property rights to the land, the beginning of the end for them. European observers even noted that chiefs and other traditional authorities, such as witch doctors, attempted to prohibit all “European ways,” which included new crops, tools such as plows, and items of trade. But the integration of the Ciskei and the Transkei into the British colonial state weakened the power of the traditional chiefs and authorities, and their resistance would not be enough to stop the new economic dynamism in South Africa. In Fingoland in 1884, a European observer noted that the people had

transferred their allegiance to us. Their chiefs have been changed to a sort of titled landowner … without political power. No longer afraid of the jealousy of the chief or of the deadly weapon … the witchdoctor, which strikes down the wealthy cattle owner, the able counsellor, the introduction of novel customs, the skilful agriculturalist, reducing them all to the uniform level of mediocrity—no longer apprehensive of this, the Fingo clansman … is a progressive man. Still remaining a peasant farmer … he owns wagons and ploughs; he opens water furroughs for irrigation; he is the owner of a flock of sheep.

Even a modicum of inclusive institutions and the erosion of the powers of the chiefs and their restrictions were sufficient to start a vigorous African economic boom. Alas, it would be short lived. Between 1890 and 1913 it would come to an abrupt end and go into reverse. During this period two forces worked to destroy the rural prosperity and dynamism that Africans had created in the previous fifty years. The first was antagonism by European farmers who were competing with Africans. Successful African farmers drove down the price of crops that Europeans also produced. The response of Europeans was to drive the Africans out of business. The second force was even more sinister. The Europeans wanted a cheap labor force to employ in the burgeoning mining economy, and they could ensure this cheap supply only by impoverishing the Africans. This they went about methodically over the next several decades.

The 1897 testimony of George Albu, the chairman of the Association of Mines, given to a Commission of Inquiry pithily describes the logic of impoverishing Africans so as to obtain cheap labor. He explained how he proposed to cheapen labor by “simply telling the boys that their wages are reduced.” His testimony goes as follows:

Commission: Suppose the kaffirs [black Africans] retire back to their kraal [cattle pen]? Would you be in favor of asking the Government to enforce labour?
Albu: Certainly … I would make it compulsory … Why should a nigger be allowed to do nothing? I think a kaffir should be compelled to work in order to earn his living.
Commission: If a man can live without work, how can you force him to work?
Albu: Tax him, then …
Commission: Then you would not allow the kaffir to hold land in the country, but he must work for the white man to enrich him?
Albu: He must do his part of the work of helping his neighbours.

Both of the goals of removing competition with white farmers and developing a large low-wage labor force were simultaneously accomplished by the Natives Land Act of 1913. The act, anticipating Lewis’s notion of dual economy, divided South Africa into two parts, a modern prosperous part and a traditional poor part. Except that the prosperity and poverty were actually being created by the act itself. It stated that 87 percent of the land was to be given to the Europeans, who represented about 20 percent of the population. The remaining 13 percent was to go to the Africans. The Land Act had many predecessors, of course, because gradually Europeans had been confining Africans onto smaller and smaller reserves. But it was the act of 1913 that definitively institutionalized the situation and set the stage for the formation of the South African Apartheid regime, with the white minority having both the political and economic rights and the black majority being excluded from both. The act specified that several land reserves, including the Transkei and the Ciskei, were to become the African “Homelands.” Later these would become known as the Bantustans, another part of the rhetoric of the Apartheid regime in South Africa, since it claimed that the African peoples of Southern Africa were not natives of the area but were descended from the Bantu people who had migrated out of Eastern Nigeria about a thousand years before. They thus had no more—and of course, in practice, less—entitlement to the land than the European settlers.

Map 16 shows the derisory amount of land allocated to Africans by the 1913 Land Act and its successor in 1936. It also records information from 1970 on the extent of a similar land allocation that took place during the construction of another dual economy in Zimbabwe, which we discuss in chapter 13.


The 1913 legislation also included provisions intended to stop black sharecroppers and squatters from farming on white-owned land in any capacity other than as labor tenants. As the secretary for native affairs explained, “The effect of the act was to put a stop, for the future, to all transactions involving anything in the nature of partnership between Europeans and natives in respect of land or the fruits of land. All new contracts with natives must be contracts of service. Provided there is a bona fide contract of this nature there is nothing to prevent an employer from paying a native in kind, or by the privilege of cultivating a defined piece of ground … But the native cannot pay the master anything for his right to occupy the land.”

To the development economists who visited South Africa in the 1950s and ’60s, when the academic discipline was taking shape and the ideas of Arthur Lewis were spreading, the contrast between these Homelands and the prosperous modern white European economy seemed to be exactly what the dual economy theory was about. The European part of the economy was urban and educated, and used modern technology. The Homelands were poor, rural, and backward; labor there was very unproductive; people, uneducated. It seemed to be the essence of timeless, backward Africa.

Except that the dual economy was not natural or inevitable. It had been created by European colonialism. Yes, the Homelands were poor and technologically backward, and the people were uneducated. But all this was an outcome of government policy, which had forcibly stamped out African economic growth and created the reservoir of cheap, uneducated African labor to be employed in European-controlled mines and lands. After 1913 vast numbers of Africans were evicted from their lands, which were taken over by whites, and crowded into the Homelands, which were too small for them to earn an independent living from. As intended, therefore, they would be forced to look for a living in the white economy, supplying their labor cheaply. As their economic incentives collapsed, the advances that had taken place in the preceding fifty years were all reversed. People gave up their plows and reverted to farming with hoes—that is, if they farmed at all. More often they were just available as cheap labor, which the Homelands had been structured to ensure.

It was not only the economic incentives that were destroyed. The political changes that had started to take place also went into reverse. The power of chiefs and traditional rulers, which had previously been in decline, was strengthened, because part of the project of creating a cheap labor force was to remove private property in land. So the chiefs’ control over land was reaffirmed. These measures reached their apogee in 1951, when the government passed the Bantu Authorities Act. As early as 1940, G. Findlay put his finger right on the issue:

Tribal tenure is a guarantee that the land will never properly be worked and will never really belong to the natives. Cheap labour must have a cheap breeding place, and so it is furnished to the Africans at their own expense.

The dispossession of the African farmers led to their mass impoverishment. It created not only the institutional foundations of a backward economy, but the poor people to stock it.

The available evidence demonstrates the reversal in living standards in the Homelands after the Natives Land Act of 1913. The Transkei and the Ciskei went into a prolonged economic decline. The employment records from the gold mining companies collected by the historian Francis Wilson show that this decline was widespread in the South African economy as a whole. Following the Natives Land Act and other legislation, miners’ wages fell by 30 percent between 1911 and 1921. In 1961, despite relatively steady growth in the South African economy, these wages were still 12 percent lower than they had been in 1911. No wonder that over this period South Africa became the most unequal country in the world.

But even in these circumstances, couldn’t black Africans have made their way in the European, modern economy, started a business, or have become educated and begun a career? The government made sure these things could not happen. No African was allowed to own property or start a business in the European part of the economy—the 87 percent of the land. The Apartheid regime also realized that educated Africans competed with whites rather than supplying cheap labor to the mines and to white-owned agriculture. As early as 1904 a system of job reservation for Europeans was introduced in the mining economy. No African was allowed to be an amalgamator, an assayer, a banksman, a blacksmith, a boiler maker, a brass finisher, a brassmolder, a bricklayer … and the list went on and on, all the way to woodworking machinist. At a stroke, Africans were banned from occupying any skilled job in the mining sector. This was the first incarnation of the famous “colour bar,” one of the several racist inventions of South Africa’s regime. The colour bar was extended to the entire economy in 1926, and lasted until the 1980s. It is not surprising that black Africans were uneducated; the South African state not only removed the possibility of Africans benefiting economically from an education but also refused to invest in black schools and discouraged black education. This policy reached its peak in the 1950s, when, under the leadership of Hendrik Verwoerd, one of the architects of the Apartheid regime that would last until 1994, the government passed the Bantu Education Act. The philosophy behind this act was bluntly spelled out by Verwoerd himself in a speech in 1954:

The Bantu must be guided to serve his own community in all respects. There is no place for him in the European community above the level of certain forms of labour … For that reason it is to no avail to him to receive a training which has as its aim absorption in the European community while he cannot and will not be absorbed there.

