sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Ser revolucionário, ser governista

Originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado.

Com os 50 anos da instalação do regime militar no Brasil, o Estadão recentemente publicou alguns artigos que falavam sobre as circunstâncias políticas da época. Um deles, escrito por um general do exército brasileiro (“A árvore boa“, de Rômulo Bini Pereira), repercutiu por sua análise positiva e rósea dos anos de chumbo. Particularmente, chamou a atenção seu uso reiterado da frase “Revolução Democrática” para se referir ao golpe que ocorreu em 1964.

Não surpreende – os defensores da ditadura militar sempre fizeram questão de utilizar a expressão “revolução” por suas conotações positivas e eles não estão sozinhos. De fato, os livros de história usados na época da ditadura todos faziam questão de falar na Revolução Democrática e há um longo histórico de combate dessa cooptação linguística pelos opositores do regime.

Analogamente, a Venezuela atualmente ferve com protestos dos opositores do governo chavista de Nicolás Maduro, que os acusa de “demonizar a revolução”. O meme chegou ao resto da América Latina e é possível facilmente encontrar denúncias aos reacionários anti-Maduro e cartas de amor à “revolução bolivariana”. O tema é antigo nos governos socialistas que chegaram ao poder em várias partes do mundo. Cuba há mais de 50 anos celebra sua “revolução”, que aparentemente nunca termina. A da Venezuela acontece desde 1998 e, mesmo chegando em seu 16º ano, continua subversiva e anti-establishment.

É sintomático que defensores de regimes claramente opressores e exploratórios queiram vestir seus ídolos em roupas revolucionárias. A ordem estabelecida, afinal, é associada a todas os problemas sociais que já existem e revoluções só podem significar a subversão e a potencial solução desses problemas. Daí até mesmo óbvios conservadores como Rômulo Bini Pereira rotulam seu regime preferido como revolucionário.

Para a esquerda estatista, porém, trata-se de um mito fundador. A esquerda originalmente era o partido da mudança, da transformação, contra as amarras do antigo regime. Os estatistas que compõem os grupos corporativistas e social-democratas atualmente mantêm sua estética de rebelião, mas a encaixam num molde pró-governo e chapa branca.

No Brasil, mesmo com o PT no governo há quase 12 anos, a esquerda que o apoia consegue nos empurrar a narrativa de que seu domínio foi uma história de perseguição e rebelião. Há pouco tempo, os condenados por corrupção do Mensalão conseguiram a proeza de distorcer a narrativa a ponto de serem considerados presos políticos por sua base de aliados.

Na Venezuela, mesmo com o regime se aproximando das duas décadas, os chavistas e seus comparsas continuam a se fazerem de vítimas de um complô anti-revolucionário. E a esquerda pró-estado latino-americana faz questão de minimizar a violência contra a população venezuelana e de se agarrar à versão de que tudo não passa de um movimento orquestrado por golpistas da elite contrários às pretensas conquistas sociais do regime.

Mas essa é uma posição esquizofrênica da esquerda. Regimes de décadas de idade claramente não são revolucionários e, particularmente, o regime venezuelano (e o mesmo vale para outros regimes “de esquerda” da América Latina) não passa do mesmo domínio oligárquico com novos slogans.

Ou a esquerda mantém sua imagem punk rock ou abraça de fato sua vontade de idolatrar o estado. Ou seja: ou os esquerdistas se transformam libertários e questionam de fato todas as estruturas de poder ou simplesmente saem do armário e se assumem pelegos por vocação.

Não é possível ter as duas coisas. Os manifestantes venezuelanos certamente agradeceriam se os revolucionários estatistas parassem de justificar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha que os atingem.


Being Revolutionary, Being Statist

Originally published on the Center for a Stateless Society website.

One of Brazil’s largest newspapers, O Estado de S. Paulo, recently published a few articles on the 50th anniversary of the military takeover of the Brazilian government. One of them, written by an Army general (“A árvore boa,” by Rômulo Bini Pereira) has had some repercussion due to its positive and rose-tinted appraisal of the so called “years of lead.” In particular, his use of the phrase “Democratic Revolution” to refer to the military coup of 1964 is conspicuous.

It’s not surprising, however — advocates of the military dictatorship have always made it a point to use the word “revolution” because of its positive connotations, and they are not alone. In fact, history books during the 21 years of the regime were always eager to mention the Democratic Revolution of 1964, and there has been a longstanding resistance against this linguistic cooption of the word “revolution” by political forces that clearly wanted nothing to do with actual change.

