sexta-feira, 11 de abril de 2014

Contra Consta


Cartum certeiro de Carlos Latuff, o novo companheiro de causa dos libertários, de acordo com Rodrigo Constantino

Escrevi, no final de março, um texto que, como muitos outros da época, falava sobre Cláudia Silva Ferreira e sua morte brutal nas mãos de policiais militares, baleada e arrastada pelo asfalto por uma viatura. O fato ganhou notoriedade porque ilustrava tanto o descaso da polícia brasileira quanto seu modus operandi violento.

Rodrigo Constantino, autointitulado "liberal sem medo da polêmica", não achou o caso digno de nota. Nenhum texto, dentre as dezenas de artigos sofríveis publicados diariamente em seu blog no site da revista Veja, tratou do caso. Na verdade, um tratou, incidentalmente. O Trovão da Razão decidiu fazer um texto criticando parágrafo a parágrafo o meu, que, segundo ele, era "sensacionalista" e mostrava que "alguns 'libertários' mais parecem comunistas".

Em geral, não vejo motivos para comentar nada do que diz Rodrigo Constantino, pelo simples fato de que considero a esmagadora maioria das coisas que o sujeito escreve puro lixo, verborragia vulgar travestida de liberalismo na melhor das hipóteses — e, na pior, uma tentativa patética de estigmatizar pessoas e elevar suas opiniões pessoais caricatas ao nível de discussão intelectual.

Mas desta vez foi diferente. Inicialmente, pensei em não responder a seu ataque risível (tanto é que demorei a escrever uma resposta), mas mudei de ideia; em parte porque algumas pessoas vieram pessoalmente pedir para que eu respondesse, mas também porque acho relevante esclarecer minhas posições e responder a visões similares às de Constantino. Evidentemente, não se trata de um debate — eu jamais pensaria que seria possível ter um debate intelectual honesto com Rodrigo Constantino.

Porque seu texto, embora seja um comentário estendido ao meu, não menciona meu nome nenhuma vez. Pelo contrário, Constantino a todo momento parece atacar "os libertários", "alguns libertários", a "garotada libertária". Comportamento estranho. Ao que parece, o blogueiro é incapaz de dar uma resposta direta a mim, como se eu fosse responsável pelo que diz todo o grupo de pessoas que se rotula como "libertário". Pensei em fazer o mesmo e, em vez de direcionar a resposta a Rodrigo Constantino, direcioná-la à Veja, aos moradores da Barra da Tijuca, aos conservadores. Desisti no último minuto.

De fato, o texto de Constantino começa com uma anedota sobre um seu amigo que saiu para um chopp com a "garotada libertária" e ficou horrorizado com as opiniões que ouviu, que associou ao PSTU, ao PSOL e ao PCO. Segundo Constantino, os libertários veem o governo americano como "grande ameaça mundial", Israel como "o capeta do Oriente Médio", a polícia como "fascista" e a solução para todos os problemas na anarquia.

Notem que nada disso tem qualquer coisa a ver comigo. Eu não saí com o amigo de Constantino e nem sequer moro no Rio de Janeiro. Minhas opiniões não são as opiniões das pessoas que saíram com Constantino, nem as delas são minhas. No entanto, Trovão trata as opiniões de pessoas diferentes como intercambiáveis, transitando entre visões que ele atribui ao coletivo e argumentos individuais expostos no meu texto como se tudo fizesse parte de uma só bolha de "ideias libertárias". Patético.

Por outro lado, só o fato de Constantino se chocar com opiniões negativas sobre o governo americano, Israel e a polícia diz muito sobre suas inclinações ideológicas. O imperialismo americano não é motivo para qualquer consternação constantinesca, o fato de Israel manter um povo inteiro sitiado como política de estado é apenas par for the course e a violência policial no Brasil não passa de necessidade de serviço. E, de acordo com ele, são os "libertários" que estão "mais longe do liberalismo clássico do que Plutão da Terra". Ele não deve ter avisado os liberais clássicos de sua aproximação, senão os coitados dos liberais se afastariam.

O que meu texto dizia?

