segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Gregorio velho do estado que já está aí mesmo

Publiquei isso aqui um tempo atrás falando do Gregório Duvivier no site do Liber. Acabei esquecendo de colocá-lo aqui também.

***

Não sou marxista, stalinista, petista ou lulista, até porque sou humorista e não acredito nessa coisa de ideologia. Dizem isso só porque eu defendo aquele estado maroto, presente, fomentando e intervindo. É claro que eu defendo: que seria da classe artística sem um editalzinho? Se for depender do privado, a gente fica sem cinema da retomada, sem teatro alterna, sem dança contemporânea, esse monte de coisa que a classe média adora mas não sustenta. Tudo que é privado é uma droga: Calypso não precisa de subsídio, né?

Pensa bem, o mundo não seria muito melhor se todos vivessem de edital cultural e concurso público? Repartição pública é meio deprimente, mas sem elas o que seria da juventude desse nosso país? Tenho certeza de que o mercado de cursinhos ajuda muito a nossa economia.

Todo mundo sabe que os melhores hospitais são privados, mas eu, que não sou direita-nem-esquerda-mas-comediante, acho que o problema é que o estado não é atuante o bastante. Quarenta porcentinho da produção nacional abocanhada pelo governo não é o suficiente. Acho que esse governo está muito acanhado na arrecadação, está na hora de um esforço maciço de achaque do contra-cheque do trabalhador, senão o SUS não aguenta.

Educação está no mesmo bonde. A particular pode ser até melhor, mas a culpa é da falta de grana, de professores, de material, de salas, de almoço, mas do governo não pode ser. Acredito que o governo faria bem se não fizesse mal. Diria Falcão, pior seria se pior fosse.

Aí vocês me perguntam: e aqueles que não têm acesso à saúde nem à educação pública? Ninguém mandou nascer no Brasil, amigo. Se vira aí. O mundo é meritocrático. Se quiser entrar em universidade pública top que nem a USP, estuda para a Fuvest. Mamar na vaca você não quer, hein? Aí você vai me dizer que só entra numa universidade pública uma pequena minoria. Ora, eu não ralei minha bunda todo dia no cursinho para colocar meus filhos na mesma faculdade que o meu motoboy.

Quando o motoboy cair da moto e morrer na fila do SUS, tudo muda. Aí a família dele pensa: “Puxa, precisamos melhorar a saúde pública”. Então os parentes votam em alguém melhor na próxima eleição. Eles vão se esforçar mais para mudar os rumos de Pindorama. Chega de inércia política. Se o povão aprender a escrever e fazer conta e ainda tiver bom atendimento médico, acaba acomodado. Aí não dá. Principalmente porque tem que sobrar grana para a música instrumental depois de financiar a saúde.

Bom mesmo era entregar o país nas mãos de um puta político. Tipo a Dilma, o Lula, o FHC, o Collor, o Sarney. O JK foi um herói, segundo a mini-série. Jango, um injustiçado, e o Jânio tinha a vassourinha que varria a corrupção. Se o político passado não resolveu o problema, a gente tenta outro até dar certo. A gente pode continuar tentando o mesmo método que dá errado há um século, uma hora tem que encaixar. É que nem trocar de técnico no futebol, vai que resolve. É disso que o Brasil precisa: mais estado e impostos se necessário, para financiar nossa saúde, educação, talvez uns editais para os meus colegas, uns financiamentos subsidiados para o Eike, uns concursos para a classe média que lota os espetáculos do Z.É.: Zenas Emprovisadas.

Não preciso nem ligar para político nenhum. Tudo que eu quero é o que já existe mesmo.

domingo, 5 de outubro de 2014

Dazed and Confused

Dos desenvolvimentos mais desagradáveis da "nova direita" no Brasil são os novos fãs adolescentes conservadores, representados por figuras lamentáveis como Bolsonaro (chamado "mito", adjetivo dispensado a qualquer nulidade atualmente, ao que parece). Para esse público, a ditadura militar foi só uma grande "zueira" por 20 anos com a "esquerdalha". Para eles, a esquerda não sabe que "aparelho excretor não reproduz" e isso é extremamente engraçado (aparentemente o pênis deixou de fazer parte do processo reprodutivo humano).

A opressão estatal deixou de ser um problema e agora é muito engraçada. Minorias serem desrespeitadas é muito engraçado. A política é apenas um grande circo e não envolve as vidas e a riqueza e a pobreza de milhões de pessoas. É só mais uma forma de justificar a violência policial e justificar preconceitos. E fazer montagens de políticos com metralhadoras em cima de velociraptors.

Quem diria que a juventude seria representada pela fantasia de um sistema social que idealiza a sociedade de 70 anos atrás.

sábado, 13 de setembro de 2014

O que eu tenho escrito

Um dos melhores textos que já escrevi, inspirado bastante sobre minhas leituras sobre o imperialismo brasileiro e o sistema corporativista que se desenvolveu principalmente a partir dos anos 1990 no país, Como as privatizações criaram novas estatais no Brasil:
As “privatizações” no Brasil não foram marcadas por qualquer transferência ou pulverização de poder e controle econômico; elas, efetivamente, foram reestruturações corporativas que mudaram muito pouco a distribuição do controle econômico e modificaram o regime jurídico das empresas apenas o suficiente para que se tornassem economicamente viáveis novamente.

Evidentemente ocorreram melhorias técnicas e aumentos produtivos; é também evidente que esse era o objetivo inicial das reestruturações, que não incluía qualquer mudança substancial no controle acionário das empresas “vendidas”. As privatizações brasileiras não foram uma maneira de livrar o estado do controle sobre empresas, mas foi a maneira que o estado brasileiro encontrou para manter o controle sobre elas.

A campanha eleitoral de 2014 conta com alguns candidatos que pretendem reavaliar os méritos das privatizações. Discutir as privatizações não é nada novo; a cada quatro anos há um novo ciclo de condenações a elas pontuados por alguns elogios infundados. A realidade é que apoiadores e opositores das privatizações falam de processos ideais imaginários. Poucos falam da realidade das privatizações no Brasil: não foi “entreguismo”, “privataria”; também não foi o ápice da “eficiência” e “enxugamento do estado”. Foi uma reformulação do aparato estatal e a inclusão da classe corporativa em seus quadros.
Aécio Neves e a ideologia tecnocrata, falando sobre como as ideias tucanas, apesar do marketing novo, são apenas mais uma iteração da velha tecnocracia:
Eleitores de políticos como o candidato à presidência Aécio Neves, assim como muitos apoiadores do PSDB de forma geral, se surpreendem pela falta de impacto de ideias atreladas à “eficiência” do setor público, que buscam um “choque de gestão” e a “profissionalização” do governo. É um pensamento moderadamente disseminado, que também era encabeçado no governo de Pernambuco (mais como manobra de campanha do que como política efetiva, vale ressaltar) por Eduardo Campos, morto no último dia 12 de agosto. No fundo, a crença é de que existe — ou ao menos deve existir — uma separação vital entre administração pública e política; entre ideologia e eficiência. Contudo, a ideia de profissionalizar a política, de colocar “técnicos” nos cargos públicos, de “gerir” a coisa pública como se fosse uma firma convencional é, em si, profundamente ideológica.
Por que os debates eleitorais são um circo fala sobre a ideia do jornalismo como mediação entre a elite e o público. O jornalismo, assim, não precisa recorrer aos fatos, mas só a uma projeção do "interesse público":
Os debates presidenciais televisados novamente são o centro dos comentários no Brasil. E novamente nós nos vemos “sem vencedor claro” e pouca ideia de que tipo de discussão assistimos entre os potenciais eleitos. Por que isso acontece?

O jornalismo moderno, uma versão do ideal de Walter Lippman de intermediação dos fatos entre o público e as elites, é especialmente adaptado à produção corporativa de notícias e análises. Como observou Kevin Carson, o modelo jornalístico atual requer mínima referência aos fatos, já que os fatos não são independentemente importantes e devem ser avalizados por algum tipo de elite de “especialistas”.
Eduardo Campos morre mas suas ideias infelizmente sobrevivem tenta escapar do revisionismo hagiológico da biografia de Eduardo Campos, que foi apenas mais um na linhagem de políticos corporativistas e patriarcalistas brasileiros:
Talvez seja inevitável que a morte de um político expressivo seja explorada de maneira sórdida pelo exército de interessados em se beneficiar de parte de sua memória. Eduardo já foi lembrado como uma “liderança promissora”, um “negociador”, um “estadista” que “transcendia divisões partidárias”. E isso tudo é mentira. Por isso talvez seja mais necessário ainda lembrar o que a entrevista de terça-feira de fato mostrou o que Eduardo Campos era: um político da velha guarda, ligado ao velho sistema e à velha elite, ao velho capitalismo de compadrio; um coronel personalista na tradição nordestina de fazer política.
O magnata dos ônibus e a coleção de vinis que você comprou para ele fala do caso curioso do dono de empresas de ônibus de São Paulo com a maior empresa de vinis do mundo, contada pelo New York Times. Sua riqueza aparentemente não foi perturbadora para quem escreveu a matéria, mesmo com os protestos de 2013 no Brasil inteiro:
Voltando para 2014, recentemente, o New York Times publicou uma reportagem (“The Brazilian Bus Magnate Who’s Buying Up All the World’s Vinyl Records“, 8 de agosto) que conta a curiosa história do dono de uma empresa de ônibus com uma coleção impressionante de vinis. É impossível exagerar a extensão da coleção de Zero Freitas, de 62 anos, dono de uma empresa que atende a periferia de São Paulo: ele mesmo só consegue estimar os números da coleção chegando a “vários milhões”.
Também tentei falar da tentativa de desumanizar os usuários de crack em O discurso do crack:
Em sua visita ao Brasil, perguntaram ao neurocientista Carl Hart o que ele pensava sobre o termo “Cracolândia”. Hart respondeu: “Com esse nome, nós mostramos para a sociedade como vilanizar certos grupos de pessoas”. É verdade. Ao falarmos da “Cracolândia”, divorciamos a questão de nossa realidade. A Cracolândia passa a ser um mundo separado em que vigoram regras diferentes da nossa vida ordinária.
E, por último, escrevi uma dobradinha de textos que falam sobre o relacionamento dos sindicatos do Brasil com a estrutura corporativa atual em A individualização dos problemas trabalhistas e Como o governo, empresas e sindicatos culparam você pelo seu desemprego:
A tendência a individualizar os problemas sociais pode soar como uma das pseudoexplicações sociais típicas do século 19, mas é uma ideia que não morreu. Como já escrevi anteriormente, o pensamento de que os indivíduos são responsáveis pela própria situação de desemprego por falta de qualificação é moeda corrente no governo, em empresas e sindicatos.

O discurso da qualificação para o “mercado de trabalho” toma a estrutura existente de produção e de emprego como dados e, se os trabalhadores não conseguem se inserir nessa estrutura, o problema é a falta de iniciativa individual. Esse discurso, naturalmente, nunca aparece de maneira destilada, mas é o substrato de muitas das defesas de cursos de capacitação e na lembrança permanente de que há “vagas de

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os jogadores de videogame são, sim, tóxicos

Em um thread na timeline de um amigo no Facebook, algumas pessoas comentavam sobre a comunidade gamer, em relação a um artigo publicado no Examiner ("The gaming community is not a wretched hive of sexism and misogyny", 1 de setembro). O argumento principal de alguns comentadores é que, na verdade, jogadores de videogame não são tão tóxicos enquanto comunidade e que fazer esse tipo de afirmação poderia ser um tipo de estereotipação.