Naturally, the type of dual economy articulated in Verwoerd’s speech is rather different from Lewis’s dual economy theory. In South Africa the dual economy was not an inevitable outcome of the process of development. It was created by the state. In South Africa there was to be no seamless movement of poor people from the backward to the modern sector as the economy developed. On the contrary, the success of the modern sector relied on the existence of the backward sector, which enabled white employers to make huge profits by paying very low wages to black unskilled workers. In South Africa there would not be a process of the unskilled workers from the traditional sector gradually becoming educated and skilled, as Lewis’s approach envisaged. In fact, the black workers were purposefully kept unskilled and were barred from high-skill occupations so that skilled white workers would not face competition and could enjoy high wages. In South Africa black Africans were indeed “trapped” in the traditional economy, in the Homelands. But this was not the problem of development that growth would make good. The Homelands were what enabled the development of the white economy.

It should also be no surprise that the type of economic development that white South Africa was achieving was ultimately limited, being based on extractive institutions the whites had built to exploit the blacks. South African whites had property rights, they invested in education, and they were able to extract gold and diamonds and sell them profitably in the world market. But over 80 percent of the South African population was marginalized and excluded from the great majority of desirable economic activities. Blacks could not use their talents; they could not become skilled workers, businessmen, entrepreneurs, engineers, or scientists. Economic institutions were extractive; whites became rich by extracting from blacks. Indeed, white South Africans shared the living standards of people of Western European countries, while black South Africans were scarcely richer than those in the rest of sub-Saharan Africa. This economic growth without creative destruction, from which only the whites benefited, continued as long as revenues from gold and diamonds increased. By the 1970s, however, the economy had stopped growing.

And it will again be no surprise that this set of extractive economic institutions was built on foundations laid by a set of highly extractive political institutions. Before its overthrow in 1994, the South African political system vested all power in whites, who were the only ones allowed to vote and run for office. Whites dominated the police force, the military, and all political institutions. These institutions were structured under the military domination of white settlers. At the time of the foundation of the Union of South Africa in 1910, the Afrikaner polities of the Orange Free State and the Transvaal had explicit racial franchises, barring blacks completely from political participation. Natal and the Cape Colony allowed blacks to vote if they had sufficient property, which typically they did not. The status quo of Natal and the Cape Colony was kept in 1910, but by the 1930s, blacks had been explicitly disenfranchised everywhere in South Africa.

The dual economy of South Africa did come to an end in 1994. But not because of the reasons that Sir Arthur Lewis theorized about. It was not the natural course of economic development that ended the color bar and the Homelands. Black South Africans protested and rose up against the regime that did not recognize their basic rights and did not share the gains of economic growth with them. After the Soweto uprising of 1976, the protests became more organized and stronger, ultimately bringing down the Apartheid state. It was the empowerment of blacks who managed to organize and rise up that ultimately ended South Africa’s dual economy in the same way that South African whites’ political force had created it in the first place.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Rothbard sobre Marx

Tempos atrás, o IMB publicou um texto intitulado "A verdadeira doutrina defendida por Karl Marx", no qual Murray Rothbard critica alguns pontos das ideias comunistas. O assunto veio à tona em outra discussão, então decidi escrever rapidamente sobre o fato.

O texto chamou atenção principalmente por conta das citações de Marx utilizadas por Rothbard, que rapidamente foram colocadas em forma de imagem no Facebook e começaram a ser divulgadas. São citações de fato revoltantes e Rothbard as usa para chocar o leitor, como se Marx de fato defendesse aquelas ideias abjetas. Porém, como nos instrui o xkcd, nunca confie em informações conseguidas em formato JPG.

As citações usadas falam de um tipo de comunismo chamado "comunismo grosseiro", descrito nos termos mais mórbidos por Marx. Todos os grifos são do original:

Com efeito, a avaliação de Marx sobre o comunismo grosseiro, a etapa da ditadura do proletariado, não era muito romântica e era ainda mais pesada do que aquela feita por Stein:

Esse movimento que tende a opor a propriedade coletivizada à propriedade privada se exprime de uma forma completamente animal quando contrapõe o casamento (que é, evidentemente, uma forma de propriedade privada exclusiva) à coletivização das mulheres: quando a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da coletivização das mulheres contém o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Assim como a mulher deve abandonar o casamento em prol da prostituição geral, o mesmo deve acontecer com o mundo da riqueza, o qual deve abandonar sua relação de casamento exclusivo com a propriedade privada para abraçar uma nova relação de prostituição geral com a coletividade.

Não bastasse isso, Marx reconhece que

O comunismo grosseiro não é a transcendência da propriedade privada, mas apenas a sua universalização; não é a derrota da ganância, mas apenas sua generalização; não é a abolição do trabalho, mas sim sua ampliação para todos os homens. Destarte, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma na qual toda a abjeção da propriedade privada se torna explícita. [...]

Os pensamentos de toda propriedade privada individual são, pelo menos, dirigidos contra qualquer propriedade privada mais abastada, sob a forma de inveja e desejo de reduzir todos a um mesmo nível; destarte, essa inveja e nivelamento por baixo constituem, de fato, a essência da competição. O comunismo vulgar é apenas o paroxismo de tal inveja e nivelamento por baixo, baseado em um mínimo preconcebido.

E completa,

Eis a razão por que todos os sentimentos físicos e morais foram substituídos pela simples alienação trazida pela sensação da posse. A essência humana deveria mergulhar em uma pobreza absoluta para poder fazer surgir dela a sua riqueza interior!

Intenso, não? Realmente, considerando as citações utilizadas, Marx deveria ser um crápula que defendia um borderline estupro coletivo de todas as mulheres.

Mas quando nós vamos para a fonte utilizada por Rothbard, Marx descreve o "comunismo grosseiro" da forma citada justamente para criticá-lo!

Ele contrapõe os princípios do "comunismo grosseiro" à sua própria versão do comunismo ("científico"). Segundo Marx, o comunismo grosseiro leva inexoravelmente a resultados tão repulsivos porque não se baseia na superação da propriedade privada, mas apenas transforma a propriedade privada em propriedade comum.

Você não precisa acreditar em mim. Você pode ir direto à fonte utilizada por Rothbard (novamente, todos os grifos do original):

[T]ive a sorte de encontrar um manuscrito de Marx onde ele critica esse comunismo "grosseiro" e "cru" nas suas relações não somente com a propriedade privada em geral, mas também com o casamento. Excuso-me de aprofundar numa longa citação:

"Considerando a propriedade privada, na sua geração, o comunismo é na sua forma primitiva a generalização e a abolição da propriedade privada. Em relação a essa abolição, há dois aspectos: de um lado, ele sobrestima o papel e a dominação da propriedade material de um ponto de vista tal que ele quer destruir tudo o que não pode trazer a fortuna e a propriedade privada de todo o mundo; ele quer suprimir pela violência as capacidades particulares, etc. A posse física imediata surge aos seus olhos como o principio único da vida: a forma de atividade do trabalhador não é abolido desse estado, mas estende-se a todos os homens.