Estes foram meus argumentos centrais:
1) Cláudia Silva Ferreira foi morta por conta da negligência, do descaso e da violência sistemática utilizada pela Polícia Militar, principalmente contra moradores de favelas, especialmente os negros, que são automaticamente identificados como criminosos;

2) A militarização dá um poder grande demais à polícia, que resulta em atrocidades como o caso de Cláudia;

3) A proibição às drogas causa a guerra atual que ocorre nas favelas em todo o Brasil, que vitima principalmente os moradores dessas comunidades.
Por isso, eu defendi tanto a desmilitarização da polícia quanto a legalização das drogas, tanto para tirar o poder dos traficantes quanto para evitar que os policiais entrem em rota de colisão com os próprios moradores das favelas.

Para Constantino, eu receitei uma "panaceia". Eu, ao contrário, acredito que recomendei uma solução bastante pragmática e realista. Em nenhum momento falei que eliminaria todos os crimes. Meu texto inteiro só apontava para o fato de que, com o fim da proibição às drogas e a desmilitarização da polícia, a violência nas favelas fatalmente diminuiria. A polícia não teria que subir à favela para apreender drogas, moradores não seriam baleados apenas por viverem lá. Constantino parece ter tido muitas dificuldades para ler meu texto, uma vez que criticava a posição de que "basta legalizar todas as drogas que tudo será um maravilhoso mundo pacífico, habitado por trocas apenas voluntárias e sem truculência policial ou sem sequer a necessidade de a polícia subir morros". Não faço ideia de quem defendeu essa posição. Se algum dos leitores conseguir identificar quem fez a defesa dessa radical ideia, por favor indique nos comentários.

Defendi, na verdade, algo que tem se tornado cada vez mais comum entre economistas e sociólogos. A proibição das drogas gera violência desnecessária e danos colaterais. No Brasil, o combate às drogas ainda feudalizou as favelas, que vivem sob controle dos traficantes (o próprio surgimento das favelas é mais um fracasso do estado em regularizações fundiárias e em políticas de zoneamento, que levariam os pobres para longe dos centros urbanos). Com o fortalecimento e o entrincheiramento do tráfico, a polícia se torna cada vez mais violenta. Os números não mentem.

Racismo não existe se eu não quero vê-lo

Passando aos comentários, o blogueiro logo se revolta porque, em minha descrição da morte de Cláudia, eu destaquei o fato de ela ser negra. Diz o "liberal" sem medo da polêmica: "Por que mencionar a cor da vítima? Qual a relevância disso? Por acaso ela foi morta por ser negra? Alguém está mesmo disposto a bancar essa tese esdrúxula?"

It just so happens de eu estar muito disposto a bancar essa tese nada esdrúxula. No Brasil, os negros lotam as penitenciárias e morrem em proporção muito maior do que os brancos – e são muito mais mortos pela polícia. Na atividade policial, é comum o racial profiling (“perfilamento racial”); se você for negro, fatalmente será parado e revistado pela polícia somente pelo fato de ser negro – porque se encaixa num suposto perfil de criminoso. Os direitos individuais desaparecem num passe de mágica.

Constantino não reconhece nada disso, porque, para ele, não é ideologicamente conveniente. Porque aí ele pode continuar a tratar o racismo como um problema menor, a violência policial como apenas um pequeno problema a ser resolvido com “treinamento” e “maiores salários” para os policiais.

A incapacidade crônica de compreender figuras de linguagem

Em meu artigo, eu escrevi, ironicamente, que por causa da existência das drogas, a polícia é “obrigada” a subir nos morros, para combater essa ameaça palpável à segurança da sociedade. Era uma ironia óbvia para atentar para o fato de que, em si, as drogas não necessariamente são causadoras de violência.

Rodrigo Constantino, homem das letras, articulista, colunista de Veja e O Globo, aparentemente foi incapaz de entender e pergunta: “Quer dizer que a polícia sobe o morro só porque o tráfico de drogas é ilegal? Não há outros crimes nas favelas?” Infelizmente para ele, a polícia realmente não precisaria subir o morro para apreender drogas se as drogas fossem legalizadas. Esse era o argumento central do parágrafo que ele mencionava ipsis litteris, mas que foi incapaz de interpretar.