Meu comentário na discussão foi o seguinte (em inglês):
Okay, I've read the article, and now I can reply properly do Liam Jones and comment on the piece as a whole. As Ashley said, I was just joking on my inability to open the article, but it's true that I don't hold gamers in the highest regard.

It's true that it's a generalization to say that gamers as a community are toxic, but it's a useful one. In my experience, it's like saying that drunk people shouldn't be trusted behind the wheel - a useful rule of thumb.

I don't play online games mostly (only with friends, so I can cut down on the abuse), but my current girlfriend and my previous one do. They have been harrassed multiple times just because people listened to their voice during games. They tend to not talk for precisely that reason. I've seen complaints about online communities in several games (in this case, I can testify that League of Legends and WoW have terrible fans - and that taking into account that on average Brazil players are even worse, with their childish antics and stupid laughs). Ryot has even hardened their stance on toxic behavior online, because it was unbearable. They've recently banned a few pro players (the ones who bring in the cash) because they were being deemed a liability. Eve Online's developer did the same.

The harassment of Anita Sarkeesian is another case in which gamers as a community failed to act as if they deserve to be treated like adults. There are several other cases I could mention.

So yeah, in a sense it might be stereotyping, but my experiences and the experiences of people at large I've read about really do seem to paint a bad picture on gamers.

The article itself is very poor; the author says it's annoying to have people complain you're immature and inadequate all the time, and that games should not try to cater to a demographic they are not targeted at.

Well, first of all, of course it's annoying, but activists aren't trying to be nice. As a feminist friend once said, if they wanted to be nice, they would make a lasagna, not do activism. And saying that developers shouldn't be concerned by the content they put in their games is a copout - it's like saying that blackface performances aren't targeted at black people, so lighten up, blackie!

People are trying to be heard and to have their concerns represented. And games are part of culture, and as such promote or replicate messages that can and should be assessed by their value as a whole. I'm not saying that *all* complaints about video games are valid, but that gamers have been acting as if the medium is above critical analysis, because fun! It's not.

My Masters is actually on games and narratives. From my own interactions with some communities, it has been a problem to have them recognize that the content they consume is important to analyze critically, taking into account all the "social justice concerns," and to have them see that there are large segments of their player base who don't feel welcome or are harrassed in one way or another. That doesn't apply only to minorities, but also to very standard nerdy, white or otherwise not-"alpha" enough people who try to interact online.
Gamers, enquanto comunidade, precisam deixar a ideia de que sua expressão cultural é exclusivamente de nicho. Respeitabilidade enquanto cultura traz algumas responsabilidades e uma delas é que o conteúdo que você produz e consome passará por escrutínio público.

Eu ainda não tenho claras para mim quais são as causas desses comportamentos ruins nas comunidades gamer, mas é fato que eles existem e que devem ser combatidos. Se é possível eliminá-los por inteiro sem remover parte do que torna os jogos únicos, é uma questão em aberto.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O problema com o movimento pelos "direitos dos homens"

O movimento de "direitos dos homens" (em inglês, Men's Rights Activism - MRA), também chamado no Brasil de masculinismo, utiliza diversas estatísticas fora de contexto para avançar suas ideias de que homens, na verdade, são socialmente oprimidos. Recentemente encontrei um post no Facebook que listava algumas dessas estatísticas especificamente listadas para provar que, na verdade, os homens estão em situação desfavorável. O post era o seguinte:
40% das vítimas de violência doméstica são homens
94% das mortes e acidentes industriais acontecem para homens
75% de todas as internações em clínicas para tratamento de vício em droga
vem de lar sem pai
42% dos que se formam na universidade são homens
90% dos divórcios são requerido por mulheres
30% dos pais que registraram uma criança em seu nome ao fazer um teste de DNA descobrem que NÃO SÃO os pais biológicos
85% das crianças que apresentam distúrbios de comportamento provém de lar sem pai
71% das desistências no ensino médio são de lares sem pai
60% MENOS verba é destinada pelo governo para pesquisas sobre câncer de próstata em comparação à verba destinada para pesquisas sobre câncer de mama a despeito de vitimarem igualmente
80% dos suicidas são homens
63% dos suicídios de jovens estão relacionados a lares sem pai
76% dos assassinados são homens
90% dos moradores de rua são homens
90% das crianças de rua provém de lares sem pai
85% das detenções juvenis provém de lares sem pai
97% das mortes em combates desde a Guerra do Golfo foram de homens
90% dos pedidos de guarda por parte do pai são RECUSADOS.
Algumas dessas estatísticas são falsas (como a de violência doméstica), mas eu decidi escrever uma resposta mais extensa sobre por que o uso dessas estatísticas não faz qualquer sentido dado os objetivos dos masculinistas.
O problema com o MRA é que é um movimento que wants to have their cake and eat it too.

Eles querem manter uma cultura que estipula certos comportamentos culturais para os homens e não querem assumir os custos desses comportamentos.

Vamos deixar de lado a estatística mentirosa sobre violência doméstica. Algumas dessas outras estatísticas são falaciosas também, mas vamos tomá-las pelo valor de face.

A penúltima estatística, por exemplo, afirma que 97% dos mortos em combates militares desde a Guerra do Golfo são homens. Não sei se é uma estatística verdadeira, mas vamos presumir que seja.

O dado omitido é que mulheres historicamente são mais contrárias a intervenções militares e tendem a não entrar no exército. Nos EUA o alistamento não é obrigatório nem para homens nem para mulheres; os homens, porém, culturalmente procuram mais o serviço militar e são empregados em posições de combate.

Essa estatística é tão irrelevante quanto dizer "95% dos executivos que se suicidam são homens", porque omite o fato de que entre os executivos há uma proporção esmagadora de homens. Também seria absurdo dizer que não há discriminação contra negros porque dentre as pessoas que pagam mais impostos os negros são os que menos pagam - o que pode ser verdade, mas que omite o fato de que negros pagam menos impostos proporcionalmente porque têm rendas menores.

Outro dado: mulheres são maioria nas universidades (a proporção nos países ocidentais gira em torno de 60% de mulheres, 40% de homens e também já vale para o Brasil). Esse eu posso atestar que é verdadeiro.

O que esse dado não diz é que os homens tendem a deixar os estudos por causa de demandas para que assumam a liderança financeira da casa, por exemplo, o que os força a arranjar empregos e impede que estudem.

Por outro lado, as mulheres também tendem a completar mais os estudos por causa do paternalismo de que elas não devem entrar no mercado de trabalho e devem se concentrar mais a atividades intelectuais por causa de sua natureza delicada, etc. E isso não leva nem em conta o fato de que cursos técnicos, por exemplo, como de engenharia são fortemente dominados por homens por motivos banais, enquanto mulheres tendem a entrar em áreas classicamente consideradas "femininas", como psicologia - reforçando a ideia de que os homens são os únicos capazes de fazer o heavy lifting no trabalho, enquanto as mulheres são as únicas capazes de empatia humana.

Quer dizer, o patriarcalismo empurra os homens para fora da universidade e empurra as mulheres para dentro por motivos essencialmente iguais e essencialmente estereotipadores.

A estatística sobre as guardas infantis também me parece verdadeira, mas ela é revoltante justamente por isso.

Ela significa que juízes (majoritariamente homens, inclusive) ainda veem a mãe como a "provedora" dos filhos e, também por motivos paternalistas, tende a dar a guarda a ela. O pai ainda é culturalmente visto como um acidente e não como parte integral da criação e da vida da criança, o que faz com que os argumentos dele para a guarda infantil após a separação sejam vistos como mais fracos.

A estatística sobre crianças de rua só reforça essa ideia. Os homens aí não são vítimas, são os culpados: crianças de rua tendem a sair de lares sem pai. É verdade que crianças de rua tendem a advir de lares desestruturados; e isso acontece porque culturalmente os homens não assumem sua responsabilidade familiar e social em pé de igualdade com as mulheres. Nas favelas, mães solteiras em dificuldade econômica predominam. Se os filhos dessas mães acabam em situação de dificuldade, isso torna os homens, que fugiram de sua responsabilidade como pais, vítimas ou agressores?

Em resumo, os dados, mesmo que verdadeiros (e alguns são manipulados), contam outra história.

Eles dizem que os homens que não desejam se sujeitar à visão de masculinidade clássica que grupos de ativismo masculinista são desprivilegiados em relação aos homens que assumem seu papel dentro de uma cultura patriarcalista, que coloca as mulheres em posição de fraqueza e deveres com a família, enquanto os homens ao mesmo tempo devem ser provedores mas têm menos deveres familiares ou sociais.

É por isso que as estatísticas do MRA são falaciosas.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

DIVULGADO O ESCÂNDALO QUE TODO MUNDO SUSPEITAVA! O PT VENDEU O BRASIL PARA CUBA. OU: O COMUNO-EURASIANISMO JÁ É UMA REALIDADE EM TERRAS TUPINIQUINS. ABAIXO EXPLICO MELHOR

Talvez isso explique a razão do jornalista Reinaldo de Azevedo ter declarado a seguinte frase: "Se as pessoas soubessem o que aconteceu no Foro de São Paulo ficariam enojadas".

O que está exposto abaixo é a notícia em primeira mão que está sendo investigada por vlogues e podcasts de todo o Brasil e alguns estrangeiros, mais especificamente The Alex Jones Show e Talk Show com Evandro Sinotti, e deve sair na mídia em breve, assim que as provas forem colhidas e confirmarem os fatos.

FATO COMPROVADO: O PT VENDEU O BRASIL PARA CUBA. Os políticos petistas foram avisados, às 13:13 do dia 13/13/2013 (aniversário de 700 anos do PT), em uma reunião envolvendo o Sr. Vladimir Putin (na única vez que o presidente russo compareceu ao Brasil), o ditador cubano Raúl Castro e o sósia oficial do Zacarias na Bolívia, Evo Morales. Os políticos de outros partidos permaneceram em isolamento, em seus helicópteros ou iates regados a prostitutas. A princípio muito contrariados, os políticos petistas se recusaram a trocar as benesses do capitalismo corporativista pela miséria socialista, que paga os salários em arroz e papel higiênico.

A aceitação veio através do pagamento total dos prêmios, $MN 6.000.000,00 (seis milhões de pesos cubanos) e mil rolos de papel higiênico para cada político mais um bônus de $MN 400.000,00 e 20kg de frango para todos os integrantes do MST, num total de $MN 1.500.000.000,00 (um bilhão e quinhentos milhões de pesos cubanos) mais os frangos e os rolos de papel higiênico. Os prêmios foram pagos através da, em breve, União das Repúblicas Eurasianas Soviéticas (URES). Além disso, os políticos que aceitarem o contrato com a ITAR-TASS (agência de notícias estatal soviética) nos próximos 4 anos terão as mesmas bases salariais dos dirigentes máximos da empresa, como Stalin e Lenin.

Mesmo assim, Eduardo Suplicy se recusou a participar dessa jogada, o que obrigou a presidenta Dilma a substituí-lo por Paulo Maluf, dizendo que Suplicy estava com planos de ter uma banda cover do Racionais (em primeira notícia divulgada às 13:13 no centro de imprensa) e, logo depois, às 13:45, alterando o pronunciamento para “chamou os black blocs de companheiros e companheiras”.

A sua situação só foi resolvida após o representante da PDVSA ameaçar retirar o patrocínio vitalício ao Supla, filho do político, avaliado em mais de Bs 90.000.000,00 (noventa milhões de bolívares venezuelanos) ao longo da sua carreira (sem trocadilho).

Assim, combinou-se que o Brasil seria vendido durante o segundo mandato da presidenta Dilma, porém a apatia que se abateu sobre os políticos petistas fez com que a Coreia do Norte, que absolutamente não participou desta negociação, adquirisse, de uma vez só, 240 toneladas em armamentos através do Porto de Mariel em Cuba e já começasse a implantação do comuno-eurasianismo mundial.