In the same vein, during the feverish riots in Venezuela against Nicolás Maduro’s government, the regime has accused the opposition of “demonizing the revolution.” The meme has reached the rest of Latin America and it is fairly easy to find denunciations of the anti-Maduro reactionaries and love letters to the “Bolivarian Revolution.” The theme is old among the socialist governments that have reached power in the world. Cuba has celebrated its continuous “revolution” for 50 years. Venezuela’s is ongoing since 1998, and even in its sweet sixteen continues to be subversive and anti-establishment.

It is understandable that defenders of clearly oppressive and exploitative regimes want to dress their idols up in revolutionary clothes. The current order, after all, is linked to all the social problems that already plague society and revolutions can only mean subversion and the potential solving of those issues. Thus, even obvious conservatives such as Rômulo Bini Pereira find it convenient to label their preferred type of government as “revolutionary.”

For the statist left, though, it is a founding myth. The left was originally the party of change, of transformation, against the chains of the Ancién Regime. The corporatists and social democrats that comprise the statist left nowadays keep this rebellious sentiment, but frame it in a pro-government, establishmentarian rhetoric.

In Brazil, the Worker’s Party (PT) has governed the country for 12 years, and their left-wing supporters have tried to pull the narrative that they have been rebellious and persecuted the whole time. A few months ago, politicians from PT convicted for corruption managed to distort the story so much that they virtually claimed to be political prisoners to their allies.

In Venezuela, even with regime closing in on two decades of rule, Chavistas and their cronies continue to claim to be victims of an anti-revolutionary agenda. And the Latin American statist left is all too happy to minimize the violence suffered by the Venezuelan population and to embrace the version that everything has just been a movement orchestrated by the elite against social progress.

But that is a schizophrenic position. Decades-old regimes cannot be revolutionary. The Venezuelan government, specifically (although the same goes for many other “leftist” states in Latin America) is nothing more than the same old oligarchy with new slogans.

The left can either keep their punk rock self-image or embrace their willingness to idolize the state. Either the leftists can become fully-fledged libertarians and question all power or they can come clean and admit to being lovers of authority. They can’t have it both ways.

Venezuelan protesters would certainly thank the statist revolutionaries if they stopped justifying the tear gas and rubber bullets.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A severidade das penas e os castiçais de Jean Valjean


Existe uma tendência no Brasil, e o movimento liberal não poderia estar isento, de defender punições mais rígidas aos crimes hediondos, redução da maioridade penal, entre outros temas derivados, compreensivelmente, do medo de se viver no Brasil, refém do relógio para fugir de assaltos, dependente de portões elétricos para se refugiar em lares cada vez menos seguros.

Sim, a insegurança no Brasil vai além dos limites do razoável. A população inteira vive em estado de alerta, buscando meios para se proteger e para reagir. Mas o medo é mau juiz. O medo tende a potencializar os feitos, e, portanto, a exagerar as punições desejadas. O raciocínio é o mesmo que enforcou Tiradentes: alguém precisa dar o exemplo. É um pensamento de manada, como o apedrejamento de Madalena. É a ineficiência estatal sendo descontada pelo povo numa espécie de bandido-mártir, em um caso, e um desejo de aumentar a eficiência estatal não através da captura de mais criminosos ou da redução do número de crimes, mas de uma punição mais rigorosa àqueles poucos que de fato são capturados.

A falha do “modelo de Madalena” já foi identificada, não por Cristo, que não convenceria as massas de ateus e agnósticos que povoam os círculos liberais, mas pelas cortes alemãs do século 19, que desenvolveram o princípio da proporcionalidade, e antes disso, até, com o surgimento do tribunal do júri e a percepção de que a punição aplicada de forma direta pela vítima vem carregada pelos excessos promovidos pela dor que lhe foi infligida, o que ultrapassaria os limites da razoabilidade. A idéia do “povo justiceiro”, no entanto, não é das mais caras ao povo brasileiro, apesar de sua execução ter sido tão amplamente noticiada de de casos como esse se repetirem com relativa freqüência. A “justiça pelas próprias mãos”, portanto, não será tema central neste artigo.