A instituição da propriedade privada continua sendo a relação da coletividade no mundo das coisas; e esse movimento que tende opor à propriedade privada a propriedade privada tornada comum, se exprime de uma forma completamente animal, quando opõe ao casamento (que é, evidentemente uma forma de propriedade privada exclusiva) a comunidade das mulheres: quando, por conseguinte, a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da comunidade das mulheres revela o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Do mesmo modo que a mulher abandona o casamento pelo reino da prostituição geral, assim também o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetivada do homem, passa do estado de casamento exclusivo com a propriedade privada à prostituição geral com a coletividade. A prostituição não é senão uma expressão particular da prostituição geral do operário, e como a prostituição se estende não somente ao prostituido, mas também ao prostituinte (cuja abjeção torna-se ainda maior), o capitalista também está incluído nessa categoria, etc. Esse comunismo que nega em toda parte a personalidade humana, não é senão uma expressão consequente da propriedade privada da qual ela própria é essa negação.

A mulher considerada como presa e como objeto que serve para satisfazer a concupiscência coletiva exprime a degradação infinita do homem quando só existe para si, pois o mistério entre a relação do homem com o seu semelhante encontra a sua expressão não equivoca, decisiva, franca, nas relações do homem e da mulher e na maneira de encetar essas relações genéricas naturais e diretas.

A relação direta, natural, necessária dos seres humanos é a relação entre o homem e a mulher. Nessa relação genérica natural, a relação entre o ser humano e a natureza representa diretamente a relação do homem com o homem, do mesmo modo que a relação entre os homens representa diretamente a relação do homem com a natureza, atributo natural do homem. Por conseguinte, essa relação manifesta de uma maneira sensível, exteriorizada, a maneira pela qual a essência humana tornou-se natureza para o homem e como a natureza tornou-se a essência humana do homem. Eis porque, baseando-se sobre essa relação, pode-se julgar o grau geral do desenvolvimento do homem. O caráter desta relação nos mostra até que medida o homem tornou-se um ser genérico, até que medida ele tornou-se homem, e até que ponto ele o o compreende. A relação entre o homem e a mulher é a mais natural entre seres humanos. Por conseguinte, vê-se até que ponto o comportamento natural do homem tornou-se humano, e até que ponto a essência humana tornou-se para ele a essência natural, até que ponto sua natureza humana tornou-se natureza para ele. Essa relação lembra também a que ponto a necessidade do homem tornou-se uma necessidade humana, isto é, até que ponto um outro ser humano tornou-se para ele uma necessidade, como homem. Lembra que na sua existência individual é ao mesmo tempo um ser social. Assim, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma onde se manifesta a abjeção da propriedade privada que quer afirmar-se ela própria como maneira de ser social positivo".

Sim, Karl Marx era um escritor bastante hermético, em que pese o fato de que o texto acima não foi publicado. Mas mesmo com todo o raciocínio convoluto, me parece bastante claro que Marx estava se opondo ao chamado comunismo grosseiro. Para ele, o comunismo grosseiro, ao contrário do que afirma Rothbard, não é a "primeira fase" da revolução, mas se trata de um tipo primitivo de comunismo inferior ao que ele defende. E por que seria inferior? Porque, segundo Marx, como afirmado na citação acima, levaria não à superação da propriedade privada, mas à sua vulgarização. Essa vulgarização não levaria à "superação" do trabalho, mas ao trabalho para todos, não ao fim do casamento como forma de propriedade, mas à vulgarização das relações de casamento (que teria como efeito a prostituição geral).

Marx, também, ao contrário do que afirma Rothbard, parece bastante sensível ao fato de que o comunismo que ele descreve necessitaria de violência e da supressão da personalidade individual, como afirma no primeiro parágrafo de sua citação. Novamente, Rothbard retirou o exato oposto do que Marx queria dizer do texto.

O que Rothbard afirma sobre Marx aqui, portanto, é completamente falso.

Isso significa que não devemos criticar Marx?

Não, pelo contrário. Podemos criticá-lo por vários ângulos: podemos dizer que sua distinção entre o comunismo grosseiro e o comunismo científico é inválida, que sua versão do comunismo levaria aos mesmos efeitos indesejáveis que ele descreveu, que a tal superação da propriedade privada descrita é uma quimera.

Mas nós não podemos dizer que Marx defendeu qualquer uma das ideias que ele descreveu, da mesma forma que Rothbard não defendeu o marxismo por citar Marx.

No ímpeto para criticar qualquer posição comunista e desacreditar os maiores pensadores socialistas, muita gente acaba embarcando no oba-oba do Facebook e demais redes sociais. É uma infelicidade que o argumento acabe enfraquecido por críticas que não procedem, até porque o que não faltam são furos no marxismo (e no próprio caráter de Karl Marx).

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Gregorio velho do estado que já está aí mesmo



Gregorio Duvivier fez uma coluna sacaneando os liberais. Até esclareceu o que quis dizer em alguns posts no Facebook. Pedro Menezes e Rodrigo da Silva responderam melhor do que eu conseguiria. O assunto se esgotou. Então eu sacaneei Gregorio Duvivier.

***

Não sou marxista, stalinista, petista ou lulista, até porque sou humorista e não acredito nessa coisa de ideologia. Dizem isso só porque eu defendo aquele estado maroto, presente, fomentando e intervindo. É claro que eu defendo: que seria da classe artística sem um editalzinho? Se for depender do privado, a gente fica sem cinema da retomada, sem teatro alterna, sem dança contemporânea, esse monte de coisa que a classe média adora mas não sustenta. Tudo que é privado é uma droga: Calypso não precisa de subsídio, né?

Pensa bem, o mundo não seria muito melhor se todos vivessem de edital cultural e concurso público? Repartição pública é meio deprimente, mas sem elas o que seria da juventude desse nosso país? Tenho certeza de que o mercado de cursinhos ajuda muito a nossa economia.

Todo mundo sabe que os melhores hospitais são privados, mas eu, que não sou direita-nem-esquerda-mas-comediante, acho que o problema é que o estado não é atuante o bastante. Quarenta porcentinho da produção nacional abocanhada pelo governo não é o suficiente. Acho que esse governo está muito acanhado na arrecadação, está na hora de um esforço maciço de achaque do contra-cheque do trabalhador, senão o SUS não aguenta.

Educação está no mesmo bonde. A particular pode ser até melhor, mas a culpa é da falta de grana, de professores, de material, de salas, de almoço, mas do governo não pode ser. Acredito que o governo faria bem se não fizesse mal. Diria Falcão, pior seria se pior fosse.

Aí vocês me perguntam: e aqueles que não têm acesso à saúde nem à educação pública? Ninguém mandou nascer no Brasil, amigo. Se vira aí. O mundo é meritocrático. Se quiser entrar em universidade pública top que nem a USP, estuda para a Fuvest. Mamar na vaca você não quer, hein? Aí você vai me dizer que só entra numa universidade pública uma pequena minoria. Ora, eu não ralei minha bunda todo dia no cursinho para colocar meus filhos na mesma faculdade que o meu motoboy.

Quando o motoboy cair da moto e morrer na fila do SUS, tudo muda. Aí a família dele pensa: "Puxa, precisamos melhorar a saúde pública". Então os parentes votam em alguém melhor na próxima eleição. Eles vão se esforçar mais para mudar os rumos de Pindorama. Chega de inércia política. Se o povão aprender a escrever e fazer conta e ainda tiver bom atendimento médico, acaba acomodado. Aí não dá. Principalmente porque tem que sobrar grana para a música instrumental depois de financiar a saúde.