Mais à frente, meu artigo dizia o seguinte:
Dados esses fatos, fica claro que uma desmilitarização debilitaria demais a força da polícia, impossibilitando qualquer tipo de combate ao crime. Se queremos que alguém suba nos morros para apreender malotes de cocaína e maconha, temos que ter soldados.
Outra ironia; é claro que eu não penso que a desmilitarização debilitaria demais a força da PM. O problema, justamente, é o fato de que a polícia é muito forte. Desmilitarizá-la não a “debilitaria”, mas simplesmente normalizaria a polícia (a militarização, por sinal, é exceção no mundo; as polícias no exterior não são militares, mas civis. No Brasil, manter o regime separado para policiais virou bandeira para o conservadorismo).

Constantino novamente não percebeu a ironia: “O autor reconhece que desmilitarizar a polícia iria debilitar demais sua força, mas depois defende… justamente isso!” Sim, eu realmente defendi, porque é isso que ironias são: instrumentos retóricos que consistem na afirmação do contrário do que se quer dizer.

Posso aqui fazer um mea culpa: talvez eu não tenha sido claro o suficiente na minha intenção ao escrever. Talvez eu tenha superestimado meus leitores. Talvez eu tenha pensado que meu artigo não seria lido por um Rodrigo Constantino.

A minimização do problema das drogas

Na conclusão de meu artigo, escrevi:
Continuar a pensar que a brutalidade policial é uma exceção não vai nos levar a lugar nenhum. A violência da polícia brasileira é institucionalizada e necessária para as políticas do governo. Não é possível controlar o comércio de drogas sem o uso brutal da força por parte da polícia. Ao mesmo tempo, a luta contra o tráfico é necessária para manter a legitimidade do estado, que deve sempre se empenhar no combate ao “crime”. Com as atuais políticas de drogas, não há nenhuma possibilidade de acabar com a violência policial, porque sem ela o estado não conseguiria afirmar sua força.
Constantino respondeu a esse meu parágrafo basicamente defendendo o meu ponto: dizendo que os policiais estão envolvidos em verdadeiras “guerras urbanas”. Foi exatamente isso que eu pretendi mostrar em todo o meu artigo; na realidade, o que eu pretendi dizer, ainda, foi que essa guerra não é inevitável e que pode ser mitigada com o fim do combate às drogas.

Ele acrescenta:
Outro detalhe que os “libertários” sempre ignoram convenientemente: praticamente todos os países do mundo proíbem drogas, especialmente as mais pesadas (e quem diria que legalizar só a maconha resolveria alguma coisa?), e nem por isso vivem em uma guerra civil dominada pelo tráfico.
Os “libertários” (continuo sem entender as aspas, já que nem o próprio Constantino se considera libertário; o que indicam as aspas? Ironia? Paráfrase?) não ignoram o fato de que a maioria dos países do mundo não vive em situação de calamidade urbana por conta do combate às drogas; os libertários só reconhecem a situação específica do Brasil e de alguns países na América Latina na questão: uma conjunção de fatores como crescimento urbano e demográfico específicos da região, a própria proibição e o perfil de atuação policial no país.

Rodrigo Constantino prefere ignorar tudo isso. Também prefere ignorar o caos ocasionado pelo combate às drogas até em países ricos. Parece desconhecer também princípios básicos de debate, como a leitura caridosa. Eu gostaria de dizer que Constantino argumenta em nível de redação do ENEM, mas provavelmente ele zeraria a prova por fuga ao tema.

Constantino prefere acreditar num conto de fadas heroico em que os policiais estão bravamente lutando contra as forças do mal para proteger a população. A verdade – o sistema de poder que se retroalimenta e mantém as drogas ilegais para benefício tanto de traficantes quanto de políticos – é menos romântica.

É interessante notar que, pelos comentários ao meu texto, Constantino dá a entender que minhas ideias são absolutamente heterodoxas – como se os efeitos econômicos da proibição já não fossem extensivamente estudados. Porém, é conveniente para ele tratar minhas visões como bizarrices, porque, afinal, seu objetivo não é nada muito diferente do status quo.