O Sr. Vladimir Putin, presidente da Rússia, cidadão russo-soviético, aplaudiu a colaboração dos políticos petistas, uma vez que a nova Guerra Fria trará equilíbrio à disputa geopolítica. Garantiu que a cúpula do PT teria seu caminho facilitado para Miami para desfrutar de suas férias eternas.

Por gentileza, passem esta mensagem para o maior número possível de pessoas, para que todos possam conhecer a sujeira que ronda a política!

Desde já, agradeço, um abraço.
Olavo de Carvalho, filósofo na instituição de ensino Completo.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Contra Consta


Cartum certeiro de Carlos Latuff, o novo companheiro de causa dos libertários, de acordo com Rodrigo Constantino

Escrevi, no final de março, um texto que, como muitos outros da época, falava sobre Cláudia Silva Ferreira e sua morte brutal nas mãos de policiais militares, baleada e arrastada pelo asfalto por uma viatura. O fato ganhou notoriedade porque ilustrava tanto o descaso da polícia brasileira quanto seu modus operandi violento.

Rodrigo Constantino, autointitulado "liberal sem medo da polêmica", não achou o caso digno de nota. Nenhum texto, dentre as dezenas de artigos sofríveis publicados diariamente em seu blog no site da revista Veja, tratou do caso. Na verdade, um tratou, incidentalmente. O Trovão da Razão decidiu fazer um texto criticando parágrafo a parágrafo o meu, que, segundo ele, era "sensacionalista" e mostrava que "alguns 'libertários' mais parecem comunistas".

Em geral, não vejo motivos para comentar nada do que diz Rodrigo Constantino, pelo simples fato de que considero a esmagadora maioria das coisas que o sujeito escreve puro lixo, verborragia vulgar travestida de liberalismo na melhor das hipóteses — e, na pior, uma tentativa patética de estigmatizar pessoas e elevar suas opiniões pessoais caricatas ao nível de discussão intelectual.

Mas desta vez foi diferente. Inicialmente, pensei em não responder a seu ataque risível (tanto é que demorei a escrever uma resposta), mas mudei de ideia; em parte porque algumas pessoas vieram pessoalmente pedir para que eu respondesse, mas também porque acho relevante esclarecer minhas posições e responder a visões similares às de Constantino. Evidentemente, não se trata de um debate — eu jamais pensaria que seria possível ter um debate intelectual honesto com Rodrigo Constantino.

Porque seu texto, embora seja um comentário estendido ao meu, não menciona meu nome nenhuma vez. Pelo contrário, Constantino a todo momento parece atacar "os libertários", "alguns libertários", a "garotada libertária". Comportamento estranho. Ao que parece, o blogueiro é incapaz de dar uma resposta direta a mim, como se eu fosse responsável pelo que diz todo o grupo de pessoas que se rotula como "libertário". Pensei em fazer o mesmo e, em vez de direcionar a resposta a Rodrigo Constantino, direcioná-la à Veja, aos moradores da Barra da Tijuca, aos conservadores. Desisti no último minuto.

De fato, o texto de Constantino começa com uma anedota sobre um seu amigo que saiu para um chopp com a "garotada libertária" e ficou horrorizado com as opiniões que ouviu, que associou ao PSTU, ao PSOL e ao PCO. Segundo Constantino, os libertários veem o governo americano como "grande ameaça mundial", Israel como "o capeta do Oriente Médio", a polícia como "fascista" e a solução para todos os problemas na anarquia.

Notem que nada disso tem qualquer coisa a ver comigo. Eu não saí com o amigo de Constantino e nem sequer moro no Rio de Janeiro. Minhas opiniões não são as opiniões das pessoas que saíram com Constantino, nem as delas são minhas. No entanto, Trovão trata as opiniões de pessoas diferentes como intercambiáveis, transitando entre visões que ele atribui ao coletivo e argumentos individuais expostos no meu texto como se tudo fizesse parte de uma só bolha de "ideias libertárias". Patético.

Por outro lado, só o fato de Constantino se chocar com opiniões negativas sobre o governo americano, Israel e a polícia diz muito sobre suas inclinações ideológicas. O imperialismo americano não é motivo para qualquer consternação constantinesca, o fato de Israel manter um povo inteiro sitiado como política de estado é apenas par for the course e a violência policial no Brasil não passa de necessidade de serviço. E, de acordo com ele, são os "libertários" que estão "mais longe do liberalismo clássico do que Plutão da Terra". Ele não deve ter avisado os liberais clássicos de sua aproximação, senão os coitados dos liberais se afastariam.

O que meu texto dizia?

Estes foram meus argumentos centrais:
1) Cláudia Silva Ferreira foi morta por conta da negligência, do descaso e da violência sistemática utilizada pela Polícia Militar, principalmente contra moradores de favelas, especialmente os negros, que são automaticamente identificados como criminosos;

2) A militarização dá um poder grande demais à polícia, que resulta em atrocidades como o caso de Cláudia;

3) A proibição às drogas causa a guerra atual que ocorre nas favelas em todo o Brasil, que vitima principalmente os moradores dessas comunidades.
Por isso, eu defendi tanto a desmilitarização da polícia quanto a legalização das drogas, tanto para tirar o poder dos traficantes quanto para evitar que os policiais entrem em rota de colisão com os próprios moradores das favelas.

Para Constantino, eu receitei uma "panaceia". Eu, ao contrário, acredito que recomendei uma solução bastante pragmática e realista. Em nenhum momento falei que eliminaria todos os crimes. Meu texto inteiro só apontava para o fato de que, com o fim da proibição às drogas e a desmilitarização da polícia, a violência nas favelas fatalmente diminuiria. A polícia não teria que subir à favela para apreender drogas, moradores não seriam baleados apenas por viverem lá. Constantino parece ter tido muitas dificuldades para ler meu texto, uma vez que criticava a posição de que "basta legalizar todas as drogas que tudo será um maravilhoso mundo pacífico, habitado por trocas apenas voluntárias e sem truculência policial ou sem sequer a necessidade de a polícia subir morros". Não faço ideia de quem defendeu essa posição. Se algum dos leitores conseguir identificar quem fez a defesa dessa radical ideia, por favor indique nos comentários.

Defendi, na verdade, algo que tem se tornado cada vez mais comum entre economistas e sociólogos. A proibição das drogas gera violência desnecessária e danos colaterais. No Brasil, o combate às drogas ainda feudalizou as favelas, que vivem sob controle dos traficantes (o próprio surgimento das favelas é mais um fracasso do estado em regularizações fundiárias e em políticas de zoneamento, que levariam os pobres para longe dos centros urbanos). Com o fortalecimento e o entrincheiramento do tráfico, a polícia se torna cada vez mais violenta. Os números não mentem.

Racismo não existe se eu não quero vê-lo

Passando aos comentários, o blogueiro logo se revolta porque, em minha descrição da morte de Cláudia, eu destaquei o fato de ela ser negra. Diz o "liberal" sem medo da polêmica: "Por que mencionar a cor da vítima? Qual a relevância disso? Por acaso ela foi morta por ser negra? Alguém está mesmo disposto a bancar essa tese esdrúxula?"

It just so happens de eu estar muito disposto a bancar essa tese nada esdrúxula. No Brasil, os negros lotam as penitenciárias e morrem em proporção muito maior do que os brancos – e são muito mais mortos pela polícia. Na atividade policial, é comum o racial profiling (“perfilamento racial”); se você for negro, fatalmente será parado e revistado pela polícia somente pelo fato de ser negro – porque se encaixa num suposto perfil de criminoso. Os direitos individuais desaparecem num passe de mágica.

Constantino não reconhece nada disso, porque, para ele, não é ideologicamente conveniente. Porque aí ele pode continuar a tratar o racismo como um problema menor, a violência policial como apenas um pequeno problema a ser resolvido com “treinamento” e “maiores salários” para os policiais.

A incapacidade crônica de compreender figuras de linguagem

Em meu artigo, eu escrevi, ironicamente, que por causa da existência das drogas, a polícia é “obrigada” a subir nos morros, para combater essa ameaça palpável à segurança da sociedade. Era uma ironia óbvia para atentar para o fato de que, em si, as drogas não necessariamente são causadoras de violência.

Rodrigo Constantino, homem das letras, articulista, colunista de Veja e O Globo, aparentemente foi incapaz de entender e pergunta: “Quer dizer que a polícia sobe o morro só porque o tráfico de drogas é ilegal? Não há outros crimes nas favelas?” Infelizmente para ele, a polícia realmente não precisaria subir o morro para apreender drogas se as drogas fossem legalizadas. Esse era o argumento central do parágrafo que ele mencionava ipsis litteris, mas que foi incapaz de interpretar.

Mais à frente, meu artigo dizia o seguinte:
Dados esses fatos, fica claro que uma desmilitarização debilitaria demais a força da polícia, impossibilitando qualquer tipo de combate ao crime. Se queremos que alguém suba nos morros para apreender malotes de cocaína e maconha, temos que ter soldados.
Outra ironia; é claro que eu não penso que a desmilitarização debilitaria demais a força da PM. O problema, justamente, é o fato de que a polícia é muito forte. Desmilitarizá-la não a “debilitaria”, mas simplesmente normalizaria a polícia (a militarização, por sinal, é exceção no mundo; as polícias no exterior não são militares, mas civis. No Brasil, manter o regime separado para policiais virou bandeira para o conservadorismo).

Constantino novamente não percebeu a ironia: “O autor reconhece que desmilitarizar a polícia iria debilitar demais sua força, mas depois defende… justamente isso!” Sim, eu realmente defendi, porque é isso que ironias são: instrumentos retóricos que consistem na afirmação do contrário do que se quer dizer.

Posso aqui fazer um mea culpa: talvez eu não tenha sido claro o suficiente na minha intenção ao escrever. Talvez eu tenha superestimado meus leitores. Talvez eu tenha pensado que meu artigo não seria lido por um Rodrigo Constantino.

A minimização do problema das drogas

Na conclusão de meu artigo, escrevi:
Continuar a pensar que a brutalidade policial é uma exceção não vai nos levar a lugar nenhum. A violência da polícia brasileira é institucionalizada e necessária para as políticas do governo. Não é possível controlar o comércio de drogas sem o uso brutal da força por parte da polícia. Ao mesmo tempo, a luta contra o tráfico é necessária para manter a legitimidade do estado, que deve sempre se empenhar no combate ao “crime”. Com as atuais políticas de drogas, não há nenhuma possibilidade de acabar com a violência policial, porque sem ela o estado não conseguiria afirmar sua força.
Constantino respondeu a esse meu parágrafo basicamente defendendo o meu ponto: dizendo que os policiais estão envolvidos em verdadeiras “guerras urbanas”. Foi exatamente isso que eu pretendi mostrar em todo o meu artigo; na realidade, o que eu pretendi dizer, ainda, foi que essa guerra não é inevitável e que pode ser mitigada com o fim do combate às drogas.

Ele acrescenta:
Outro detalhe que os “libertários” sempre ignoram convenientemente: praticamente todos os países do mundo proíbem drogas, especialmente as mais pesadas (e quem diria que legalizar só a maconha resolveria alguma coisa?), e nem por isso vivem em uma guerra civil dominada pelo tráfico.
Os “libertários” (continuo sem entender as aspas, já que nem o próprio Constantino se considera libertário; o que indicam as aspas? Ironia? Paráfrase?) não ignoram o fato de que a maioria dos países do mundo não vive em situação de calamidade urbana por conta do combate às drogas; os libertários só reconhecem a situação específica do Brasil e de alguns países na América Latina na questão: uma conjunção de fatores como crescimento urbano e demográfico específicos da região, a própria proibição e o perfil de atuação policial no país.