Bom mesmo era entregar o país nas mãos de um puta político. Tipo a Dilma, o Lula, o FHC, o Collor, o Sarney. O JK foi um herói, segundo a mini-série. Jango, um injustiçado, e o Jânio tinha a vassourinha que varria a corrupção. Se o político passado não resolveu o problema, a gente tenta outro até dar certo. A gente pode continuar tentando o mesmo método que dá errado há um século, uma hora tem que encaixar. É que nem trocar de técnico no futebol, vai que resolve. É disso que o Brasil precisa: mais estado e impostos se necessário, para financiar nossa saúde, educação, talvez uns editais para os meus colegas, uns financiamentos subsidiados para o Eike, uns concursos para a classe média que lota os espetáculos do Z.É.: Zenas Emprovisadas.

Não preciso nem ligar para político nenhum. Tudo que eu quero é o que já existe mesmo.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Se impostos não são roubo, são piores



Texto feito em resposta ao de Diogo Coelho para o Mercado Popular.

Identificar impostos como roubo parece trivial - afinal, o que é o roubo senão a subtração forçada dos bens de uma pessoa? Aparentemente, os impostos compartilham dessa definição. Afinal, é impossível pensar em impostos sem pensar que é obrigatório, forçoso pagá-los.

Mas, embora "imposto" e "roubo" signifiquem "subtração forçada dos bens de alguém", normalmente a palavra "roubo” é usada para falar desse ato quando este é executado por entes privados. Já a palavra "imposto" é usada em conexão com o estado.

Daí vem uma grande sacada de vários autores liberais: não existe diferença moral significativa entre os indivíduos privados e os indivíduos investidos do poder que chamamos de "estado"! Se não existe diferença relevante, então imposto é o mesmo que roubo, claro como o azul do céu, cristalino como a água. Certo?

Errado!, afirma Diogo Coelho em seu opúsculo apropriadamente intitulado "Imposto não é roubo!".

Diogo não está disposto a conceder esse ponto aos liberais e é fácil entender por quê. Se nós considerarmos que todo imposto é roubo, é difícil defender sua cobrança continuada e isso poria em cheque a existência do estado. Diogo, assim, pretende dizer que, ao contrário do que muitos liberais afirmam, e muito contraintuitivamente, um pouco de imposto não é roubo, mas muito imposto, sim.

Para isso, ele usa dois argumentos por meio de contrastes ilustrativos:

1) Quando uma mãe ordena que sua filha pare de brincar e vá jantar, ela pode usar meios moderados de coerção, que são moralmente distintos da utilização de meios extremamente violentos, como uma arma de fogo.

2) Da mesma forma, um sinal de trânsito é menos coercitivo que um policial que ordene que o motorista pare o carro com uma arma apontada para sua cabeça.

De fato, nos dois casos, há meios mais e menos coercitivos de se alcançar o mesmo resultado. Mas sempre há coerção. Diogo não disputa esse ponto; na verdade, ele o admite prontamente. Se a coerção continua existindo, não importam os meios de aplicação da sanção. Então por que Diogo discorda que impostos sejam roubo? Os meios mais brandos de coleta fazem a coerção dos impostos deixar de existir?

É óbvio que não. Um assaltante pode me parar no meio da rua, atirar na minha perna e chutar meu estômago antes de levar a minha carteira; ele também pode roubar minha carteira sorrateiramente, sem que eu perceba. Nos dois casos, até onde me consta, houve roubo (e violência física no primeiro caso).

Da mesma forma, o estado pode exigir que você pague uma quantia anualmente e pode até já ter declarado qual a fatia da sua renda que será subtraída, porém, como ele consiste em um conjunto de indivíduos moralmente idênticos àqueles que estão fora do estado, isso continua sendo roubo, ainda que siga procedimentos previsíveis e aplicáveis a todos.

O texto de Diogo Coelho é confuso porque ele utiliza diversos argumentos para afirmar que a cobrança de impostos é procedimentalmente diferente de roubos privados, mas ele nunca coloca em xeque o aspecto essencial: houve coerção. Se houve coerção, houve roubo. Plain and simple.

Os argumentos de Diogo, no máximo, pretendem dizer que o roubo executado pelo estado é mais brando, porque é previsível, se aplica a todos, porque emana de uma autoridade "legítima".

Só que é justamente o contrário. O roubo perpetrado pelo estado é o mais frio e injustificável de todos. Lysander Spooner é cirúrgico ao explicar a diferença entre ladrões comuns e o estado:

"O salteador assume sobre si toda a responsabilidade, risco e crime de seu ato. Não finge ter qualquer reclamação legítima sobre seu dinheiro ou que pretende utilizá-lo para seu benefício. Ele não finge ser nada além de um ladrão. Ele não tem a audácia de se afirmar como um 'protetor' e que toma o dinheiro dos homens contra suas vontades apenas para poder proteger os cansados viajantes das estradas, que se sentem perfeitamente capazes de proteger a si próprios ou que não apreciam esse peculiar esquema de proteção. Trata-se de um homem sensato demais para fazer afirmações como essas. Ademais, ao tomar seu dinheiro, o salteador vai embora, como você quer que ele o faça. Ele não insiste em segui-lo na estrada, contra sua vontade, presumindo-se seu 'soberano' legítimo por conta da 'proteção' que provê. Ele não continua a 'protegê-lo' ordenando que você se curve e o sirva; requerendo que você faça isso e proibindo que faça aquilo; tomando mais dinheiro com a frequência que desejar, de acordo com seu interesse ou prazer; e rotulando-o como rebelde, traidor e inimigo da pátria, atirando em você sem piedade, se tiver sua autoridade questionada ou suas exigências resistidas. Trata-se de um cavalheiro digno demais para ser culpado de tais imposturas, insultos e vilanias. Em suma, ao roubá-lo, ele não tenta torná-lo seu subalterno ou escravo."1

Portanto, ao contrário do que afirma Diogo, o roubo praticado pelo estado não é mais suave. É o mais cruel e esmagador de todos: não há escapatória.

É como no episódio de How I Met Your Mother em que Barney se desespera ao perceber que a contagem regressiva para ele levar um tapa (porque perdeu uma aposta com o amigo) está chegando ao fim. O fato de que ele podia prever a violência só a tornou ainda mais dolorosa, porque era inescapável.

O roubo, como executado pelo estado, possui uma aura de legitimidade e é, por sua natureza, inquestionável. Não importa o que façamos, o estado estará sempre presente, afirmando sua autoridade, exigindo tributos e legislando nosso respeito.

Diogo afirma que os governantes, porém, não devem utilizar sua autoridade de modo arbitrário para que não percam sua legitimidade. Mas é justamente o contrário: sua legitimidade é afirmada somente pelo poder arbitrário. Para exercer seu poder, o estado deve se mostrar capaz de fazê-lo. E o roubo (na forma de impostos) é um dos meios pelos quais ele faz isso.

Para mim é um pouco desconfortável ver liberais como Diogo tentando estabelecer parâmetros pelos quais a coerção é justificável, porque mesmo que eles cheguem num cenário razoável, eles acabam tentando extrapolar suas conclusões ideais para o mundo imperfeito em que vivemos.

Diogo Coelho, por exemplo, vincula a legitimidade da autoridade do estado aos procedimentos da democracia constitucional com separação de poderes. Então será que vivemos num mundo diogocoelhiano ideal? Será que ele aprova os impostos escorchantes que os pobres são obrigados a pagar ou será que eles minam a autoridade estatal? 32% de impostos sobre o arroz e o feijão é muito ou está no nível adequado de legitimidade? Os 40% cobrados de trabalhadores celetistas é muito ou não é roubo?

Claro que é possível considerarmos que bandidos privados são mais violentos, mas o Diogo Coelho vai me desculpar se eu não considerar esses procedimentos legítimos e previsíveis do estado como grande alento para a extorsão a que ele me sujeita. Conheço poucos bandidos privados que subtraem 40% do meu contracheque e retornam para o mesmo saque no mês seguinte.

Porque impostos podem até não ser roubo. Mas, se não forem, são piores.