Mas não há nada de novo sob o sol e os efeitos da proibição das drogas hoje continuam sendo os mesmos que os da proibição do álcool nos anos 1920 nos EUA. Até mesmo políticos têm melhor acesso às substâncias proibidas. Como Warren G. Harding, que mantinha um estoque de bebidas alcoólicas bastante respeitável na Casa Branca durante a proibição nos Estados Unidos, e o senador Zezé Perrella, fundador da empresa que transportava meia tonelada de cocaína por helicóptero e aliado histórico de Aécio Neves, candidato à presidência apoiado por Rodrigo Constantino.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A neutralidade da rede e suas mentiras

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 28 de março. Também estão disponíveis versões em inglês e em italiano.

Tentei encontrar um único, singelo e mísero exemplo de censura ou discriminação de conteúdo nos serviços de internet fornecidos atualmente no Brasil. Procurei casos em que os provedores estavam bloqueando acesso a sites específicos ou oferecendo planos mais caros para acesso a mais conteúdo. Por incrível que pareça, não encontrei.

Pensei que eu poderia estar fazendo algo de errado, porque, afinal, estou procurando na própria internet. Talvez o meu provedor de internet estivesse censurando minhas buscas e, ao digitar “censura por provedores de internet” no Google, o próprio provedor já poderia estar filtrando meus resultados. É possível que eu vivesse numa Matrix internética, tudo o que eu vejo é o que querem que eu veja e talvez eu nem me dê conta.

No entanto, eu consegui encontrar diversos usuários criticando o serviço do meu próprio provedor na internet. Aparentemente, meu provedor está falhando miseravelmente na sua tentativa de censurar os usuários. Também fui capaz de acessar sem problemas sites de empresas concorrentes e orçar seus serviços, que, em alguns casos, eram mais vantajosos para mim.

Impossível. Tentei entrar em sites que poderiam gerar algum desconforto ao meu provedor. Sites que defendem posições políticas radicais e fora do mainstream, por exemplo. Não tive problemas em acessar o C4SS. Minha barra de favoritos, composta de sites libertários e anarquistas, continua incólume.

Consigo ver e baixar vídeos, ouvir e baixar músicas. Sites de torrent continuam acessíveis; não podemos dizer que provedores de internet sejam muito simpáticos a eles. Mas continuam a um clique de distância no navegador. Não importa quais sites eu acesse e a quantidade de dados que eu baixe, continuo pagando a mesma tarifa mensalmente. Quem diria?

Eu não acreditei no que estava vendo, porque, pelo que me dizem, a internet deveria estar quase totalmente fechada para mim. Sem uma regulamentação de neutralidade da rede, os provedores cobram mais caro para acessar sites e podem até censurar o que eu posso ou não posso ver, de acordo com meu plano de dados.

É isso que Alessandro Molon, deputado do PT carioca, afirma. Segundo ele, sem a aprovação do Marco Civil para a internet, “quem hoje acessa de graça o Youtube vai ter que pagar mais para assistir vídeo, quem baixa música vai ter que pagar mais para baixar música“.

Por um minuto eu desejei muito que meu provedor cobrasse mais caro para eu assistir vídeos do Youtube, para que eu não tivesse acesso ao site e não tivesse que ouvir as mentiras ridículas de Alessandro Molon.

Porque toda a argumentação em favor do Marco Civil da Internet aprovado pela Câmara dos Deputados na última terça é baseada em mentiras, alarmismo e num impulso regulatório totalitário. A neutralidade da rede não passa de um chavão vazio.

Afinal, o governo alega que quer garantir a “liberdade” da internet no Brasil, que está ameaçada pelos provedores. Será?

O estado brasileiro é o segundo colocado em solicitações de retirada de conteúdo do Google. Não muito tempo atrás, era o líder. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que qualquer “conteúdo ofensivo” deve ser retirado do Youtube.

Portanto, ônus de provar que a exigência governamental de neutralidade da rede vai aumentar nossa liberdade é de seus defensores.

Não há a menor necessidade de defender a internet desregulamentada das alucinações de Alessandro Molon e Jean Wyllys de que os provedores – e não o governo – estão prestes a cercear toda a liberdade que temos hoje em dia. É justamente o contrário.