Rodrigo Constantino prefere ignorar tudo isso. Também prefere ignorar o caos ocasionado pelo combate às drogas até em países ricos. Parece desconhecer também princípios básicos de debate, como a leitura caridosa. Eu gostaria de dizer que Constantino argumenta em nível de redação do ENEM, mas provavelmente ele zeraria a prova por fuga ao tema.

Constantino prefere acreditar num conto de fadas heroico em que os policiais estão bravamente lutando contra as forças do mal para proteger a população. A verdade – o sistema de poder que se retroalimenta e mantém as drogas ilegais para benefício tanto de traficantes quanto de políticos – é menos romântica.

É interessante notar que, pelos comentários ao meu texto, Constantino dá a entender que minhas ideias são absolutamente heterodoxas – como se os efeitos econômicos da proibição já não fossem extensivamente estudados. Porém, é conveniente para ele tratar minhas visões como bizarrices, porque, afinal, seu objetivo não é nada muito diferente do status quo.

Mas não há nada de novo sob o sol e os efeitos da proibição das drogas hoje continuam sendo os mesmos que os da proibição do álcool nos anos 1920 nos EUA. Até mesmo políticos têm melhor acesso às substâncias proibidas. Como Warren G. Harding, que mantinha um estoque de bebidas alcoólicas bastante respeitável na Casa Branca durante a proibição nos Estados Unidos, e o senador Zezé Perrella, fundador da empresa que transportava meia tonelada de cocaína por helicóptero e aliado histórico de Aécio Neves, candidato à presidência apoiado por Rodrigo Constantino.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A neutralidade da rede e suas mentiras

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 28 de março. Também estão disponíveis versões em inglês e em italiano.

Tentei encontrar um único, singelo e mísero exemplo de censura ou discriminação de conteúdo nos serviços de internet fornecidos atualmente no Brasil. Procurei casos em que os provedores estavam bloqueando acesso a sites específicos ou oferecendo planos mais caros para acesso a mais conteúdo. Por incrível que pareça, não encontrei.

Pensei que eu poderia estar fazendo algo de errado, porque, afinal, estou procurando na própria internet. Talvez o meu provedor de internet estivesse censurando minhas buscas e, ao digitar “censura por provedores de internet” no Google, o próprio provedor já poderia estar filtrando meus resultados. É possível que eu vivesse numa Matrix internética, tudo o que eu vejo é o que querem que eu veja e talvez eu nem me dê conta.

No entanto, eu consegui encontrar diversos usuários criticando o serviço do meu próprio provedor na internet. Aparentemente, meu provedor está falhando miseravelmente na sua tentativa de censurar os usuários. Também fui capaz de acessar sem problemas sites de empresas concorrentes e orçar seus serviços, que, em alguns casos, eram mais vantajosos para mim.

Impossível. Tentei entrar em sites que poderiam gerar algum desconforto ao meu provedor. Sites que defendem posições políticas radicais e fora do mainstream, por exemplo. Não tive problemas em acessar o C4SS. Minha barra de favoritos, composta de sites libertários e anarquistas, continua incólume.

Consigo ver e baixar vídeos, ouvir e baixar músicas. Sites de torrent continuam acessíveis; não podemos dizer que provedores de internet sejam muito simpáticos a eles. Mas continuam a um clique de distância no navegador. Não importa quais sites eu acesse e a quantidade de dados que eu baixe, continuo pagando a mesma tarifa mensalmente. Quem diria?

Eu não acreditei no que estava vendo, porque, pelo que me dizem, a internet deveria estar quase totalmente fechada para mim. Sem uma regulamentação de neutralidade da rede, os provedores cobram mais caro para acessar sites e podem até censurar o que eu posso ou não posso ver, de acordo com meu plano de dados.

É isso que Alessandro Molon, deputado do PT carioca, afirma. Segundo ele, sem a aprovação do Marco Civil para a internet, “quem hoje acessa de graça o Youtube vai ter que pagar mais para assistir vídeo, quem baixa música vai ter que pagar mais para baixar música“.

Por um minuto eu desejei muito que meu provedor cobrasse mais caro para eu assistir vídeos do Youtube, para que eu não tivesse acesso ao site e não tivesse que ouvir as mentiras ridículas de Alessandro Molon.

Porque toda a argumentação em favor do Marco Civil da Internet aprovado pela Câmara dos Deputados na última terça é baseada em mentiras, alarmismo e num impulso regulatório totalitário. A neutralidade da rede não passa de um chavão vazio.

Afinal, o governo alega que quer garantir a “liberdade” da internet no Brasil, que está ameaçada pelos provedores. Será?

O estado brasileiro é o segundo colocado em solicitações de retirada de conteúdo do Google. Não muito tempo atrás, era o líder. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que qualquer “conteúdo ofensivo” deve ser retirado do Youtube.

Portanto, ônus de provar que a exigência governamental de neutralidade da rede vai aumentar nossa liberdade é de seus defensores.

Não há a menor necessidade de defender a internet desregulamentada das alucinações de Alessandro Molon e Jean Wyllys de que os provedores – e não o governo – estão prestes a cercear toda a liberdade que temos hoje em dia. É justamente o contrário.

O deprimente dia das viúvas da ditadura

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 26 de março. Também está disponível em inglês.

Muitas pessoas nutrem uma certa simpatia pela ditadura militar que governou o Brasil até os anos 1980. Não é incomum ouvir dos mais velhos que, naquela época, havia empregos, que a educação pública era decente, que a violência não estava fora do controle como nos dias atuais, que o país estava em ordem. E é fato que o país estava em ordem. Mas a quem servia essa ordem?

A ditadura, efetivamente, impôs algo que se assemelhava a “ordem”. Como todo governo autoritário, não tinha que responder a ninguém, censurava opositores e policiava ostensivamente as ruas em busca de atividades “subversivas”. Violência? Existia, mas era abafada pelo governo. As informações que surgiam eram apenas as interessantes para o regime e os opositores eram sistematicamente calados e perseguidos.

Mesmo a ideia de que o país prosperava economicamente durante os anos de chumbo é patentemente falsa. O “milagre brasileiro” dos anos 1970, que consistiu basicamente em inflação e endividamento público para financiar grandes projetos estatais (como a famosa rodovia Transamazônica), colocou o país no caminho do colapso econômico. Que de fato ocorreu: o Brasil foi o Zimbábue dos anos 1980, uma década perdida, de empobrecimento, sofrimento para o povo que convivia com uma inflação que chegava a 3000% ao ano. Convenientemente, os mais nostálgicos do regime não lembram desses fatos.

E mesmo quando lembram, minimizam os problemas. O número de mortos e desaparecidos por perseguição política durante a ditadura brasileira é calculado em cerca de 400. Como esse número absoluto é relativamente “baixo” se comparado aos regimes militares do resto da América Latina ou mesmo o de regimes comunistas como o de Cuba, os mais autoritários descartam qualquer discussão do tema como pequeno problema. O que é, naturalmente, um completo absurdo, porque a avaliação da justiça do regime militar não é uma quantificação rasteira do número de cadáveres. Para eles, Vladimir Herzog foi apenas um caso “excepcional” e não o modus operandi do regime.

Este 22 de março foi o dia de as viúvas da ditadura celebrarem suas ilusões sobre o regime que fez com que o Brasil parasse no tempo por 20 anos.

Com os 50 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade (que foi chamada de Marcha da Vitória pelo regime que se instalou em 1964), certas alas conservadoras decidiram organizar “protestos” em várias cidades pelo Brasil. As novas “Marchas da Família” foram às ruas.

Pediam uma nova “intervenção militar” contra a “ameaça comunista” no Brasil. Pediam o restabelecimento da farsa que era a ordem durante a ditadura. Ouviram-se gritos “Viva Médici” e “Viva Geisel”. O fato de essas manifestações celebrarem sujeitos pífios como o deputado Jair Bolsonaro diz muito sobre os ideais políticos defendidos por quem foi as ruas.

Porém, não podemos dar uma importância indevida às marchas, já que não saiu tanta gente assim às ruas. A de São Paulo reuniu cerca de mil pessoas. No Rio, cerca de 200 compareceram. Contingentes quase irrisórios em cidades gigantescas. Sem mencionar as deprimentes reuniões de cerca de 6 pessoas no Recife e 9 em Natal. As viúvas da ditadura encenaram um espetáculo triste, não apenas por conta das visões retrógradas defendidas, mas também por conta de sua irrelevância.

Os jornais brasileiros consideraram pertinente cobrir as marchas, mas, se elas nos mostraram algo, é que sua ideologia e seus valores, como a ditadura, ficaram enterrados no passado. São fósseis que apenas alguns poucos querem desenterrar.

Esses poucos grupos que saíram às ruas hoje querem voltar no tempo, mas não perceberam que não têm mais o controle do relógio político. E provavelmente nunca mais terão.

Cláudia Silva Ferreira foi regra, não exceção

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 24 de março. Também estão disponíveis versões em inglês e em italiano.

O crime de Cláudia Silva Ferreira, no último dia 16, foi morar no lugar errado e ter a cor de pele errada. Saía para comprar R$ 3 de pão e R$ 3 de mortadela com um copo de café à mão. Os policiais acharam por bem não arriscar. Nunca se sabe quão letal pode ser um copo de café na mão de uma mulher negra, pobre e moradora da periferia. Deram dois tiros na faxineira, que já a deixaram estendida no chão, tórax perfurado. Foi carregada até a viatura policial na qual seria levada para o hospital. Os bancos traseiros estavam cheios de armamentos, então não podiam receber um corpo ferido – a polícia deve ter prioridades. Foi colocada no porta-malas, que abriu no trajeto. Seu corpo ficou preso no para-choque e foi arrastada por cerca de 350 metros pelo asfalto até ser empurrada de volta para dentro do carro. Ela morreu.

A Polícia Militar negou o que os moradores do Morro da Congonha, em Madureira, subúrbio do Rio, viram. Segundo a PM, Cláudia foi encontrada já baleada. Na mesma operação, a PM matou um suposto traficante, feriu e prendeu outro e apreendeu quatro pistolas, rádios e drogas. Talvez tenham pensado que valeu a pena, afinal são as drogas que destroem famílias.

Se não existissem as drogas, a Polícia Militar não teria sido obrigada a subir o morro, não teria se deparado com a imagem ameaçadora e violenta de uma mulher negra de 38 anos com um copo de café nas mãos, não teria sido obrigada a disparar dois tiros em sua direção, nem tido o incômodo de carregar um corpo para dentro de uma viatura para ser conduzido ao hospital. Mas as drogas continuam destruindo famílias. A própria Cláudia criava 8 crianças em sua casa, 4 filhos e 4 sobrinhos. Por causa das drogas, sua família foi desfigurada.

E como exigir que militares prestem socorro a uma mulher ferida? Eles são militares por um motivo. São chamados “soldados” (os policiais envolvidos na operação, especificamente, eram dois subtenentes e um sargento) e são enviados para uma guerra. A ideia de proteção é completamente alheia a uma organização militar e a PM prova isso a cada dia em que invade uma favela e vê os moradores apenas como potenciais danos colaterais ao invés de vidas a serem protegidas.

Dos envolvidos, desde 2000, o subtenente Adir Serrano Machado, o mais eficiente de todos, já esteve envolvido em 57 ações que sofreram resistência, com 63 mortos. O subtenente Rodney Miguel Archanjo foi um pouco mais comedido, envolvendo-se em 5 ocorrências, com 6 mortos. O sargento Alex Sandro da Silva Alves, por outro lado, debutou no domingo em que Cláudia foi baleada, seu primeiro auto de resistência.