1 Lysander Spooner, No Treason VI: The Constitution of No Authority.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

A ficção e a realidade do Mensalão

Comentário para o LIBER.

A imagem de José Genoíno com uma toalha presa ao pescoço e o punho em riste é emblemática por demonstrar o tamanho da desconexão entre a realidade e a ideologia dos petistas. Genoíno se considera um herói e conta com a concordância da mídia chapa branca brasileira, que fala do escândalo do Mensalão entre aspas.

Para os petistas, tudo o que fizeram foi necessário para o crescimento do país e para alcançar o ideal socialista (dois objetivos que se misturam, para eles), enquanto coisas como as estruturas formais de limitação do poder são apenas aborrecimentos que devem ser superados. Mas Genoíno não é um herói e tratá-lo como tal, como "preso político", é uma afronta a qualquer resquício de estabilidade institucional que existe no Brasil.

Os petistas não se importam com a destruição dos mecanismos de limitação de poder constitucionais porque o poder está nas mãos deles no momento. Mesmo assim, com uma boa dose de dissonância cognitiva (e racismo não tão velado), conseguem condenar Joaquim Barbosa como um "traidor", como "capitão-do-mato", por ter condenado os mensaleiros - e assim os petistas continuam se considerando vítimas do sistema.

Segundo a narrativa petista, os mensaleiros não fizeram nada além de lutar por um Brasil melhor e estão sendo presos por um regime proto-ditatorial. A realidade, porém, é que eles mesmos tentaram empurrar o estado brasileiro no caminho da ditadura e foram presos por isso. Aí está o abismo entre a realidade e a ficção petista.

Talvez por alguma lógica distorcida Genoíno e Dirceu realmente sejam presos políticos e vítimas do sistema, já que o sistema, ao menos até agora, condena proto-ditadores e oprime quem tenta destruir as poucas bases liberais da política do país.

Evidentemente nós não podemos nos enganar: a condenação dos responsáveis pelo Mensalão não significa tanto no cômputo geral. Mas é uma pequena vitória simbólica. Um simbolismo que os mensaleiros querem roubar (também!), mas que os libertários não devem permitir.

A prisão dos mensaleiros

Nota para o LIBER sobre a prisão dos mensaleiros.

O assunto que movimentou as notícias e as redes sociais na semana passada foi a prisão de três dos mensaleiros petistas - José Genoíno, José Dirceu e Delúbio Soares. Outro, Henrique Pizzolato, teria fugido para a Itália.

O escândalo que acabou conhecido como Mensalão se tratou não apenas de um esquema de desvio de verbas de estatais, mas, de forma mais importante, era um meio de driblar os mecanismos de controle mínimos que possui a democracia representativa.

Os libertários sabem que o sistema de governo atual não é o ideal - se é que algum governo pode chegar ao ideal. Porém, os petistas, com o Mensalão, pretendiam torná-lo ainda mais opressivo e ditatorial: comprando a lealdade de deputados, aparelhando o poder estatal.

Felizmente, o judiciário brasileiro ainda foi capaz de demonstrar alguma independência e limitar a festa petista dentro do aparato estatal.

Porém, nós devemos ressaltar que a prisão dos mensaleiros não deverá resolver dois dos problemas principais causados: as leis aprovadas durante a vigência do Mensalão não possuem qualquer legitimidade e o dinheiro desviado não será devolvido.

Infelizmente, nosso sistema legal não lidará com esses dois pontos. E o fato de que toda a legislação que passou pelo Congresso na época do Mensalão permanece intocada só mostra que, mesmo presos, os mensaleiros continuam influentes na vida política nacional.

Por outro lado, a queda de Genoíno, Dirceu e Delúbio é uma pequena vitória que os libertários também comemoram.

sábado, 14 de setembro de 2013

Médicos cubanos: o que fazer

Panfleto para o LIBER.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A questão dos médicos cubanos

Nota oficial do LIBER.

O Brasil recentemente descobriu que Cuba, além de exportar açúcar, níquel, tabaco e peixe, também está pronta para exportar pessoas a qualquer momento, tendo à tira-colo 4 mil médicos descartáveis para enviar para o Brasil.

A importação de médicos cubanos é uma das medidas mais cretinas, abjetas e ultrajantes tomadas pelo governo do PT em todos os anos em que eles controlaram a máquina estatal brasileira. E a concorrência era forte.

Os quatro mil médicos que virão para o Brasil receberão uma "bolsa" (porque não é permitido falar "salários" na ilha da fantasia castrista) de R$ 10 mil reais. Sete mil desses dez vão ficar nas mãos do governo cubano, R$ 2.300 devem, em tese, ficar com a família do médico cubano (que permanece refém em Cuba, para evitar que os cubanos sejam tentados pelas benesses que existem fora da ilha prisão), que por sua vez só deve embolsar 700 reais.

O governo brasileiro alega que isso não configura contrato de escravidão, e a imprensa chapa-branca e os papagaios do sistema estavam prontos para aceitar a versão oficial - e daí nós vemos que todas as afetações de denúncias da "mais-valia" são puro projeto político para a corja que governa o Brasil. Se 90% de expropriação do produto do trabalho não é mais-valia, esse termo perdeu a relevância. O PT pode começar a queimar a obra de Karl Marx.

Aparentemente, também, o governo brasileiro está relaxando as diretrizes de sua campanha contra o tráfico internacional de pessoas, porque o que está sendo empreendido na chamada "segunda fase" do programa Mais Médicos não é menos do que coação em massa dos indivíduos cubanos, além de uma estratégia de ludibriação do povo brasileiro.

O programa não só não se trata de resolver a questão médica do Brasil (caso fosse esse o objetivo, bastaria relaxar as restrições para o exercício da medicina e diminuir os requisitos de capitalização de planos de saúde, por exemplo; Dilma Rousseff estava mais do que disposta a fazer isso - no caso dos cubanos, claro, que foram dispensados do exame de revalidação do diploma). A questão aqui é um atentado contra os direitos humanos dos cubanos, usados como peões num tabuleiro geopolítico, e uma tática ridícula para canalizar dinheiro dos brasileiros (28 milhões de reais por mês) para o governo castrista.

Esse programa deve ser abortado imediatamente.

E deve ser abortado mais rápido do que os fetos doentes são abortados em Cuba para que o governo maquie as estatísticas de mortalidade infantil do país.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O liberalismo em cinco pontos para o Brasil

O último texto do concurso do Instituto Liberal pedia para elaborarmos cinco pontos principais para avançar o liberalismo no Brasil. Imagino que o meu texto tenha ficado um pouco fora do que os organizadores esperavam para suas propostas. A ideia do texto, inclusive, advinha dos cinco pontos de Margaret Thatcher para a Inglaterra; minhas sugestões, por outro lado, iam para um lado um pouco menos conservador, digamos.

Não foi meu melhor texto (acho que o melhor foi o que de fato foi premiado), mas pelo menos cortou um pouco a sequência de textos fracos na reta final do concurso.

Cabe dizer que, apesar de os textos serem curtos, era bastante desgastante ter que produzi-los toda semana, consistentemente, principalmente considerando a rigidez do regulamento. As it turns out, fazer um texto de 10 páginas não é o maior problema; o pior é condensar tudo em uma página e meia.

***

O economista Joseph Schumpeter postulou que, numa economia de mercado, ocorrem ondas de "destruição criativa".1 O que o austríaco queria dizer é que uma economia capitalista tem surtos de inovação que alteram o horizonte econômico. Schumpeter era pessimista sobre as consequências da destruição criativa. A história, porém, é inequívoca: a destruição criativa tem sido a força motriz do progresso social nas economias de mercado.