Já o “modelo de Tiradentes”, em que o uso excessivo da violência é impetrado pelo Estado, pelo contrário, tem ampla aceitação pelo brasileiro médio, e por isso merece mais atenção. A redução da maioridade penal é apenas uma das formas de defender punições mais rígidas. O desejo por punições cada vez mais severas pode ser identificado de forma assustadora nos comentários a esta matéria da Folha de S. Paulo, que majoritariamente apoiam a prática da tortura contra criminosos. O que pretendo defender aqui é a ineficácia desse modelo, que martiriza o criminoso para que ele sirva de exemplo aos seus colegas.

Começo o meu argumento apontando para um fato que não mudaria com a legitimação de punições como a tortura ou a pena de morte: a impunidade. Se a pena de morte fosse prática comum nas cortes brasileiras, ainda assim, homicidas ficariam muito pouco preocupados. Apenas 10% dos casos de homicídio no Brasil vão a julgamento. Isso não significa que 10% dos homicidas são condenados, representa um dado ainda mais evidente da incompetência ou sobrecarga de nosso sistema jurídico: apenas em 10% dos casos são identificados suspeitos que serão levados a julgamento um dia. Alguns suspeitos, naturalmente, serão inocentados por falta de provas, o que nos deixa com valores ainda mais alarmantes de impunidade, uma vez que um suspeito inocentado equivale a mais um caso de homicídio em que o criminoso segue livre. O argumento da intimidação pelo medo da punição, portanto, é extremamente frágil, considerando-se que a punição muito raramente é efetivada.

Outra fragilidade do argumento das penas mais graves está na imprevisível reação do homem. Quando a pena para o estupro, por exemplo, se iguala à pena para o homicídio, a tendência do estuprador é levar a cabo, além do estupro, o homicídio, pois a vítima não poderá testemunhar contra ele, na escassa possibilidade de ele vir a ser julgado.

É verdade, entretanto, que as pessoas reagem a estímulos, e que estímulos mais fortes serão responsáveis por respostas mais radicais. Então é possível, sim, que punições mais fortes sejam uma das soluções imagináveis para a criminalidade, desde que elas se estabeleçam em um ambiente onde a impunidade seja relativamente baixa (embora na prática a realidade se mostre contrária a esse argumento repetidas vezes).

Como, então, reduzir os índices de criminalidade, se a punição mais severa não é uma resposta eficiente? Um argumento excepcional quanto a isso vem da literatura, de um dos maiores clássicos do Romantismo francês. Como Victor Hugo é muito melhor escritor que eu, deixarei o trecho do roubo aqui, para que a leitura fique mais interessante:
“Chegou um Inverno muito rigoroso, em que João Valjean não encontrou que fazer. Ficou sem trabalho e a família sem pão. Sete criancinhas sem pão!

Num domingo à noite, preparava-se Maubert Isabeau, padeiro com estabelecimento no largo da igreja, em Taverolles, para se deitar, quando ouviu uma violenta pancada na vidraça gradeada da sua loja. Correu imediatamente para ali e chegou a tempo de ver um braço passando por uma abertura feita no vidro com um murro, pegar num pão e levá-lo. Isabeau saiu apressadamente e correu atrás do ladrão, que fugia como lhe permitiam as pernas, conseguindo alcançá-lo.

O ladrão largara o pão no caminho durante a corrida, mas tinha ainda o braço ensanguentado. Era João Valjean.

Passava-se isto em 1795.

João Valjean foi levado aos tribunais daquele tempo «pelo crime de roubo nocturno com arrombamento, praticado numa casa habitada». Possuía uma espingarda de que se servia como o melhor atirador e exercia às vezes o mister de caçador furtivo. Tudo isto lhe foi prejudicial. [...]João Valjean foi considerado criminoso. Os termos do código eram formais. Existem na nossa civilização momentos terríveis: os momentos em que a penalidade é descarregada sobre um culpado. Que lúgubre momento aquele em que a sociedade se desvia e consuma o irreparável desamparo de uma criatura racional! João Valjean foi condenado a cinco anos de galés”
.

Valjean teve depois sua pena gradativamente ampliada para 19 anos após diversas tentativas de fuga e resistência à prisão. Não se pode dizer do crime de Valjean que tenha sido tão simples: houve invasão e destruição parcial de uma propriedade além do roubo do pão. Digamos que 5 anos seja uma punição severa, mas justa, para o crime de Valjean, e que todas as tentativas de fuga realmente lhe valeram o tempo que passou sem liberdade. Aceitaremos, então, que o crime foi punido, e que a justiça, portanto, foi feita.