O deprimente dia das viúvas da ditadura

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 26 de março. Também está disponível em inglês.

Muitas pessoas nutrem uma certa simpatia pela ditadura militar que governou o Brasil até os anos 1980. Não é incomum ouvir dos mais velhos que, naquela época, havia empregos, que a educação pública era decente, que a violência não estava fora do controle como nos dias atuais, que o país estava em ordem. E é fato que o país estava em ordem. Mas a quem servia essa ordem?

A ditadura, efetivamente, impôs algo que se assemelhava a “ordem”. Como todo governo autoritário, não tinha que responder a ninguém, censurava opositores e policiava ostensivamente as ruas em busca de atividades “subversivas”. Violência? Existia, mas era abafada pelo governo. As informações que surgiam eram apenas as interessantes para o regime e os opositores eram sistematicamente calados e perseguidos.

Mesmo a ideia de que o país prosperava economicamente durante os anos de chumbo é patentemente falsa. O “milagre brasileiro” dos anos 1970, que consistiu basicamente em inflação e endividamento público para financiar grandes projetos estatais (como a famosa rodovia Transamazônica), colocou o país no caminho do colapso econômico. Que de fato ocorreu: o Brasil foi o Zimbábue dos anos 1980, uma década perdida, de empobrecimento, sofrimento para o povo que convivia com uma inflação que chegava a 3000% ao ano. Convenientemente, os mais nostálgicos do regime não lembram desses fatos.

E mesmo quando lembram, minimizam os problemas. O número de mortos e desaparecidos por perseguição política durante a ditadura brasileira é calculado em cerca de 400. Como esse número absoluto é relativamente “baixo” se comparado aos regimes militares do resto da América Latina ou mesmo o de regimes comunistas como o de Cuba, os mais autoritários descartam qualquer discussão do tema como pequeno problema. O que é, naturalmente, um completo absurdo, porque a avaliação da justiça do regime militar não é uma quantificação rasteira do número de cadáveres. Para eles, Vladimir Herzog foi apenas um caso “excepcional” e não o modus operandi do regime.

Este 22 de março foi o dia de as viúvas da ditadura celebrarem suas ilusões sobre o regime que fez com que o Brasil parasse no tempo por 20 anos.

Com os 50 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade (que foi chamada de Marcha da Vitória pelo regime que se instalou em 1964), certas alas conservadoras decidiram organizar “protestos” em várias cidades pelo Brasil. As novas “Marchas da Família” foram às ruas.

Pediam uma nova “intervenção militar” contra a “ameaça comunista” no Brasil. Pediam o restabelecimento da farsa que era a ordem durante a ditadura. Ouviram-se gritos “Viva Médici” e “Viva Geisel”. O fato de essas manifestações celebrarem sujeitos pífios como o deputado Jair Bolsonaro diz muito sobre os ideais políticos defendidos por quem foi as ruas.

Porém, não podemos dar uma importância indevida às marchas, já que não saiu tanta gente assim às ruas. A de São Paulo reuniu cerca de mil pessoas. No Rio, cerca de 200 compareceram. Contingentes quase irrisórios em cidades gigantescas. Sem mencionar as deprimentes reuniões de cerca de 6 pessoas no Recife e 9 em Natal. As viúvas da ditadura encenaram um espetáculo triste, não apenas por conta das visões retrógradas defendidas, mas também por conta de sua irrelevância.

Os jornais brasileiros consideraram pertinente cobrir as marchas, mas, se elas nos mostraram algo, é que sua ideologia e seus valores, como a ditadura, ficaram enterrados no passado. São fósseis que apenas alguns poucos querem desenterrar.

Esses poucos grupos que saíram às ruas hoje querem voltar no tempo, mas não perceberam que não têm mais o controle do relógio político. E provavelmente nunca mais terão.

Cláudia Silva Ferreira foi regra, não exceção

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 24 de março. Também estão disponíveis versões em inglês e em italiano.