Os governantes de ontem e hoje sabiam disso e temiam que uma mudança muito radical no cenário da economia também trouxesse radicais mudanças políticas. Na Rússia, por exemplo, até 1842, havia somente uma ferrovia. Enquanto a Revolução Industrial se espalhava pela Europa continental, os governantes russos e de outros países absolutistas temiam pela própria perda de poder político advinda da mudança de mãos do poder econômico. Por isso, não permitiam a construção nem mesmo de uma ferrovia no país. Muito menos fábricas.2

Assim, creio eu, ao contrário de Margaret Thatcher, que as cinco medidas essenciais para a vitória liberal no Brasil não são condições para as reformas liberais. Ao contrário, as reformas liberais são, em si próprias, as condições para que tenhamos um estado menos exploratório e uma ordem econômica mais justa. Não são fins, mas meios.

Listo quais são a medidas liberalizantes mais essenciais, em minha opinião, em ordem de prioridade:

1. Mudança drástica na política de drogas do país. A mudança mais importante que deve ocorrer. As drogas são o problema número um do Brasil nos últimos 40 anos. O combate ao tráfico não só é uma das principais causas das violências nas grandes cidades brasileiras. Ele lotou nossas penitenciárias, que prendem pessoas em condições sub-humanas. Ele moldou o crescimento urbano brasileiro (com o sitiamento de comunidades, transformadas em favelas, vivendo sob o jugo dos traficantes e num de facto estado policial). E, ainda, justificou o crescimento da brutalidade policial, além de uma constante invasão das liberdades individuais.

A política de drogas brasileira deve ser revista imediatamente. É o problema nacional. A legalização inicial da maconha serviria como grande avanço para abrandar a violência urbana, afrouxar nossas cadeias e melhorar as condições de vida dos moradores das favelas.

2. Radical abertura comercial. O último grande movimento liberal vitorioso foi a Anti-Corn Law League, da Inglaterra, liderada por Richard Cobden e John Bright.3 O protecionismo agrícola inglês, na época, matava pessoas de fome e mantinha milhões ainda na pobreza. Com a vitória das ideias de livre mercado de Cobden e Bright, a vida de um quinhão imenso da população imediatamente melhorou.

Igualmente, no Brasil, com a queda das barreiras protecionistas, experimentaríamos um novo padrão de consumo e milhões de indivíduos rapidamente seriam tirados da pobreza.

3. Fim dos subsídios. O BNDES e outros instrumentos de fomento no Brasil têm que acabar. São ferramentas de retroalimentação: quem tem poder político consegue subsídios que, por sua vez, aumentam seu poder político. Temos que quebrar esse ciclo vicioso e submeter nossos empresários à concorrência. Nossos produtos agrícolas não podem ser mais financiados pelo erário e faria bem ao Eike Batista efetivamente ter que produzir bens.

4. Abolição das leis trabalhistas. As leis trabalhistas nacionais são resquícios fascistas da ditadura getulista. Só servem para manter os trabalhadores menos capacitados fora do mercado e, portanto, impossibilitados de se capacitar. Os termos de trabalho devem ser negociados livremente para que os mais pobres sejam capazes de se inserir no mercado.

5. Estabelecimento de melhores direitos de propriedade. Por último, para mudar totalmente nossas instituições, teríamos que proteger os direitos de propriedade de todos no Brasil. Isso significaria direitos de propriedade urbanos para todos, como sugerido por Hernando de Soto.4 Significaria direitos de propriedade rural fortes, sem a necessidade que os agricultores sejam subsistentes - para que se insiram no mercado e na sociedade de forma produtiva. Significaria também um judiciário que respeite as posses de todos, não só da nossa elite político-econômica. Difícil? Sim. Seria difícil estimular a paixão dos liberais se nossos objetivos fossem fáceis.

Notas:

1 SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

2 ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty. Londres: Profile Books, 2012.

3 EBELING, Richard M. Democratized Privilege: The New Mercantilism. Disponível em: Acesso em 27/04/2013.

4 DE SOTO, Hernando. O Mistério do Capital: Por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2000.

O intervencionismo e suas circunstâncias

Artigo para a sexta semana do prêmio Donald Stewart Jr., e outro pouco inspirado, somente para completar a participação em todas as semanas do concurso.

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Desde a publicação de O cálculo do consenso1, em 1962, ficou bastante claro para os economistas uma das principais razões por que os governos tendem a ser intervencionistas. Governos, afinal, estão sempre sujeitos a pressões sociais. Os interesses dispersos dos consumidores, porém, serão sempre mais fracos que os interesses concentrados dos produtores. Logo, não é de se admirar que os estados ao redor do globo estejam sempre a postos para intervir no mercado. Trata-se de uma mera questão econômica; os rentistas podem mais facilmente se organizar para ganhar privilégios, enquanto os custos para o resto da população para se defender desses privilégios adquiridos é muito alto.

Além disso, os governos não devem ser vistos como ferramentas neutras para atingir fins sociais diversos e que devem ser avaliados pontualmente. "A essência do governo é o poder", já observava James Madison, e ele tinha poucas dúvidas: foi presidente dos Estados Unidos e um grande apoiador da centralização política americana. Um apanhado histórico dá razão a Madison: ao redor do mundo os governos são definidos pela força e organizados de forma a concentrarem a maior quantidade de poder possível nas mãos de determinados indivíduos.

Assim, há duas razões primárias para o governo se envolver em questões econômicas: é vantajoso para os próprios componentes do governo e é vantajoso para quem consegue direcionar o governo para seus interesses, o que, como ensinam os economistas da escolha pública, necessariamente será uma pequena minoria. Há ainda a terceira justificativa para intervenção governamental: a demanda do público.

Como afirmou o economista Murray N. Rothbard, não é crime ser ignorante numa matéria especializada como a economia, mas é irresponsável ter uma opinião forte sobre o tema ao permanecer nesse estado de ignorância. Infelizmente, uma vez que a reflexão econômica está presente cotidianamente na vida das pessoas, é difícil que elas deixem de emitir uma opinião a respeito. E, frequentemente, essa opinião é falsa.

Mas são essas próprias ideias falsas que dão origem a demandas por intervenções governamentais. Essas intervenções causam novos problemas imprevistos, como observava Mises, que são combatidos por novas intervenções, num ciclo vicioso permanente.2

Como se vê, o crescimento do intervencionismo estatal tem potentes incentivos; por todos os lados, há motivos ideológicos e econômicos para que o estado aumente.

Por outro lado, assim como a opinião pública pode justificar o intervencionismo, ela é também a única barreira contra ele. E é por isso que

Mises defendia que aprender economia não era uma tarefa para as elites e para intelectuais especializados. A economia é uma ciência que afeta diretamente o dia-a-dia das pessoas e das sociedades. É quase impossível se furtar a fazer pronunciamentos econômicos e, em verdade, são essas opiniões que definem o que é ou não admissível em questões político-econômicas.

Ou seja, os rentistas só conseguem extrair seus benefícios do estado porque há uma opinião prevalente na sociedade que permite que isso ocorra. Da mesma maneira, o governo só pode avançar sobre quaisquer liberdades, inclusive a de comércio, se tiver a anuência da população.

Logo, trata-se de um importante dever cívico sair do estado de ignorância econômica em que nos encontramos e nos informarmos cientificamente sobre quais seriam as consequências de nossas ideias. Bastiat, o célebre economista francês, afirmava que maus economistas só viam o que estava à frente de seus olhos, enquanto o bom economista era capaz de observar aquilo que só era visível com o "olho da mente".3

A economia que está à nossa frente parece óbvia, mas sua interpretação é complexa. A única forma de preservarmos nossa liberdade e uma economia livre e próspera é aperfeiçoando individualmente os olhos de nossas mentes.