O que acontece quando Valjean é liberto, entretanto, é o espelho da situação dos criminosos brasileiros modernos quando voltam a ver o sol redondo. Ele é jogado num mundo que não o aceita nem o estimula, porque seu passado está evidente na ficha criminal como o passado de Valjean saltava aos olhos pelo seu passaporte amarelo. Valjean não consegue emprego ou comida, pois todos se recusavam a confiar nele (com alguma razão, já que “João Valjean entrara para as galés soluçante e trémulo; saiu de lá impassível. Entrara angustiado, saiu sombrio”).

Ele segue sua jornada até encontrar-se com o Monsenhor Bemvindo, Bispo de Digne, que o acolhe e lhe dá comida e alojamento. Mas Valjean, agora sombrio, sabe o que o espera quando puser os pés de volta no mundo real: mais desprezo, mais fome. E por isso resolve roubar os talheres de prata do bispo que o acolheu, num ato de monstruosidade muito mais chocante que aquele do roubo do pão. No passado, roubou por fome, para alimentar a irmã e sete sobrinhos, o mais velho com oito anos. Agora, roubava depois de ser alimentado e alojado confortavelmente por sua vítima.

A polícia francesa do início do século XIX era aparentemente muito mais eficiente que a nossa, e capturou Valjean ainda em Digne com o fruto de seus furtos. Levaram-no ao Bispo, para que pudessem devolver-lhe os itens roubados. A atitude do bispo é das mais surpreendentes. Ao ver o criminoso capturado à sua frente, o Monsenhor lhe disse: “Ah, então voltou?! Estimo muito tornar a vê-lo Mas agora me lembro: eu também lhe dei os castiçais, que são de prata, como o resto, e que lhe podem render”. Esse foi o turning point para a vida e o caráter de Valjean. Foi a partir desse ato de misericórdia que Valjean tornou-se novamente um homem de bem.

Valjean não é apenas um personagem. Victor Hugo, como todo grande escritor, fez de Valjean o arquétipo do ladrão comum. Um homem de caráter neutro que foi levado à criminalidade por alguma circunstância (no caso de Valjean, da circunstância responsável pela grande maioria dos roubos da época, a fome), e que corrompeu seu caráter de forma grave a ponto de tornar-se impassível, e que, devido ao tratamento adequado, recupera seu caráter original.

A salvação de Valjean não vem da misericórdia do bispo, entretanto. Seria uma interpretação rasa, quase tacanha. A salvação de Valjean vem da confiança que Bemvindo lhe deposita e da oportunidade que lhe é dada de um recomeço. Valjean não mais cometerá crimes ao longo do romance. A história de Valjean é a parábola da ressocialização como melhor aparato correcional que a punição. É uma demonstração, pela literatura, de como infligir dor em alguém não é cura para seu caráter. De como, pelo contrário, o caráter enrigece diante desse tipo de tratamento. Valjean é o relato, na forma de romance, da vida do menino amarrado ao poste no Rio, do traficante torturado na UPP da Rocinha. De como seriam as vidas deles caso encontrassem, ao invés do vazio de sentimentos e da dureza das penas, a confiança e a admoestação cândida do Monsenhor Bemvindo.

Evitando cair na falácia do determinismo social, repito o velho mantra: “o ser humano reage a estímulos”. Que estímulos diferentes resultarão em reações diferentes é quase desnecessário mencionar. Mas há outro fator que torna a sociedade muito mais complexa: o mesmo estímulo, em pessoas diferentes, obterá resultados diferentes. Às vezes, radicalmente diferentes.

Muitas pessoas vêem no argumento da causa social da criminalidade uma ofensa àqueles que, sofrendo às vezes muito mais que os bandidos, seguem uma vida honesta e longe de qualquer banditismo. Mas, assim como é impossível prever com certeza o tempo, restando-nos apenas uma margem de confiança, igualmente é impossível prever a reação de cada ser humano; o que se passa em cada mente, o que cada indivíduo percebe como melhor alternativa para sua situação, varia.

Não é ofensa dizer que há, sim, pessoas que roubam por necessidade, mesmo que haja outras que talvez prefiram morrer de fome a violar a propriedade alheia. Ofender-se com esse tipo de observação é colocar os seres humanos no pote daquilo que é exclusivamente físico. É dizer, como uma bola de basquete, que todo homem que sofra um baque vai quicar de volta, recuperando-se.