Dados esses fatos, fica claro que uma desmilitarização debilitaria demais a força da polícia, impossibilitando qualquer tipo de combate ao crime. Se queremos que alguém suba nos morros para apreender malotes de cocaína e maconha, temos que ter soldados.

Mas será que é mesmo isso que queremos?

Porque soa bem na propaganda eleitoral dizer que o policiamento nas favelas aumentou e que o combate as drogas foi intensificado. Mas o que isso significa de fato é que centenas de Cláudias Silvas Ferreiras vão continuar a morrer. Porque o único jeito de manter o asfalto seguro e ilusoriamente sem drogas é baleando gente inocente no morro.

Continuar a pensar que a brutalidade policial é uma exceção não vai nos levar a lugar nenhum. A violência da polícia brasileira é institucionalizada e necessária para as políticas do governo. Não é possível controlar o comércio de drogas sem o uso brutal da força por parte da polícia. Ao mesmo tempo, a luta contra o tráfico é necessária para manter a legitimidade do estado, que deve sempre se empenhar no combate ao “crime”. Com as atuais políticas de drogas, não há nenhuma possibilidade de acabar com a violência policial, porque sem ela o estado não conseguiria afirmar sua força.

Por ora, a PM poderia publicar um panfleto com atividades suspeitas que os cidadãos honestos devem evitar, como ser negro e andar com um copo de café na mão numa favela.

O Brasil vai ferver - de novo

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 17 de março. Também estão disponíveis versões em inglês e em espanhol.

Ao interrogar na última quinta-feira (13) Juliano Torres, diretor-executivo da rede acadêmica Estudantes Pela Liberdade (EPL), a Polícia Federal se certificou de que teria à disposição todo o roteiro de viagens internacionais feitas por ele nos últimos meses, para que sua tentativa de intimidação fosse muito mais incisiva.

A PF brasileira tem intimado para depor (ou, como chamam os burocratas, “prestar esclarecimentos”) diversos indivíduos percebidos como lideranças dos protestos que ocorreram durante a Copa das Confederações, em junho. O EPL teve certo envolvimento nos protestos, e suas várias páginas no Facebook coordenaram a participação de vários grupos nas manifestações. Juliano Torres, então, foi interrogado a respeito de todo o seu envolvimento político e institucional – tendo que explicar até mesmo de onde saiu o financiamento para suas idas ao exterior. (O que deve nos fazer recordar o real motivo da existência dos passaportes: controle e vigilância da população.)

O contingente libertário das redes sociais rapidamente se mobilizou em suporte a Juliano Torres contra as táticas ditatoriais da PF, mas deve-se lembrar de que não são só os libertários que estão sendo alvos do governo brasileiro. O mesmo tratamento tem sido dispensado a diversos indivíduos envolvidos em manifestações políticas, notoriamente aqueles ligados à Marcha da Maconha e ao Movimento Passe Livre.

A Copa do Mundo deste ano e as Olimpíadas de 2016 jogaram rapidamente o país em estado de exceção, liberando o governo e a polícia para empregarem táticas cada vez mais repressoras e autoritárias. Com a desculpa de assegurar a segurança para os eventos internacionais, o governo brasileiro ganhou a conveniente justificativa de que precisava para reforçar a vigilância na internet, recrudescer a repressão às manifestações nas ruas e, pior, fortalecer o estado policial totalitário que já vigora nas favelas. No Rio, em particular, a sensação de terror domina as favelas “pacificadas”, em que os moradores vivem sob a mira dos fuzis da PM, sendo efetivamente cidadãos de segunda classe, sem direitos civis. A polícia, ao fechar o cerco em determinadas favelas, ainda empurra a força do tráfico de drogas para as favelas mais distantes do centro e, por isso, “invisíveis” – tolerando ainda a existência das milícias, que lutam pelo controle dessas áreas.

A visita dos ativistas de classe média à PF, em comparação, é um agradável passeio no parque.

Com a carta branca de que precisava para violentar a população, o governo se sentiu à vontade nos últimos anos para potencializar a exploração econômica dos cidadãos comuns. Os protestos de junho, precipitados pela condição precária dos transportes urbanos em todo o Brasil, são sintomáticos. Os gigantescos subsídios estatais a imóveis (efetivamente, apenas repasses governamentais às empreiteiras) fizeram com que as metrópoles brasileiras crescessem absurdamente na última década e transformaram o país num dos mais caros do mundo – de quebra, jogando o Brasil numa bolha imobiliária similar à dos Estados Unidos. A infraestrutura urbana brasileira não suportou esse choque e cai aos pedaços.

Os estádios construídos para a Copa do Mundo catalisam a revolta popular por serem ralos de dinheiro público, mas ainda escondem a tragédia humana das desapropriações violentas dos imóveis de milhares de famílias. Tudo pelo bem do esporte, evidentemente; por uma Copa no padrão FIFA.

Por isso, quando ícones do futebol como Ronaldo colocam o dedo na ferida, servem de garotos-propaganda oficiais e afirmam que não se faz Copa do Mundo com hospitais, é ainda mais doloroso. São manifestações assim que não deixam morrer o grito de que “Não vai ter Copa” entoado pelos black blocs.

Portanto, o Brasil atualmente é o paraíso da violência estatal, que fortalece a casta atual de petistas que se encontra no poder e garante os lucros das empreiteiras e demais corporações ligadas ao regime. É por essas e muitas outras que o governo brasileiro está certo em temer novas manifestações. É por essas e outras que a PF terá que separar muitos outros registros de viagens internacionais.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Os problemas das informações dispersas e do cálculo social sob um sistema de cotas e uma abordagem liberal do racismo


O Brasil, marcado em sua história pelos grilhões da escravidão negra e da segregação racial, que terminaram, no papel, sem nenhum tipo de compensação ao povo escravizado, relegado à indigência e à marginalidade, o governo federal resolveu criar um sistema de cotas para ingresso em suas universidades. Suponhamos que as cotas sejam perfeitamente proporcionais ao número de pessoas que se identificam com cada etnia, para facilitar nossa suposição, e, para deixar tudo ainda mais fácil, suponhamos que a população esteja perfeitamente dividida em 50% para cada uma das etnias formadoras.

Entra em vigor um sistema de cotas onde, suponhamos, é possível dizer com precisão absoluta a que etnia cada pessoa pertence, margem de erro zero. Qual o argumento esperado de um liberal a esse respeito?

Comentarei um trecho de artigo de autoria de Vinícius Campos Pinto, e meus motivos para discordar da abordagem de Vinícius sobre o assunto. Primeiro, Vinícius parece admitir a existência de um problema social ligado ao racismo, à homofobia, entre outros. Isso é um grande passo, porque não faltam por aí liberais achando que isso é tudo ficção em países, desde que a lei já provenha a igualdade entre todos os seres humanos nas suas cartas de direitos humanos.

Pois bem, o argumento de Vinícius é provavelmente o mais recorrente entre os opositores dos sistemas de cotas, e também o mais superficial: "O sistema de cotas nada mais é que dizer ao afrodescendente que o mesmo não tem capacidade de disputar aquela vaga com os demais; é dizer que, por algum motivo, por sua condição de afrodescendente, sua capacidade é menor. Este fato não caracteriza o preconceito?"

Efetivamente, dizer que alguém que veio de uma história de segregação e de um presente não particularmente inclusivo não tem condições de disputar a vaga com os decendentes de homens livres, cujo índice de marginalização sequer se aproxima daquele encontrado entre os negros, não é preconceito: é uma observação válida e verdadeira. A busca por uma solução para esse tipo de problema é louvável. O problema está na solução apresentada.

O sistema de cotas impede o "cálculo social" do preconceito. Ao forçar a entrada de uma etnia em detrimento de outra, perde-se a noção da proporção de cada etnia que entraria naturalmente na universidade se as cotas não estivessem presentes, e fica impossível saber a hora de suspender as cotas universitárias.

Como o Brasil usa um sistema de ingresso universitário baseado em avaliação objetiva e competição direta entre os candidatos, seria possível apontar para as notas dos candidatos e, quando as médias das duas etnias estiverem suficientemente próximas, suspender o sistema de cotas.

Surge, no entanto, outro problema. Qualquer cota criada é um estímulo para a parte prejudicada se dedicar mais, e um desestímulo à parte beneficiada. A tendência esperada de um sistema como esses é, a princípio, um aumento na média geral de ambas as etnias no momento da seleção. Depois, como um ajuste de mercado, a percepção de que a competição está mais acirrada para um lado, e mais frouxa para o outro, e os secundaristas (que não são estúpidos) reagirem de acordo com essa realidade.

A tendência, portanto, é a nota dos negros, no longo prazo, cair, enquanto as notas dos brancos tenderiam a subir. Isso potencialmente prorrogaria o sistema de cotas indefinidamente.

Além disso, ao estipular um sistema de cotas de 50% para todos os cursos, cria-se um outro problema: embora as populações estejam divididas proporcionalmente, é possível que em determinado ano os negros tenham demanda no curso de medicina superior à dos brancos, que buscam em maior número, de acordo com nossa suposição, o curso de direito. A divisão em 50% entre os cursos torna-se inválida, pois seria necessário manter a ponderação de vagas entre cada etnia de acordo com sua demanda por cada curso para que se configurasse uma situação de justiça.

Por fim, o argumento que me parece mais sonoro contra o sistema de cotas é acreditar que a diferença de escolaridade é a base do preconceito. Não é. Gays que o digam. Não existe diferença significativa de escolaridade entre homo e heterossexuais, mas negar a homofobia é tão insensato quanto negar o racismo. Em média, as mulheres brasileiras estudam mais que os homens. Isso não impediu a existência do machismo.

As cotas tentam corrigir uma discrepância criada pelo racismo histórico brasileiro sem atacá-lo efetivamente onde importaria, dando uma maquiagem de justiça ao igualar o acesso de ambas as etnias à universidade. Isso apenas tornaria mais morna a questão racial no Brasil, mais tolerável aos olhos de quem se importa apenas marginalmente com o assunto.

Essa solução das cotas sofre de um problema generalizado na mentalidade política brasileira, a idéia deturpada de que a educação formal é uma panacéia. Entretanto, médicos negros também sofrem com o racismo, depois de seis anos de universidade e sabe Deus quantos de residência. Sofrem com o racismo até mesmo daqueles que nunca pisaram numa escola, que nunca aprenderam a ler. A mobilização contra o racismo não pode partir de cima pra baixo. É preciso incutir na população a certeza de que os indivíduos não são sua etnia, que as etnias não podem ser piores ou melhores umas que as outras simplesmente porque elas não dizem respeito aos indivíduos, mas a traços que agregam pessoas com passado ou genética comuns.

Negros não são negros, e brancos não são brancos. Sua individualidade está acima de sua etnia. Ninguém é o arquétipo ideal do rótulo guarda-chuva onde se abriga. O combate ao preconceito passa obrigatoriamente pelo reconhecimento de indivíduos como tal, pessoas que estão acima da cor da pele ou da carga cultural que traz de seus ancestrais. O sistema de cotas não contribui para isso de forma alguma. Pelo contrário, ele isola de forma sólida e grosseira os indivíduos em seus rótulos, como pequenas redomas das quais não podem sair.

domingo, 16 de março de 2014

Respeite quem pode chegar onde a gente chegou


Publicado originalmente no Mercado Popular.

Rodrigo Viana deixou de ser fã do liberalismo clássico e expressou sua insatisfação em texto publicado recentemente aqui no Pop Market. Fiquei insatisfeito com o texto de Rodrigo Viana.