Notas:

1 BUCHANAN, James; TULLOCK, Gordon. O cálculo do consenso: A fundação lógica da democracia constitucional. 1962.

2 MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um tratado de economia. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

3 BASTIAT, Frédéric. “O que se vê e o que não se vê”. In: Ensaios. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1989.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

A propriedade privada como necessidade econômica

Texto da quinta semana do Prêmio DSJ, um dos mais fracos da leva, na minha opinião.

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A presença de direitos de propriedade privada é a condição sine qua non para a existência de um mercado. A própria ideia de mercado não faz sentido ao excluirmos o conceito de propriedade privada. Afinal, o mercado, por definição, é uma instituição ou um sistema no qual os indivíduos fazem trocas. Sem direitos de propriedade, ou, no mínimo, propriedades de facto, mercados não existem.

É possível imaginar outros regimes de propriedade, contudo. Concebe-se, por exemplo, que todos os bens num determinado território sejam de propriedade do estado ou de toda a coletividade. Nesse caso, o problema econômico não passa por um mercado, mas é um mero problema de alocação dos bens disponíveis, por assim dizer. Notoriamente, os movimentos socialistas, por todo o mundo, concebem a questão econômica dessa maneira, como um problema – ao menos primordialmente – distributivo.

Claramente, um sistema em que não existam propriedades privadas é possível em uma pequena escala. Famílias, por exemplo, dividem muitas
das mesmas propriedades. Suas necessidades podem ser atingidas nessa pequena escala, mesmo sem uma clara delimitação dos limites do que pertence a um indivíduo e do que pertence a outro dentro da estrutura familiar. No entanto, é impossível extrapolar esse funcionamento em pequenos núcleos para o funcionamento de uma economia complexa.

Isso ocorre porque as economias são estruturadas de forma a satisfazer as necessidades de diferentes indivíduos que têm diferentes desejos ao menor custo possível. Se os direitos de propriedade não são delimitados, é impossível comparar a escassez de um bem em relação a outro. É impossível inferir razões de troca entre os bens, porque também é impossível saber a demanda por um bem em relação a outro. Ou seja, não há preços.

Por esse motivo, Ludwig von Mises, nos anos 1920, postulou a impossibilidade do socialismo. Outros economistas liberais já haviam discutido os problemas do socialismo como proposto por várias correntes – mas destacadamente os marxistas –, que propunham a extinção da propriedade privada dos meios de produção. Porém, Mises mostrou que não haviam apenas problemas, mas uma impossibilidade categórica de funcionamento de uma economia complexa baseada na propriedade coletiva dos meios de produção.1

Sem o controle privado dos meios de produção, não há preços para eles. Sem esses preços, não se sabe qual a sua escassez relativa, quais são os custos de produção de um bem, qual é a demanda por esses meios de produção. Os agentes são incapazes de fazer o cálculo econômico; eles agem sob um caos calculacional. Esse caos se estende para qualquer seara na qual não haja propriedade privada. Logo, as ações de qualquer governo também se dão sob esse caos.2

Mises, assim, colocou a propriedade privada no centro das discussões sobre a economia. Qualquer discussão econômica pressupõe um arcabouço de direitos de propriedade. Sem direitos de propriedade privada, discussões econômicas são fúteis, porque a alternativa é apenas o desejo arbitrário de um governante ou de uma coletividade.

Interessantemente, como indicam Daron Acemoglu e James Robinson, regimes que restringem ou acabam com a propriedade privada dos meios de produção (e frequentemente também de muitos bens de consumo) não são a exceção histórica, mas a regra.3 Estamos acostumados a pensar nos experimentos socialistas de planejamento central – a Rússia soviética e seus países satélites – como anomalias. Porém, o fato é que, ao longo da história, o controle sobre os meios de produção poucas vezes esteve nas mãos do indivíduo. Na maioria das vezes, era o estado, capitaneado por uma aristocracia, quem os monopolizava. Exemplos
incluem o estado inca, as cidades-estado gregas, a Europa medieval, entre outros.

Isso nos explica facilmente por que, por toda a história, a pobreza foi a condição prevalente da humanidade. Não havia calculo econômico nessas sociedades; qualquer crescimento econômico era impossível.

E por que economias em que há direitos de propriedade privada são tão raras? Acemoglu e Robinson respondem: porque a economia não era primordialmente voltada para as necessidades dos consumidores. A propriedade privada dá liberdade de ação aos indivíduos e a economia era voltada essencialmente para a necessidade da elite de controle social.

Referências

1 MISES, Ludwig von. Economic Calculation in the Socialist Commonwealth. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 1990.
2 MISES, Ludwig von. Planned Chaos. Irvington: Foundation for Economic Education, 1981.
3 ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Why Central Planning?. Disponível em: Acesso em: 12 abril 2013.

terça-feira, 16 de julho de 2013

O estado de direito como sistema de poder

Este foi o texto que foi premiado no Prêmio Donald Stewart Jr. 2013. Ficou em terceiro lugar e vai me levar para uma turnê pelos EUA, para seminários de verão do Cato Institute e da Foundation for Economic Education.

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No filme Rain Man (1988), Raymond Babbitt (interpretado por Dustin Hoffman) utiliza a técnica de contagem de cartas para ganhar os jogos para seu irmão, Charlie Babbitt, personagem de Tom Cruise. A cena é emblemática porque Raymond não viola as regras que existem de fato. Agindo dentro do que é permitido, Raymond começa a vencer demais. Com isso, os seguranças da casa começam a vigiá-lo.

Uma analogia dessa cena pode ser feita com o que se convencionou a chamar de estado de direito – isto é, um estado no qual, teoricamente, o regime legal não está sujeito aos caprichos de um indivíduo ou grupo de indivíduos; onde as leis são aplicadas igualmente e ninguém está acima delas. O estado de direito se trata de uma meta-regra formal para aplicação de outras regras; estipula que há um estado de “leis”, mas não estabelece qual é o conteúdo dessas leis.

É aí que se encontra a maior fraqueza da conceituação do estado de direito e também um dos motivos por que ele não se mostra capaz de frear os avanços dos governos sobre as liberdades individuais: estabelecer que um regime seja “de leis e não de homens” não estabelece, acessoriamente, quem são os homens que efetivamente produzem as leis.

As leis, para os indivíduos comuns, são dadas. A população, de forma geral, tem muito pouco controle sobre as leis e regulamentos sob os quais vivem (por diversos motivos que fogem ao escopo deste texto, mas muitos dos quais são corretamente identificados pelos expoentes da escolha pública1). As pessoas recebem um dado sistema social e jurídico e a ele têm que se adaptar.

Como no caso de Raymond Babbitt, o que se verifica é que, se o indivíduo comum começa a “vencer” demais, as regras do jogo, que estão fora da sua alçada de influência, são modificadas. Raymond, sem violar nenhuma regra, fez com que as regras fossem modificadas. Os indivíduos, da mesma forma, estão sujeitos a um sistema que frequentemente foi desenhado para manter um sistema de sujeição e de domínio governamental e das elites privilegiadas. Caso os indivíduos encontrem alternativas a esse esquema de poder, as regras “da casa” são modificadas para permitir que a situação de vulnerabilidade dos indivíduos dentro do sistema social seja mantida.

Em 1984, de George Orwell2, essa ideia é levada a extremos. No país retratado no romance, Oceania, não existem leis escritas. Winston Smith, o personagem principal, ao escrever em seu diário, tem plena convicção de que será preso ao escrever em seu diário. Sua convicção advém do fato de que, mesmo sabendo que o que ele faz não é, objetivamente, “ilegal”, as leis podem ser torcidas de forma a tornar punível qualquer comportamento que coloque o indivíduo em situação de descolamento do poder estatal. A ideia do estado de direito dá a esse processo cru uma aparência de legitimidade e de representatividade. Pode-se dizer que o estado de direito ataca uma parte do problema, mas deixa de fora o essencial: estabelece que leis sejam universalmente válidas e aplicáveis, mas não é um conceito equipado para nos informar quais são essas leis universais.