Não se deve cair no argumento cretino de que o homem é fruto do meio, mas igualmente cretino é o argumento oposto de que o homem independe dele. O que faz um homem é sua relação com o meio, absorvendo dele informações brutas e interpretando-as de forma a moldar seu próprio caráter. Por isso mesmo é possível que irmãos gêmeos, vivendo as exatas mesmas situações, tornem-se pessoas absolutamente distintas: as diferentes interpretações que dão ao meio são responsáveis por essa variação. Certamente há pessoas que reagiriam de forma positiva inclusive às punições graves.

Se Jean Valjean fosse outra pessoa, talvez ele se tornasse um monge ao sair das galés. Talvez um brâmane, alimentando-se exclusivamente de ervas que encontrasse pelo caminho. A probabilidade disso, entretanto, vai contra uma regra geral da natureza humana: em situação de dúvida, o caminho escolhido tende a ser o mais fácil/menos arriscado.

A verdadeira forma de evitar a criminalidade, portanto, é tornar o crime um caminho mais difícil ou arriscado, mesmo para pessoas que têm baixa aversão ao risco, outro traço absolutamente individual do ser humano. Existem apenas duas maneiras de se executar essa tarefa: elevando absurdamente o risco do crime, a eficácia policial e a agilidade do sistema jurídico (estas duas últimas contraditórias, uma vez que a maior eficácia policial geraria inevitavelmente um maior número de processos a ser julgados, atrasando seu julgamento), ou reduzindo os riscos gerais de quaisquer outras atividades. Há ainda uma terceira opção, aventada por muitos, que é a mudança da natureza humana. Não me parece a opção mais viável, e nunca vi nenhuma proposta nesse sentido que me soasse realista ou mesmo remotamente convincente, de forma que ignorarei essa proposta.

Como já falei, de forma até mais longa do que desejaria, sobre a proposta número um, vou tentar explicar rapidamente a proposta número dois para a redução da criminalidade. É uma proposta que, apesar de aparentemente mais complexa e de difícil implementação que a primeira, na prática é mais intuitiva e natural.

Existem basicamente três fatores que influenciam na tomada de decisões de qualquer pessoa, que acontecem de forma simultânea: 1) quais os caminhos identificáveis para a próxima ação? Como se sente o indivíduo agora, e como fazer para se sentir melhor no futuro? Esse é o fator da delimitação do real. Não se tomam atitudes, em geral, que não façam parte de algum sistema lógico internalizado no raciocínio do sujeito. 2) Qual o risco de cada uma das ações identificadas? O que acontecerá ao indivíduo caso ele aja de acordo com cada uma delas? E 3) Quais ações são boas? Quais delas são justificadas pela ética/moralidade? Se for imoral, os benefícios individuais são suficientes para suplantar a consciência de se estar cometendo uma imoralidade?

Novamente, como falamos de indivíduos, haverá distinções em cada uma das “etapas” da tomada de ação. Alguns indivíduos serão excelentes na identificação dos cursos possíveis, mas farão má avaliação dos riscos e da moralidade de cada um deles. Outros escolherão sempre aquele com melhor custo/benefício ao avaliar o risco daquelas possibilidades que identificaram, mas falharão em identificar um leque grande o suficiente de possibilidades para garantir que aquela de fato é a melhor de todas. Por fim, haverá aqueles para quem a moralidade de uma ação é menos relevante que as duas primeiras etapas. Naturalmente, todos os tipos de combinação são possíveis, e haverá aqueles que façam mal julgamento nas três etapas, e alguns gênios que acertarão em cheio nos caminhos a percorrer.

Descontarei daqui a possibilidade de o próprio estado de espírito influenciar nessas três etapas (a euforia pode reduzir a risk awareness, por exemplo), por crer que as diferenças nas ações de um mesmo indivíduo são menos importantes para o assunto que as diferenças inter-indivíduos. Sigo com a proposta, portanto.

Para reduzir os riscos de todas as ações, é preciso, primeiramente, reduzir o número de crimes, e reduzir a moralidade legalista atual a uma moralidade naturalista, minimalista. Há muitos entraves burocráticos que se tornam crimes caso não sejam seguidos. A questão da moralidade perde valor quando todas as possibilidades enxergadas são imorais. Não se pode abrir uma empresa sem CNPJ. Não se pode trabalhar por menos que o salário mínimo. Não se pode fazer frete sem licença. Não se pode trabalhar sem um diploma.