Contra Rodrigo Viana, eu vejo o liberalismo como uma doutrina viva, atual, relevante e revolucionária. Vale muito à pena defendê-lo, mais ainda assumir o seu legado, sua história e suas vitórias. Rodrigo Viana pensa que não. Para ele, o liberalismo apenas funcionou de modo "mais ou menos razoável" para "derrubar a Antiga Ordem e o poder político absoluto, os abusos da igreja e do mercantilismo".

Como se fosse pouco.

Vamos colocar as coisas em perspectiva aqui, porque é fácil cair na conversinha de que essas foram vitórias menores, lutas políticas importantes, mas que foram vencidas com contribuição marginal das ideias liberais.

O mercantilismo e o poder absoluto conviviam lado a lado com as instituições feudais, que só foram varridas do mapa de fato com as revoluções liberais europeias nos séculos 17, 18 e até o 19 (e, na verdade, tão resistentes que eram, em alguns países, sobreviveram até o século 20). O mercantilismo não era um sistemazinho qualquer de comercialismo tranquilo para as massas; era um arranjo especificamente desenhado para extrair o dinheiro do bolso da plebe e passar para as carteiras adornadas da nobreza e da realeza. Era um sistema baseado em restrições cruéis ao trabalho e à produção. O historiador marxista Christopher Hill descreveu como era a vida de um cidadão inglês comum no século 17:
"É difícil para nós nos colocarmos na situação de viver numa casa construída com tijolos monopolísticos, com janelas (se existissem) feitas com vidros monopolísticos; aquecida por carvão monopolístico (advindo de lenha irlandesa monopolística), que queimava numa grelha feita com ferro monopolístico. Suas paredes eram forradas com tapeçaria monopolística. Ele dormia sobre penas monopolísticas, arrumava seu cabelo com escovas monopolísticas e pentes monopolísticos. Ele tomava banho com sabonete monopolístico, suas roupas limpas com amido monopolístico. Se vestia em renda monopolística, linho monopolístico, com linhas folheadas a ouro monopolísticas. Seu chapéu era de pelugem de castor monopolística, com uma faixa monopolística. Suas roupas eram suspensas por cintos monopolísticos, botões monopolísticos, alfinetes monopolísticos. Eram tingidas por tinturas monopolísticas. Ele comia manteiga monopolística, groselha monopolística, arenque monopolístico, salmão monopolística e lagostas monopolísticas. Sua comida era temperada com sal monopolístico, pimenta monopolística, vinagre monopolístico. Tomava vinhos e aguardente monopolísticos com copos monopolísticos; em canecas de estanho monopolístico, bebia cerveja fabricada com lúpulo monopolístico, mantida em barris monopolísticos ou garrafas monopolísticas, vendida em estabelecimentos com licenças monopolísticas. Fumava tabaco monopolístico em cachimbos monopolísticos, jogava com dados monopolísticos ou cartas monopolísticas e tocava alaúdes monopolísticos. Escrevia com canetas monopolísticas em papéis monopolísticos; lia (com óculos monopolísticos, iluminados por velas monopolísticas) livros impressos por monopólios, incluindo Bíblias monopolísticas, gramáticas latinas monopolísticas, impressas em papel feito com trapos coletados por monopólio, envolvidas por couro de carneiro monopolístico e alúmen monopolístico. Atirava com pólvora monopolística feita com salitre monopolístico. Se exercitava com bolas de golfe monopolísticas e em pistas de boliche com licenças de monopólio. Um monopolista coletava as multas que ele pagava por proferir palavras de baixo calão." (Christopher Hill, The Century of Revolution 1603-1714, pgs. 31-32)
Hoje, Rodrigo Viana faz campanha contra os monopólios e sua influência destruidora na sociedade. Fair enough, mas, na minha opinião, ele não viu o tipo de monopólio enfrentado pelos liberais de antigamente. Monopólios esses que, quando quebrados, levaram às revoluções industriais por todo o mundo, que elevaram o padrão de vida das massas a um nível sem precedentes. (Posso prever que Rodrigo não concordaria com a minha caracterização da Revolução Industrial; mas eu diria que a caracterização dela como apenas uma adaptação da estrutura institucional do poder é errada, porque desconsidera os ganhos reais de produtividade e no padrão de vida nesse tempo. Essa interpretação é anti-econômica. Seria impossível haver ganhos substanciais de produtividade sem a liberalização genuina do movimento de capitais e trabalho. Isso não significa, é claro, que a Revolução Industrial tenha sido um mar de rosas.)

Viana minimiza essas conquistas porque as considera banais, dados do mundo moderno. Não são. Toda a história da humanidade foi marcada por monopólios, desigualdade política e econômica, exploração e transferência forçada da riqueza das classes baixas para as classes dominantes. As ideias de Smith, Ricardo, Turgot, Quesnay, abriram os portos do mundo todo e acabaram com a fome, sanearam as cidades, ensinaram os pobres a ler.

Montesquieu triparticionou os governos do mundo todo, desconcentrando o poder das mãos dos reis e dos aristocratas. Locke colocou sobre o governo o fardo de justificar qualquer poder que tivesse (e, muito relutantemente, concedeu que ele teria algum poder, apesar de conceder que a anarquia do estado de natureza parecia muito atraente). A influência da Igreja era demais? O liberalismo tirou o poder político dos cardeais e o colocou dentro das fronteiras estreitas do domínio privado.

Os liberais levaram ao cidadão comum - o sempre injustiçado, esquecido, o perpétuo peão do tabuleiro político, já diria William Graham Sumner - o direito de questionar leis e impostos. Se é possível pensar que impostos são uma injustiça, podemos agradecer a Thomas Paine, a Patrick Henry, a Samuel Adams.

Quando as instituições resolveram que permitiriam a escravização aberta de um grupo de pessoas (nas Américas, notoriamente os negros), liberais como William Lloyd Garrison e Joaquim Nabuco levantaram a voz e disseram "Peraí!". Quando as mulheres não tinham direitos, os liberais defenderam que elas pusessem sair de seus casamentos, serem indivíduos juridicamente plenos e até possuir propriedades.

Instituições extremamente perversas que dominaram o mundo por milênios e foram varridas por quem? Vou nem dizer, o leitor é esperto, já deve ter captado a mensagem.

É perturbador que alguém olhe para essas conquistas do liberalismo e diga: "Valeu, campeão, mas você é meio fraco, né? Tem essas palhaçadas rolando por aqui e você não é capaz de fazer nada quanto a elas?". Quer dizer, é um pouco estranho olhar para as instituições opressivas que restam e dizer que o liberalismo não foi capaz de lidar com elas. E aquelas outras de que você nem lembra mais?

O que Viana quer dizer, evidentemente, é que os liberais não possuem as ferramentas teóricas necessárias para um combate eficaz ao poder dominante atualmente. Mas ele está errado. O liberalismo, em sua compreensão correta, radical como era exposto por seus maiores nomes, é o ideário mais forte que existe contra o poder e a opressão que ainda restam no mundo. E ele é capaz de fazer isso pelos mesmos motivos que foi capaz de combater as opressões do passado.

A versão aguada do liberalismo exposta por uma carrada de liberais hoje em dia é historicamente aberrante - provavelmente advindo de uma aliança infeliz com os conservadores contra um dos movimentos mais destrutivos da história da humanidade, o comunismo.

Rodrigo quer mostrar que o anarco-individualismo que ele defende é superior ao liberalismo clássico, que não levou suas críticas longe o bastante. Mas, ao contrário, o liberalismo e o anarco-individualismo podem andar de mãos dadas - e, de fato, historicamente andaram. Os americanos da tradição anarquista reconheciam esse fato. Benjamin Tucker considerava liberais como Gustave de Molinari seus companheiros de luta. Lysander Spooner partia de uma base lockeana para afirmar os direitos individuais à vida e à propriedade e desafiar a legitimidade de qualquer governo.

Herbert Spencer, o maior liberal da segunda metade do século 19, longe de estar satisfeito com os rumos das ideias liberais, assistia deprimido a chegada do século 20, século das guerras e do imperialismo. Viana pode apontar para isso e dizer que as ideias dele não eram fortes o bastante para combater a chegada do estado total. Mas nesse caso, o que dizer de Tucker, que não via mais solução para a sociedade no começo do século 20, com o totalitarismo imposto nos EUA durante a Grande Guerra e todos os seus controles econômicos?

Ideias não agem sozinhas e, por mais que certas ideias sejam verdadeiras, a contingência da história pode fazer com que jamais sejam aplicadas. A vitória do movimento liberal ao longo dos séculos não esteve, claro, em sua ferrenha consistência argumentativa, mas em suas conquistas factuais, que legaram ao mundo as liberdades que as pessoas atualmente exigem. O liberalismo foi tão bem sucedido que, hoje, não aceitamos nem mesmo a pobreza como o natural da condição humana. E, se o liberalismo é um fracasso por não ter feito mais, quero que o Rodrigo Viana liste para mim as vitórias do anarquismo individualista, já que ele pensa que este seja um movimento tão discrepante do liberalismo.

Podem jogar qualquer coisa na direção do liberalismo e ele dirá "been there, done that". Então, como disse corner de Mason Dixon em Rocky Balboa: "Show the man a little respect!"

Porque, já diria alguém,

Também somos linha de frente
de toda essa história
[...]
Não se discute talento
Mas seu argumento, me faça o favor
Respeite quem pode chegar
onde a gente chegou

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Ser revolucionário, ser governista

Originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado.

Com os 50 anos da instalação do regime militar no Brasil, o Estadão recentemente publicou alguns artigos que falavam sobre as circunstâncias políticas da época. Um deles, escrito por um general do exército brasileiro (“A árvore boa“, de Rômulo Bini Pereira), repercutiu por sua análise positiva e rósea dos anos de chumbo. Particularmente, chamou a atenção seu uso reiterado da frase “Revolução Democrática” para se referir ao golpe que ocorreu em 1964.

Não surpreende – os defensores da ditadura militar sempre fizeram questão de utilizar a expressão “revolução” por suas conotações positivas e eles não estão sozinhos. De fato, os livros de história usados na época da ditadura todos faziam questão de falar na Revolução Democrática e há um longo histórico de combate dessa cooptação linguística pelos opositores do regime.

Analogamente, a Venezuela atualmente ferve com protestos dos opositores do governo chavista de Nicolás Maduro, que os acusa de “demonizar a revolução”. O meme chegou ao resto da América Latina e é possível facilmente encontrar denúncias aos reacionários anti-Maduro e cartas de amor à “revolução bolivariana”. O tema é antigo nos governos socialistas que chegaram ao poder em várias partes do mundo. Cuba há mais de 50 anos celebra sua “revolução”, que aparentemente nunca termina. A da Venezuela acontece desde 1998 e, mesmo chegando em seu 16º ano, continua subversiva e anti-establishment.

É sintomático que defensores de regimes claramente opressores e exploratórios queiram vestir seus ídolos em roupas revolucionárias. A ordem estabelecida, afinal, é associada a todas os problemas sociais que já existem e revoluções só podem significar a subversão e a potencial solução desses problemas. Daí até mesmo óbvios conservadores como Rômulo Bini Pereira rotulam seu regime preferido como revolucionário.

Para a esquerda estatista, porém, trata-se de um mito fundador. A esquerda originalmente era o partido da mudança, da transformação, contra as amarras do antigo regime. Os estatistas que compõem os grupos corporativistas e social-democratas atualmente mantêm sua estética de rebelião, mas a encaixam num molde pró-governo e chapa branca.