O crime de Cláudia Silva Ferreira, no último dia 16, foi morar no lugar errado e ter a cor de pele errada. Saía para comprar R$ 3 de pão e R$ 3 de mortadela com um copo de café à mão. Os policiais acharam por bem não arriscar. Nunca se sabe quão letal pode ser um copo de café na mão de uma mulher negra, pobre e moradora da periferia. Deram dois tiros na faxineira, que já a deixaram estendida no chão, tórax perfurado. Foi carregada até a viatura policial na qual seria levada para o hospital. Os bancos traseiros estavam cheios de armamentos, então não podiam receber um corpo ferido – a polícia deve ter prioridades. Foi colocada no porta-malas, que abriu no trajeto. Seu corpo ficou preso no para-choque e foi arrastada por cerca de 350 metros pelo asfalto até ser empurrada de volta para dentro do carro. Ela morreu.

A Polícia Militar negou o que os moradores do Morro da Congonha, em Madureira, subúrbio do Rio, viram. Segundo a PM, Cláudia foi encontrada já baleada. Na mesma operação, a PM matou um suposto traficante, feriu e prendeu outro e apreendeu quatro pistolas, rádios e drogas. Talvez tenham pensado que valeu a pena, afinal são as drogas que destroem famílias.

Se não existissem as drogas, a Polícia Militar não teria sido obrigada a subir o morro, não teria se deparado com a imagem ameaçadora e violenta de uma mulher negra de 38 anos com um copo de café nas mãos, não teria sido obrigada a disparar dois tiros em sua direção, nem tido o incômodo de carregar um corpo para dentro de uma viatura para ser conduzido ao hospital. Mas as drogas continuam destruindo famílias. A própria Cláudia criava 8 crianças em sua casa, 4 filhos e 4 sobrinhos. Por causa das drogas, sua família foi desfigurada.

E como exigir que militares prestem socorro a uma mulher ferida? Eles são militares por um motivo. São chamados “soldados” (os policiais envolvidos na operação, especificamente, eram dois subtenentes e um sargento) e são enviados para uma guerra. A ideia de proteção é completamente alheia a uma organização militar e a PM prova isso a cada dia em que invade uma favela e vê os moradores apenas como potenciais danos colaterais ao invés de vidas a serem protegidas.

Dos envolvidos, desde 2000, o subtenente Adir Serrano Machado, o mais eficiente de todos, já esteve envolvido em 57 ações que sofreram resistência, com 63 mortos. O subtenente Rodney Miguel Archanjo foi um pouco mais comedido, envolvendo-se em 5 ocorrências, com 6 mortos. O sargento Alex Sandro da Silva Alves, por outro lado, debutou no domingo em que Cláudia foi baleada, seu primeiro auto de resistência.

Dados esses fatos, fica claro que uma desmilitarização debilitaria demais a força da polícia, impossibilitando qualquer tipo de combate ao crime. Se queremos que alguém suba nos morros para apreender malotes de cocaína e maconha, temos que ter soldados.

Mas será que é mesmo isso que queremos?

Porque soa bem na propaganda eleitoral dizer que o policiamento nas favelas aumentou e que o combate as drogas foi intensificado. Mas o que isso significa de fato é que centenas de Cláudias Silvas Ferreiras vão continuar a morrer. Porque o único jeito de manter o asfalto seguro e ilusoriamente sem drogas é baleando gente inocente no morro.

Continuar a pensar que a brutalidade policial é uma exceção não vai nos levar a lugar nenhum. A violência da polícia brasileira é institucionalizada e necessária para as políticas do governo. Não é possível controlar o comércio de drogas sem o uso brutal da força por parte da polícia. Ao mesmo tempo, a luta contra o tráfico é necessária para manter a legitimidade do estado, que deve sempre se empenhar no combate ao “crime”. Com as atuais políticas de drogas, não há nenhuma possibilidade de acabar com a violência policial, porque sem ela o estado não conseguiria afirmar sua força.

Por ora, a PM poderia publicar um panfleto com atividades suspeitas que os cidadãos honestos devem evitar, como ser negro e andar com um copo de café na mão numa favela.

O Brasil vai ferver - de novo

Este texto foi originalmente publicado no Centro por uma Sociedade Sem Estado em 17 de março. Também estão disponíveis versões em inglês e em espanhol.