Todas essas exigências requerem esforços de longo prazo que nem sempre são vistos pelo indivíduo, e muitas vezes sequer são efetivamente possíveis dentro daquele leque que possuem. A licença custa caro e leva tempo. O CNPJ custa caro e leva tempo. Tempo e dinheiro são justamente dois dos requisitos que o indivíduo não tem.

Se ele será relegado à ilegalidade de qualquer forma, do ponto de vista legalista, ele será, inevitavelmente, uma pessoa imoral. Descarta-se a questão da moralidade por inteiro: eis o surgimento do risco do crime violento. Restam, então, ao potencial criminoso, apenas dois critérios para avaliar: quais as opções, e quais os riscos que elas apresentam. O freio moral foi reduzido a quase nada pelas regulamentações burocráticas.

Nesta etapa da avaliação é que entram as punições mais rigorosas como fator restritivo do crime. Mas a avaliação é entre custo e benefício da ação, não puramente de seu risco. O benefício de um crime é certamente superior àquele obtido por, digamos, comércio ilegal. Os riscos, mesmo com uma eficiência policial e jurídica ideais, são muito próximos. E são próximos porque a eficiência policial também se aplica ao comércio ilegal. Ficaria impossível manter uma barraca de camelô num sistema de eficiência policial absoluta, pois logo ele seria descoberto e teria toda a mercadoria e dinheiro apreendidos. A opção estaria cortada, como todas as demais: restaria a ele apenas o bramanismo como alternativa.

O ataque à criminalidade, portanto, não deve focar na aversão ao risco na tomada de escolhas, mas na delimitação daquilo que é moral. Eliminar a moralidade de atividades inofensivas com leis artificiais tende a aproximar o risco delas àquele dos crimes propriamente ditos, de natureza violenta.

A solução mais apropriada à violência é dar às pessoas possibilidades reais de agir dentro da lei, conseguindo assim sua subsistência. Aqui há outra separação, relativa ao modo de fazer com que todos estejam nesse nível da legalidade. Alguns defendem que é importante elevar todos os indivíduos ao nível da legalidade atual. Não cabe discorrer aqui sobre a impossibilidade e, surpreendentemente, imoralidade disso, argumentos que todos os liberais, público-alvo deste texto, já devem conhecer. Direi apenas que a solução natural a isso é reduzir o nível das barreiras, tornando-as transponíveis pelo maior número possível de indivíduos. Cortar reservas de mercado; extinguir a exigência de diplomas; permitir todo tipo de troca plenamente voluntária, seja de anabolizantes, drogas ou alimentos; reduzir as exigências fiscais, entre outras.

Isso traria o nível da moralidade a um patamar em que boa parte das opções enxergadas pelos indivíduos seria não apenas possível, mas moralmente boa, ou ao menos neutra. Com mais opções dentro da legalidade, qualquer risco apresentado pelas possibilidades ilegais se tornaria um peso insuportável para a maioria da população.

Agora que já vimos como evitar que os crimes ocorram, como aplicar esse raciocínio aos ex-detentos? Como argumentar que, mesmo diante de situações tão fantásticas, um indivíduo criminoso deva voltar à sociedade? Como concluir que, mesmo diante de um nível de barreiras legais tão irrisório, um criminoso não reincidirá? Em outras palavras, porque a combinação de poucas barreiras com punições graves não deve ser considerada?

A resposta é resgatada do próprio Valjean. Se um criminoso enxergou no crime a única possibilidade, mesmo diante de um sistema como esse, ele deve ser tratado de forma a melhorar sua capacidade de identificar as situações disponíveis e avaliar suas relações de custo/benefício. Tratá-lo duramente possivelmente elevará nele a sensação do risco da atividade criminosa, mas não o fará enxergar nenhuma das outras possibilidades como preferível. Isso pode aumentar seu medo, mesmo que não influa em nada na sua decisão. Os trabalhos de ressocialização, por outro lado, buscam a reintegrar o indivíduo à sociedade, auxiliando-o notar as possibilidades todas disponíveis e a avaliar melhor o custo-benefício que apresentam. A solução é entregar os castiçais.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A coletivista aliança liberal-conservadora

Ah, o ímpeto e a vontade de derrubar a esquerda! Tão fortes em alguns, que os fazem inclusive esquecer os princípios que sempre defenderam! Pois, veja, não é senão jogar no lixo toda a defesa do individualismo a proposição de alianças entre os liberais e conservadores.