No Brasil, mesmo com o PT no governo há quase 12 anos, a esquerda que o apoia consegue nos empurrar a narrativa de que seu domínio foi uma história de perseguição e rebelião. Há pouco tempo, os condenados por corrupção do Mensalão conseguiram a proeza de distorcer a narrativa a ponto de serem considerados presos políticos por sua base de aliados.

Na Venezuela, mesmo com o regime se aproximando das duas décadas, os chavistas e seus comparsas continuam a se fazerem de vítimas de um complô anti-revolucionário. E a esquerda pró-estado latino-americana faz questão de minimizar a violência contra a população venezuelana e de se agarrar à versão de que tudo não passa de um movimento orquestrado por golpistas da elite contrários às pretensas conquistas sociais do regime.

Mas essa é uma posição esquizofrênica da esquerda. Regimes de décadas de idade claramente não são revolucionários e, particularmente, o regime venezuelano (e o mesmo vale para outros regimes “de esquerda” da América Latina) não passa do mesmo domínio oligárquico com novos slogans.

Ou a esquerda mantém sua imagem punk rock ou abraça de fato sua vontade de idolatrar o estado. Ou seja: ou os esquerdistas se transformam libertários e questionam de fato todas as estruturas de poder ou simplesmente saem do armário e se assumem pelegos por vocação.

Não é possível ter as duas coisas. Os manifestantes venezuelanos certamente agradeceriam se os revolucionários estatistas parassem de justificar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha que os atingem.


Being Revolutionary, Being Statist

Originally published on the Center for a Stateless Society website.

One of Brazil’s largest newspapers, O Estado de S. Paulo, recently published a few articles on the 50th anniversary of the military takeover of the Brazilian government. One of them, written by an Army general (“A árvore boa,” by Rômulo Bini Pereira) has had some repercussion due to its positive and rose-tinted appraisal of the so called “years of lead.” In particular, his use of the phrase “Democratic Revolution” to refer to the military coup of 1964 is conspicuous.

It’s not surprising, however — advocates of the military dictatorship have always made it a point to use the word “revolution” because of its positive connotations, and they are not alone. In fact, history books during the 21 years of the regime were always eager to mention the Democratic Revolution of 1964, and there has been a longstanding resistance against this linguistic cooption of the word “revolution” by political forces that clearly wanted nothing to do with actual change.

In the same vein, during the feverish riots in Venezuela against Nicolás Maduro’s government, the regime has accused the opposition of “demonizing the revolution.” The meme has reached the rest of Latin America and it is fairly easy to find denunciations of the anti-Maduro reactionaries and love letters to the “Bolivarian Revolution.” The theme is old among the socialist governments that have reached power in the world. Cuba has celebrated its continuous “revolution” for 50 years. Venezuela’s is ongoing since 1998, and even in its sweet sixteen continues to be subversive and anti-establishment.

It is understandable that defenders of clearly oppressive and exploitative regimes want to dress their idols up in revolutionary clothes. The current order, after all, is linked to all the social problems that already plague society and revolutions can only mean subversion and the potential solving of those issues. Thus, even obvious conservatives such as Rômulo Bini Pereira find it convenient to label their preferred type of government as “revolutionary.”

For the statist left, though, it is a founding myth. The left was originally the party of change, of transformation, against the chains of the Ancién Regime. The corporatists and social democrats that comprise the statist left nowadays keep this rebellious sentiment, but frame it in a pro-government, establishmentarian rhetoric.

In Brazil, the Worker’s Party (PT) has governed the country for 12 years, and their left-wing supporters have tried to pull the narrative that they have been rebellious and persecuted the whole time. A few months ago, politicians from PT convicted for corruption managed to distort the story so much that they virtually claimed to be political prisoners to their allies.

In Venezuela, even with regime closing in on two decades of rule, Chavistas and their cronies continue to claim to be victims of an anti-revolutionary agenda. And the Latin American statist left is all too happy to minimize the violence suffered by the Venezuelan population and to embrace the version that everything has just been a movement orchestrated by the elite against social progress.

But that is a schizophrenic position. Decades-old regimes cannot be revolutionary. The Venezuelan government, specifically (although the same goes for many other “leftist” states in Latin America) is nothing more than the same old oligarchy with new slogans.

The left can either keep their punk rock self-image or embrace their willingness to idolize the state. Either the leftists can become fully-fledged libertarians and question all power or they can come clean and admit to being lovers of authority. They can’t have it both ways.

Venezuelan protesters would certainly thank the statist revolutionaries if they stopped justifying the tear gas and rubber bullets.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A severidade das penas e os castiçais de Jean Valjean


Existe uma tendência no Brasil, e o movimento liberal não poderia estar isento, de defender punições mais rígidas aos crimes hediondos, redução da maioridade penal, entre outros temas derivados, compreensivelmente, do medo de se viver no Brasil, refém do relógio para fugir de assaltos, dependente de portões elétricos para se refugiar em lares cada vez menos seguros.

Sim, a insegurança no Brasil vai além dos limites do razoável. A população inteira vive em estado de alerta, buscando meios para se proteger e para reagir. Mas o medo é mau juiz. O medo tende a potencializar os feitos, e, portanto, a exagerar as punições desejadas. O raciocínio é o mesmo que enforcou Tiradentes: alguém precisa dar o exemplo. É um pensamento de manada, como o apedrejamento de Madalena. É a ineficiência estatal sendo descontada pelo povo numa espécie de bandido-mártir, em um caso, e um desejo de aumentar a eficiência estatal não através da captura de mais criminosos ou da redução do número de crimes, mas de uma punição mais rigorosa àqueles poucos que de fato são capturados.

A falha do “modelo de Madalena” já foi identificada, não por Cristo, que não convenceria as massas de ateus e agnósticos que povoam os círculos liberais, mas pelas cortes alemãs do século 19, que desenvolveram o princípio da proporcionalidade, e antes disso, até, com o surgimento do tribunal do júri e a percepção de que a punição aplicada de forma direta pela vítima vem carregada pelos excessos promovidos pela dor que lhe foi infligida, o que ultrapassaria os limites da razoabilidade. A idéia do “povo justiceiro”, no entanto, não é das mais caras ao povo brasileiro, apesar de sua execução ter sido tão amplamente noticiada de de casos como esse se repetirem com relativa freqüência. A “justiça pelas próprias mãos”, portanto, não será tema central neste artigo.

Já o “modelo de Tiradentes”, em que o uso excessivo da violência é impetrado pelo Estado, pelo contrário, tem ampla aceitação pelo brasileiro médio, e por isso merece mais atenção. A redução da maioridade penal é apenas uma das formas de defender punições mais rígidas. O desejo por punições cada vez mais severas pode ser identificado de forma assustadora nos comentários a esta matéria da Folha de S. Paulo, que majoritariamente apoiam a prática da tortura contra criminosos. O que pretendo defender aqui é a ineficácia desse modelo, que martiriza o criminoso para que ele sirva de exemplo aos seus colegas.

Começo o meu argumento apontando para um fato que não mudaria com a legitimação de punições como a tortura ou a pena de morte: a impunidade. Se a pena de morte fosse prática comum nas cortes brasileiras, ainda assim, homicidas ficariam muito pouco preocupados. Apenas 10% dos casos de homicídio no Brasil vão a julgamento. Isso não significa que 10% dos homicidas são condenados, representa um dado ainda mais evidente da incompetência ou sobrecarga de nosso sistema jurídico: apenas em 10% dos casos são identificados suspeitos que serão levados a julgamento um dia. Alguns suspeitos, naturalmente, serão inocentados por falta de provas, o que nos deixa com valores ainda mais alarmantes de impunidade, uma vez que um suspeito inocentado equivale a mais um caso de homicídio em que o criminoso segue livre. O argumento da intimidação pelo medo da punição, portanto, é extremamente frágil, considerando-se que a punição muito raramente é efetivada.

Outra fragilidade do argumento das penas mais graves está na imprevisível reação do homem. Quando a pena para o estupro, por exemplo, se iguala à pena para o homicídio, a tendência do estuprador é levar a cabo, além do estupro, o homicídio, pois a vítima não poderá testemunhar contra ele, na escassa possibilidade de ele vir a ser julgado.

É verdade, entretanto, que as pessoas reagem a estímulos, e que estímulos mais fortes serão responsáveis por respostas mais radicais. Então é possível, sim, que punições mais fortes sejam uma das soluções imagináveis para a criminalidade, desde que elas se estabeleçam em um ambiente onde a impunidade seja relativamente baixa (embora na prática a realidade se mostre contrária a esse argumento repetidas vezes).

Como, então, reduzir os índices de criminalidade, se a punição mais severa não é uma resposta eficiente? Um argumento excepcional quanto a isso vem da literatura, de um dos maiores clássicos do Romantismo francês. Como Victor Hugo é muito melhor escritor que eu, deixarei o trecho do roubo aqui, para que a leitura fique mais interessante:
“Chegou um Inverno muito rigoroso, em que João Valjean não encontrou que fazer. Ficou sem trabalho e a família sem pão. Sete criancinhas sem pão!

Num domingo à noite, preparava-se Maubert Isabeau, padeiro com estabelecimento no largo da igreja, em Taverolles, para se deitar, quando ouviu uma violenta pancada na vidraça gradeada da sua loja. Correu imediatamente para ali e chegou a tempo de ver um braço passando por uma abertura feita no vidro com um murro, pegar num pão e levá-lo. Isabeau saiu apressadamente e correu atrás do ladrão, que fugia como lhe permitiam as pernas, conseguindo alcançá-lo.

O ladrão largara o pão no caminho durante a corrida, mas tinha ainda o braço ensanguentado. Era João Valjean.

Passava-se isto em 1795.

João Valjean foi levado aos tribunais daquele tempo «pelo crime de roubo nocturno com arrombamento, praticado numa casa habitada». Possuía uma espingarda de que se servia como o melhor atirador e exercia às vezes o mister de caçador furtivo. Tudo isto lhe foi prejudicial. [...]João Valjean foi considerado criminoso. Os termos do código eram formais. Existem na nossa civilização momentos terríveis: os momentos em que a penalidade é descarregada sobre um culpado. Que lúgubre momento aquele em que a sociedade se desvia e consuma o irreparável desamparo de uma criatura racional! João Valjean foi condenado a cinco anos de galés”
.

Valjean teve depois sua pena gradativamente ampliada para 19 anos após diversas tentativas de fuga e resistência à prisão. Não se pode dizer do crime de Valjean que tenha sido tão simples: houve invasão e destruição parcial de uma propriedade além do roubo do pão. Digamos que 5 anos seja uma punição severa, mas justa, para o crime de Valjean, e que todas as tentativas de fuga realmente lhe valeram o tempo que passou sem liberdade. Aceitaremos, então, que o crime foi punido, e que a justiça, portanto, foi feita.

O que acontece quando Valjean é liberto, entretanto, é o espelho da situação dos criminosos brasileiros modernos quando voltam a ver o sol redondo. Ele é jogado num mundo que não o aceita nem o estimula, porque seu passado está evidente na ficha criminal como o passado de Valjean saltava aos olhos pelo seu passaporte amarelo. Valjean não consegue emprego ou comida, pois todos se recusavam a confiar nele (com alguma razão, já que “João Valjean entrara para as galés soluçante e trémulo; saiu de lá impassível. Entrara angustiado, saiu sombrio”).

Ele segue sua jornada até encontrar-se com o Monsenhor Bemvindo, Bispo de Digne, que o acolhe e lhe dá comida e alojamento. Mas Valjean, agora sombrio, sabe o que o espera quando puser os pés de volta no mundo real: mais desprezo, mais fome. E por isso resolve roubar os talheres de prata do bispo que o acolheu, num ato de monstruosidade muito mais chocante que aquele do roubo do pão. No passado, roubou por fome, para alimentar a irmã e sete sobrinhos, o mais velho com oito anos. Agora, roubava depois de ser alimentado e alojado confortavelmente por sua vítima.