Tal é o carma de diversos países da América Latina. Com sua tradição de paternalismo e caudilhismo, os países latino-americanos desfrutavam de razoável estabilidade de seu “estado de direito”. Porém, era um estado aparelhado pelas elites oligárquicas, que definiam sistematicamente quais deveriam ser as leis. E a aplicação universal das leis não importa se elas forem desenhadas para beneficiar um pequeno grupo desde sua concepção.

Esse rapto do estado na América Latina não só gerou distorções políticas e econômicas gigantescas, mas gerou grande ressentimento por parte da população, dando munição ideológica para movimentos demagógicos de esquerda como os de Hugo Chávez e Evo Morales (incidentalmente, Chávez e Morales atacaram o problema acabando com o estado de direito, ao invés de cortar o poder do estado de estabelecer privilégios legais).

Por isso, a reflexão de Hayek segundo a qual o estado de direito é “uma regra a respeito do que deve ser a lei”3 só é válida porque o estado de direito, sem um conteúdo legal liberal, é vazio. É apenas uma casca que pode validar qualquer regra e, assim, regras que sejam efetivamente tirânicas.

Referências

1 Cf. BUCHANAN, James. Cost and Choice: An Enquiry in Economic Theory. Indianapolis: Liberty Fund, Inc. 1999.
2 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
3 HAYEK, F. A. The Constitution of Liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1978.

A falsa solução estatal para a saúde

Artigo para a fanpage do LIBER.

A resposta mais característica dos governos ao serem defrontados com suas falhas intrínsecas é lançar "pacotes" de medidas para aplacar os ânimos da sociedade.

Invariavelmente esses pacotes são conjuntos de decretos, leis e provisões que levarão a uma piora da situação original e farão com que, em alguns meses ou poucos anos, a mesma situação requeira que novas medidas, leis, decretos e regulamentos sejam impostos para amenizar os problemas criados pelo primeiro "pacote".

Dilma Rousseff recentemente anunciou um "esforço" do governo para cobrir o déficit de médicos em diversas localidades do Brasil. Tal esforço inclui o aumento dos custos para se tornar médico.

É um contrassenso. O governo pretende fazer com que os médicos tenham um período probatório de dois anos no SUS, estendendo seu "curso" de seis para oito anos. Isso é válido tanto para estudantes de faculdades públicas quanto para os de particulares. O objetivo principal é "ampliar" a oferta de médicos coagindo-os a trabalhar para o governo durante tempo determinado.

Mais ou menos como uma nova versão do serviço militar obrigatório; porém, sabemos que a probabilidade de o governo alegar "excesso de contingente" e dispensar médicos do serviço forçado é próxima de nula.

A solução do governo não é apenas uma violação abjeta dos direitos individuais, mas também será inócua do ponto de vista da saúde. No longo prazo, o número de médicos não aumentará.

Por que não? Porque os custos para se tornar médico também aumentarão. Entrará no cálculo para uma pessoa entrar na medicina também esse período de trabalho mandatório para o governo. É de se esperar que muitos prospectivos médicos se sintam desestimulados por seus futuros profissionais.

Além disso, o governo pretende enviar médicos para locais com pouca ou nenhuma estrutura para o exercício médico. Combinando essa intenção com o fato de que teremos médicos sem experiência em locais sem condições de trabalho, temos uma receita de fracasso.

Os libertários, afinal, não cansam de repetir qual é a solução para a saúde. Não é mágica. Não é "pacote", não são leis, decretos, regulamentos. Os libertários sabem que, no campo da saúde mais do que em qualquer outro, o que faria com que os serviços melhorassem e seus custos baixassem seria o "simples sistema de liberdade natural".

Precisamos de uma desregulamentação radical do mercado de planos de saúde, aliada a uma liberalização dos cursos de medicina. Obrigatoriedades de médicos para executar certas funções devem ser abandonadas e outros profissionais de saúde devem ser prestigiados (enfermeiros, biólogos, quiropráticos, fisioterapeutas, etc).

Sem requerimentos mínimos dos planos de saúde, os pobres terão acesso a tratamentos. A competição aberta no ramo da saúde fará com que os preços caiam e os serviços melhores, além do aumento dos salários para os profissionais.

Qualquer solução para a saúde da população que envolva mais interferência estatal é uma fraude.

E o LIBER é contra.

O que queremos para nossas cidades?

Artigo para a fanpage do LIBER.

Queremos que pessoas andem nas ruas, se confraternizem em calçadas, praças e mercados ao céu aberto? Ou queremos que elas tenham que percorrer distâncias cada vez maiores para ver seus amigos?

Queremos que as pessoas morem próximas aos seus amigos, familiares e companheiros de trabalho? Ou será que preferimos que elas tenham que percorrer distâncias enormes em asfalto, vendo somente concreto e outros veículos pelas ruas?

A discussão sobre o "passe livre" nunca é colocada nesses termos, mas é isso que está em jogo. O passe livre é um subsídio ao deslocamento das pessoas de um local ao outro.

Trata-se de zerar a tarifa de umas pessoas e passar os custos para a sociedade como um todo. O efeito é claro: com o custo de utilizar o transporte público fixado em zero, a demanda aumentará - e muito.

O que não se discute, mas deveria estar na pauta, é o fato de que um subsídio ainda maior aos transportes públicos vai aumentar ainda mais a expansão urbana das cidades brasileiras. Em vez de facilitar os deslocamentos de pessoas, dará a elas incentivos para morarem cada vez mais longe umas das outras (já que elas não terão que assumir todos os custos de suas escolhas).

As pessoas viverão distantes de seus trabalhos, de seus amigos, de suas atividades sociais, de seus familiares. E as cidades ficarão cada vez mais desertas e tomadas por ruas e vias de acesso. Nós não temos que construir vias de acesso. Nós temos que ter mais lugares onde as pessoas possam e queiram permanecer. Ou seja, não temos que facilitar a chegada das pessoas a outros lugares; nossas cidades devem possuir lugares onde as pessoas podem chegar.

Deve-se ter em mente de que uma versão parcial do "passe livre" já é aplicada em maior ou menor grau em todas as cidades brasileiras. As tarifas de transporte não estão necessariamente ligadas às distâncias percorridas, dando incentivos para que as pessoas morem mais longe. Isso leva os mais pobres a morarem em periferias, como denuncia a esquerda há anos. Infelizmente, os esquerdistas defendem medidas que levarão a um isolamento urbano cada vez maior dos pobres.

A solução para a situação deprimente do transporte público no Brasil é o contrário absoluto do que se propõe: passa pela privatização dos transportes e pela liberalização do mercado.

Assim, as tarifas, as linhas e os tipos de transporte serão flexíveis. As pessoas não estarão presas às linhas decididas pelos burocratas. Elas poderão viajar em vãs, mototáxis, táxis com tarifas diferenciadas, caronas coletivas, ônibus, micro-ônibus, shuttles e o que mais os indivíduos conseguirem imaginar.

Isso também levará a uma revitalização das nossas cidades. As pessoas tenderão a internalizar todos os custos de morar e trabalhar em um local. Se precisarem se transportar de um ponto a outro, contarão com o conforto de um mercado competitivo, que leva a preços mais baixos e serviços cada vez melhores, sempre.

O pior dos mundos é o que nós temos: um mercado cartelizado, corporativista e controlado pela politicagem de plantão. Dilma Rousseff planeja estabelecer uma secretaria nacional para o transporte público. É uma pena que não tenha ocorrido à nossa presidente "tecnocrata" que os brasileiros necessitam exatamente do contrário: precisam do gostinho de um mercado desobstruído na hora de voltar para casa.