Liberais ouvem, diariamente, uma chamada dos conservadores: “há mais pontos em comum que de discordância entre nós! Vamos, camaradas, à luta contra a esquerda!” De fato, mesmo a noção de haver tanto em comum entre liberais e conservadores é falsa. Se analisarmos os pressing points da direita e os da esquerda, nos veremos, muitos de nós surpresos, concordando com muito mais frequência com nossos vizinhos canhotos.

Conservadores se gabam, quando o assunto é tocado, de ser melhor administradores que os esquerdistas. Isso pode até ser verdade, ao menos em sua retórica de free market, mas a diferença é bem menos abismal do que a lupa dos conservadores, seletiva, costuma mostrar. Focam em public healthcare e bailouts, mas, se nos distanciarmos dessa lupa – e apenas alguns passos são necessários – veremos os republicanos cedendo a lobbies das seguradoras com tanto afinco quanto os democratas, e veremos os bailouts acontecendo da mesma forma, como quando, em 2008, Bush doou quase 20 bilhões de dólares às montadoras GM e Chrysler.

Na ponta do lápis, os conservadores talvez efetivamente sejam os melhores gestores públicos dessa dualidade, mas a distância entre eles é bem pequena pra compensar as noções estapafúrdias dos conservadores.

Enquanto a esquerda defende que as pessoas devem ser respeitadas pelo que são, a direita faz questão de pressionar pelo direito de não respeitar. Enquanto a esquerda defende a liberdade de qualquer um fazer o que quiser com seu próprio corpo (razão pela qual são chamados de liberals nos Estados Unidos – e, embora chateado pela cooptação do termo, fico ao menos aliviado que quem o adotou pelo menos defende algum tipo de liberdade), a direita chega a absurdos, como propor que sejam proibidos o ensino de educação sexual, o sexo anal e oral, uma intensificação da guerra às drogas (já hoje responsável por mais da metade dos encarceramentos nos EUA e, acredito, no Brasil) que, no fundo, significa não uma redução de impostos, mas um aumento.

Todo o argumento conservador pela união com os liberais cairia por terra baseado nesse único ponto, aliás. Como defender uma redução do Estado, se uma das propostas mais em voga da esquerda – a flexibilização/liberação do comércio e uso de drogas –, é atacada dia após dia pelos conservadores? Brincando um pouco de Bastiat e tentando ver o que não se vê fica bem evidente que a esquerda, ao defender o fim da guerra às drogas, saiba ela ou não, está defendendo também a redução do aparelho mais opressor do Estado, sua mão armada. E está defendendo uma redução dos custos com trâmites legais e dos custos de manter encarcerados não apenas traficantes, mas qualquer pessoa cuja quantidade de droga seja superior ao limite que o próprio Estado estabeleceu pra determinar se você é traficante ou consumidor. É como se você pudesse ter dois quilos de arroz na despensa, mas, por alguma razão misteriosa, um saco de cinco quilos pudesse te deixar preso por até quinze anos. E garantir que você seja sustentado por impostos até sua liberdade.

Imaginem a economia que isso geraria aos cofres públicos! E a sensação de segurança que teríamos ao deslocar nosso aparato policial da caça ao tráfico (que, assim como a máfia do álcool, deixaria de existir) à segurança pública propriamente dita! E o tanto que o judiciário se beneficiaria dessa flexibilização, então? Imagina se todos os casos estritamente ligados ao comércio e transporte de drogas simplesmente desaparecesse dos bureaus de nossos magistrados, em quantos meses nossos processos não se agilizariam? Mas não! Temos muito mais em comum com os conservadores, dizem. Mesmo alguns liberais, na pressa de se diferenciar da esquerda, acham por bem concordar com essa visão. Melhor que eu, quem diagnosticou esse traço humano foi Chesterton:

“All modern thinkers are reactionaries; for their thought is always a reaction from what went before. When you meet a modern man he is always coming from a place, not going to it. Thus, mankind has in nearly all places and periods seen that there is a soul and a body as plainly as that there is a sun and moon. But because a narrow Protestant sect called Materialists declared for a short time that there was no soul, another narrow Protestant sect called Christian Science is now maintaining that there is no body”, disse ele em What’s Wrong With the World. Esse tipo de mentalidade tende a criar o dualismo de situação/oposição, deixando a análise crítica à margem e permitindo que alguns esquerdistas que, muitas vezes carregados de bom senso, esqueçam tudo para defender “o inimigo de seu inimigo”. Como os EUA não são muito chegados a um chavismo, Maduro vira herói. E como os EUA não são muito amigos de Cuba, os médicos cubanos tornam-se milícias treinadas para a guerrilha.