Ao interrogar na última quinta-feira (13) Juliano Torres, diretor-executivo da rede acadêmica Estudantes Pela Liberdade (EPL), a Polícia Federal se certificou de que teria à disposição todo o roteiro de viagens internacionais feitas por ele nos últimos meses, para que sua tentativa de intimidação fosse muito mais incisiva.

A PF brasileira tem intimado para depor (ou, como chamam os burocratas, “prestar esclarecimentos”) diversos indivíduos percebidos como lideranças dos protestos que ocorreram durante a Copa das Confederações, em junho. O EPL teve certo envolvimento nos protestos, e suas várias páginas no Facebook coordenaram a participação de vários grupos nas manifestações. Juliano Torres, então, foi interrogado a respeito de todo o seu envolvimento político e institucional – tendo que explicar até mesmo de onde saiu o financiamento para suas idas ao exterior. (O que deve nos fazer recordar o real motivo da existência dos passaportes: controle e vigilância da população.)

O contingente libertário das redes sociais rapidamente se mobilizou em suporte a Juliano Torres contra as táticas ditatoriais da PF, mas deve-se lembrar de que não são só os libertários que estão sendo alvos do governo brasileiro. O mesmo tratamento tem sido dispensado a diversos indivíduos envolvidos em manifestações políticas, notoriamente aqueles ligados à Marcha da Maconha e ao Movimento Passe Livre.

A Copa do Mundo deste ano e as Olimpíadas de 2016 jogaram rapidamente o país em estado de exceção, liberando o governo e a polícia para empregarem táticas cada vez mais repressoras e autoritárias. Com a desculpa de assegurar a segurança para os eventos internacionais, o governo brasileiro ganhou a conveniente justificativa de que precisava para reforçar a vigilância na internet, recrudescer a repressão às manifestações nas ruas e, pior, fortalecer o estado policial totalitário que já vigora nas favelas. No Rio, em particular, a sensação de terror domina as favelas “pacificadas”, em que os moradores vivem sob a mira dos fuzis da PM, sendo efetivamente cidadãos de segunda classe, sem direitos civis. A polícia, ao fechar o cerco em determinadas favelas, ainda empurra a força do tráfico de drogas para as favelas mais distantes do centro e, por isso, “invisíveis” – tolerando ainda a existência das milícias, que lutam pelo controle dessas áreas.

A visita dos ativistas de classe média à PF, em comparação, é um agradável passeio no parque.

Com a carta branca de que precisava para violentar a população, o governo se sentiu à vontade nos últimos anos para potencializar a exploração econômica dos cidadãos comuns. Os protestos de junho, precipitados pela condição precária dos transportes urbanos em todo o Brasil, são sintomáticos. Os gigantescos subsídios estatais a imóveis (efetivamente, apenas repasses governamentais às empreiteiras) fizeram com que as metrópoles brasileiras crescessem absurdamente na última década e transformaram o país num dos mais caros do mundo – de quebra, jogando o Brasil numa bolha imobiliária similar à dos Estados Unidos. A infraestrutura urbana brasileira não suportou esse choque e cai aos pedaços.

Os estádios construídos para a Copa do Mundo catalisam a revolta popular por serem ralos de dinheiro público, mas ainda escondem a tragédia humana das desapropriações violentas dos imóveis de milhares de famílias. Tudo pelo bem do esporte, evidentemente; por uma Copa no padrão FIFA.

Por isso, quando ícones do futebol como Ronaldo colocam o dedo na ferida, servem de garotos-propaganda oficiais e afirmam que não se faz Copa do Mundo com hospitais, é ainda mais doloroso. São manifestações assim que não deixam morrer o grito de que “Não vai ter Copa” entoado pelos black blocs.

Portanto, o Brasil atualmente é o paraíso da violência estatal, que fortalece a casta atual de petistas que se encontra no poder e garante os lucros das empreiteiras e demais corporações ligadas ao regime. É por essas e muitas outras que o governo brasileiro está certo em temer novas manifestações. É por essas e outras que a PF terá que separar muitos outros registros de viagens internacionais.