A polícia francesa do início do século XIX era aparentemente muito mais eficiente que a nossa, e capturou Valjean ainda em Digne com o fruto de seus furtos. Levaram-no ao Bispo, para que pudessem devolver-lhe os itens roubados. A atitude do bispo é das mais surpreendentes. Ao ver o criminoso capturado à sua frente, o Monsenhor lhe disse: “Ah, então voltou?! Estimo muito tornar a vê-lo Mas agora me lembro: eu também lhe dei os castiçais, que são de prata, como o resto, e que lhe podem render”. Esse foi o turning point para a vida e o caráter de Valjean. Foi a partir desse ato de misericórdia que Valjean tornou-se novamente um homem de bem.

Valjean não é apenas um personagem. Victor Hugo, como todo grande escritor, fez de Valjean o arquétipo do ladrão comum. Um homem de caráter neutro que foi levado à criminalidade por alguma circunstância (no caso de Valjean, da circunstância responsável pela grande maioria dos roubos da época, a fome), e que corrompeu seu caráter de forma grave a ponto de tornar-se impassível, e que, devido ao tratamento adequado, recupera seu caráter original.

A salvação de Valjean não vem da misericórdia do bispo, entretanto. Seria uma interpretação rasa, quase tacanha. A salvação de Valjean vem da confiança que Bemvindo lhe deposita e da oportunidade que lhe é dada de um recomeço. Valjean não mais cometerá crimes ao longo do romance. A história de Valjean é a parábola da ressocialização como melhor aparato correcional que a punição. É uma demonstração, pela literatura, de como infligir dor em alguém não é cura para seu caráter. De como, pelo contrário, o caráter enrigece diante desse tipo de tratamento. Valjean é o relato, na forma de romance, da vida do menino amarrado ao poste no Rio, do traficante torturado na UPP da Rocinha. De como seriam as vidas deles caso encontrassem, ao invés do vazio de sentimentos e da dureza das penas, a confiança e a admoestação cândida do Monsenhor Bemvindo.

Evitando cair na falácia do determinismo social, repito o velho mantra: “o ser humano reage a estímulos”. Que estímulos diferentes resultarão em reações diferentes é quase desnecessário mencionar. Mas há outro fator que torna a sociedade muito mais complexa: o mesmo estímulo, em pessoas diferentes, obterá resultados diferentes. Às vezes, radicalmente diferentes.

Muitas pessoas vêem no argumento da causa social da criminalidade uma ofensa àqueles que, sofrendo às vezes muito mais que os bandidos, seguem uma vida honesta e longe de qualquer banditismo. Mas, assim como é impossível prever com certeza o tempo, restando-nos apenas uma margem de confiança, igualmente é impossível prever a reação de cada ser humano; o que se passa em cada mente, o que cada indivíduo percebe como melhor alternativa para sua situação, varia.

Não é ofensa dizer que há, sim, pessoas que roubam por necessidade, mesmo que haja outras que talvez prefiram morrer de fome a violar a propriedade alheia. Ofender-se com esse tipo de observação é colocar os seres humanos no pote daquilo que é exclusivamente físico. É dizer, como uma bola de basquete, que todo homem que sofra um baque vai quicar de volta, recuperando-se.

Não se deve cair no argumento cretino de que o homem é fruto do meio, mas igualmente cretino é o argumento oposto de que o homem independe dele. O que faz um homem é sua relação com o meio, absorvendo dele informações brutas e interpretando-as de forma a moldar seu próprio caráter. Por isso mesmo é possível que irmãos gêmeos, vivendo as exatas mesmas situações, tornem-se pessoas absolutamente distintas: as diferentes interpretações que dão ao meio são responsáveis por essa variação. Certamente há pessoas que reagiriam de forma positiva inclusive às punições graves.

Se Jean Valjean fosse outra pessoa, talvez ele se tornasse um monge ao sair das galés. Talvez um brâmane, alimentando-se exclusivamente de ervas que encontrasse pelo caminho. A probabilidade disso, entretanto, vai contra uma regra geral da natureza humana: em situação de dúvida, o caminho escolhido tende a ser o mais fácil/menos arriscado.

A verdadeira forma de evitar a criminalidade, portanto, é tornar o crime um caminho mais difícil ou arriscado, mesmo para pessoas que têm baixa aversão ao risco, outro traço absolutamente individual do ser humano. Existem apenas duas maneiras de se executar essa tarefa: elevando absurdamente o risco do crime, a eficácia policial e a agilidade do sistema jurídico (estas duas últimas contraditórias, uma vez que a maior eficácia policial geraria inevitavelmente um maior número de processos a ser julgados, atrasando seu julgamento), ou reduzindo os riscos gerais de quaisquer outras atividades. Há ainda uma terceira opção, aventada por muitos, que é a mudança da natureza humana. Não me parece a opção mais viável, e nunca vi nenhuma proposta nesse sentido que me soasse realista ou mesmo remotamente convincente, de forma que ignorarei essa proposta.

Como já falei, de forma até mais longa do que desejaria, sobre a proposta número um, vou tentar explicar rapidamente a proposta número dois para a redução da criminalidade. É uma proposta que, apesar de aparentemente mais complexa e de difícil implementação que a primeira, na prática é mais intuitiva e natural.

Existem basicamente três fatores que influenciam na tomada de decisões de qualquer pessoa, que acontecem de forma simultânea: 1) quais os caminhos identificáveis para a próxima ação? Como se sente o indivíduo agora, e como fazer para se sentir melhor no futuro? Esse é o fator da delimitação do real. Não se tomam atitudes, em geral, que não façam parte de algum sistema lógico internalizado no raciocínio do sujeito. 2) Qual o risco de cada uma das ações identificadas? O que acontecerá ao indivíduo caso ele aja de acordo com cada uma delas? E 3) Quais ações são boas? Quais delas são justificadas pela ética/moralidade? Se for imoral, os benefícios individuais são suficientes para suplantar a consciência de se estar cometendo uma imoralidade?

Novamente, como falamos de indivíduos, haverá distinções em cada uma das “etapas” da tomada de ação. Alguns indivíduos serão excelentes na identificação dos cursos possíveis, mas farão má avaliação dos riscos e da moralidade de cada um deles. Outros escolherão sempre aquele com melhor custo/benefício ao avaliar o risco daquelas possibilidades que identificaram, mas falharão em identificar um leque grande o suficiente de possibilidades para garantir que aquela de fato é a melhor de todas. Por fim, haverá aqueles para quem a moralidade de uma ação é menos relevante que as duas primeiras etapas. Naturalmente, todos os tipos de combinação são possíveis, e haverá aqueles que façam mal julgamento nas três etapas, e alguns gênios que acertarão em cheio nos caminhos a percorrer.

Descontarei daqui a possibilidade de o próprio estado de espírito influenciar nessas três etapas (a euforia pode reduzir a risk awareness, por exemplo), por crer que as diferenças nas ações de um mesmo indivíduo são menos importantes para o assunto que as diferenças inter-indivíduos. Sigo com a proposta, portanto.

Para reduzir os riscos de todas as ações, é preciso, primeiramente, reduzir o número de crimes, e reduzir a moralidade legalista atual a uma moralidade naturalista, minimalista. Há muitos entraves burocráticos que se tornam crimes caso não sejam seguidos. A questão da moralidade perde valor quando todas as possibilidades enxergadas são imorais. Não se pode abrir uma empresa sem CNPJ. Não se pode trabalhar por menos que o salário mínimo. Não se pode fazer frete sem licença. Não se pode trabalhar sem um diploma.

Todas essas exigências requerem esforços de longo prazo que nem sempre são vistos pelo indivíduo, e muitas vezes sequer são efetivamente possíveis dentro daquele leque que possuem. A licença custa caro e leva tempo. O CNPJ custa caro e leva tempo. Tempo e dinheiro são justamente dois dos requisitos que o indivíduo não tem.

Se ele será relegado à ilegalidade de qualquer forma, do ponto de vista legalista, ele será, inevitavelmente, uma pessoa imoral. Descarta-se a questão da moralidade por inteiro: eis o surgimento do risco do crime violento. Restam, então, ao potencial criminoso, apenas dois critérios para avaliar: quais as opções, e quais os riscos que elas apresentam. O freio moral foi reduzido a quase nada pelas regulamentações burocráticas.

Nesta etapa da avaliação é que entram as punições mais rigorosas como fator restritivo do crime. Mas a avaliação é entre custo e benefício da ação, não puramente de seu risco. O benefício de um crime é certamente superior àquele obtido por, digamos, comércio ilegal. Os riscos, mesmo com uma eficiência policial e jurídica ideais, são muito próximos. E são próximos porque a eficiência policial também se aplica ao comércio ilegal. Ficaria impossível manter uma barraca de camelô num sistema de eficiência policial absoluta, pois logo ele seria descoberto e teria toda a mercadoria e dinheiro apreendidos. A opção estaria cortada, como todas as demais: restaria a ele apenas o bramanismo como alternativa.

O ataque à criminalidade, portanto, não deve focar na aversão ao risco na tomada de escolhas, mas na delimitação daquilo que é moral. Eliminar a moralidade de atividades inofensivas com leis artificiais tende a aproximar o risco delas àquele dos crimes propriamente ditos, de natureza violenta.

A solução mais apropriada à violência é dar às pessoas possibilidades reais de agir dentro da lei, conseguindo assim sua subsistência. Aqui há outra separação, relativa ao modo de fazer com que todos estejam nesse nível da legalidade. Alguns defendem que é importante elevar todos os indivíduos ao nível da legalidade atual. Não cabe discorrer aqui sobre a impossibilidade e, surpreendentemente, imoralidade disso, argumentos que todos os liberais, público-alvo deste texto, já devem conhecer. Direi apenas que a solução natural a isso é reduzir o nível das barreiras, tornando-as transponíveis pelo maior número possível de indivíduos. Cortar reservas de mercado; extinguir a exigência de diplomas; permitir todo tipo de troca plenamente voluntária, seja de anabolizantes, drogas ou alimentos; reduzir as exigências fiscais, entre outras.

Isso traria o nível da moralidade a um patamar em que boa parte das opções enxergadas pelos indivíduos seria não apenas possível, mas moralmente boa, ou ao menos neutra. Com mais opções dentro da legalidade, qualquer risco apresentado pelas possibilidades ilegais se tornaria um peso insuportável para a maioria da população.

Agora que já vimos como evitar que os crimes ocorram, como aplicar esse raciocínio aos ex-detentos? Como argumentar que, mesmo diante de situações tão fantásticas, um indivíduo criminoso deva voltar à sociedade? Como concluir que, mesmo diante de um nível de barreiras legais tão irrisório, um criminoso não reincidirá? Em outras palavras, porque a combinação de poucas barreiras com punições graves não deve ser considerada?

A resposta é resgatada do próprio Valjean. Se um criminoso enxergou no crime a única possibilidade, mesmo diante de um sistema como esse, ele deve ser tratado de forma a melhorar sua capacidade de identificar as situações disponíveis e avaliar suas relações de custo/benefício. Tratá-lo duramente possivelmente elevará nele a sensação do risco da atividade criminosa, mas não o fará enxergar nenhuma das outras possibilidades como preferível. Isso pode aumentar seu medo, mesmo que não influa em nada na sua decisão. Os trabalhos de ressocialização, por outro lado, buscam a reintegrar o indivíduo à sociedade, auxiliando-o notar as possibilidades todas disponíveis e a avaliar melhor o custo-benefício que apresentam. A solução é entregar os castiçais.