Mas que defendo, então, eu? Já deve estar evidente que não defendo nenhuma aliança com os conservadores. Mas, igualmente, não defendo aliança com os esquerdistas. E, surpreendentemente, sequer defendo uma aliança conosco mesmos. Mesmo entre liberais há discordâncias – a questão do aborto é uma que divide liberais, por exemplo, devido à sua complexidade.

Se é esta a questão mais relevante para você, dane-se se fulano é liberal, ele discorda frontalmente de você nesse quesito. Você não precisa ser parte de um coletivo, seja ele de esquerda, de direita, centrista ou liberal. Você não precisa seguir ninguém. Essa é a beleza do ser humano: por mais que tentem prendê-lo, ele já nasce livre pra pensar. E, por mais que tentem podá-lo, ele é livre pra crescer por conta própria.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A regulamentação da mídia

Quem defende a regulação da mídia pelo Estado, em geral, está insatisfeito com os discursos repetitivos da nossa mídia tradicional, que dá pouco espaço a alguns assuntos que seguramente mereceriam mais tempo de exposição e melhor apuração. A doença, muito bem diagnosticada, não reage bem ao remédio proposto.

É preciso, sim, discutir o sistema de concessões públicas do espectro eletromagnético, tornado artificialmente escasso tanto por regulamentações estatais quanto pela demanda tecnológica. Entretanto, regular é limitar. Não é possível aumentar a pluralidade de vozes reduzindo o número de pessoas com autorização para falar, por mais que a retórica seja a de romper com o oligopólio.

Foi a regulamentação (e eventual fiscalização) das rádios que acabou com as centenas de rádios "piratas" que existiam, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Ao ler "Rebels on the Air", de Jesse Walker, é impossível não ficar pelo menos um pouco irritado com o que aconteceu às rádios comunitárias para dar espaço às redes de rádio concessionárias. Dá pra ver o oligopólio se formando pouco a pouco, sua silhueta tão ampla quanto os apertos das novas restrições.

Entretanto, aparentemente, o melhor que costumamos ver no sentido de "democratização da mídia" são propostas para que o governo troque de amigos. É como se estivessem dizendo: "chega de Marinhos e Abravanéis, tá na hora dos Souzas e dos Costas". Mas os Souzas inevitavelmente escolhidos sofreriam do mesmo mal que os Marinhos. Muda o dono da bola, mas o dono do campinho ainda é mesmo. O aluguel a se pagar pra brincar nele é o mesmo peleguismo monocórdio que vemos hoje.

E o pior: quanto mais regulamentação, mais fácil fica restringir a oposição nos momentos em que ela se faz mais vocal.

Vejamos o caso da Venezuela, por exemplo. Um canal de TV que cobria os protestos de rua da Venezuela foi tirado do ar. Se você já chamava a Globo de golpista por mostrar pouca coisa, ou apenas um dos lados, imagina o que é ver um canal de TV ser tirado do ar porque mostrava uma versão dos eventos que não condizia exatamente com o que o governo venezuelano estava afim de mostrar. Imagina ver jornalistas sendo presos por tentar mostrar, não a impossível realidade integral, mas ao menos um pedaço dela, ali presente. Uma das interpretações possíveis.

Imagina não poder mais dar nem mesmo sua própria opinião na internet, porque o twitter saiu do ar quando o provedor estatal de internet bloqueou o ip do site.

Sim, é por isso que se luta quando se pede pela democratização da mídia.

Eu, entretanto, serei a última pessoa que você vai ouvir dizer que acha que está tudo bem com nosso sistema de concessões. Vamos discutir os melhores métodos de gerenciar o espectro. Vamos analisar a questão como John Locke analisava o homesteading, tão ignorado por todas as autoridades desde sempre justamente por não prover benefícios especiais a nenhum amigo do rei. Vamos tentar olhar além do senso comum de que o espectro é público e do que é possível fazer com isso. Vamos ver no que dá mudar as coisas a partir da origem do sistema atual.