sexta-feira, 11 de abril de 2014

Contra Consta


Cartum certeiro de Carlos Latuff, o novo companheiro de causa dos libertários, de acordo com Rodrigo Constantino

Escrevi, no final de março, um texto que, como muitos outros da época, falava sobre Cláudia Silva Ferreira e sua morte brutal nas mãos de policiais militares, baleada e arrastada pelo asfalto por uma viatura. O fato ganhou notoriedade porque ilustrava tanto o descaso da polícia brasileira quanto seu modus operandi violento.

Rodrigo Constantino, autointitulado "liberal sem medo da polêmica", não achou o caso digno de nota. Nenhum texto, dentre as dezenas de artigos sofríveis publicados diariamente em seu blog no site da revista Veja, tratou do caso. Na verdade, um tratou, incidentalmente. O Trovão da Razão decidiu fazer um texto criticando parágrafo a parágrafo o meu, que, segundo ele, era "sensacionalista" e mostrava que "alguns 'libertários' mais parecem comunistas".

Em geral, não vejo motivos para comentar nada do que diz Rodrigo Constantino, pelo simples fato de que considero a esmagadora maioria das coisas que o sujeito escreve puro lixo, verborragia vulgar travestida de liberalismo na melhor das hipóteses — e, na pior, uma tentativa patética de estigmatizar pessoas e elevar suas opiniões pessoais caricatas ao nível de discussão intelectual.

Mas desta vez foi diferente. Inicialmente, pensei em não responder a seu ataque risível (tanto é que demorei a escrever uma resposta), mas mudei de ideia; em parte porque algumas pessoas vieram pessoalmente pedir para que eu respondesse, mas também porque acho relevante esclarecer minhas posições e responder a visões similares às de Constantino. Evidentemente, não se trata de um debate — eu jamais pensaria que seria possível ter um debate intelectual honesto com Rodrigo Constantino.

Porque seu texto, embora seja um comentário estendido ao meu, não menciona meu nome nenhuma vez. Pelo contrário, Constantino a todo momento parece atacar "os libertários", "alguns libertários", a "garotada libertária". Comportamento estranho. Ao que parece, o blogueiro é incapaz de dar uma resposta direta a mim, como se eu fosse responsável pelo que diz todo o grupo de pessoas que se rotula como "libertário". Pensei em fazer o mesmo e, em vez de direcionar a resposta a Rodrigo Constantino, direcioná-la à Veja, aos moradores da Barra da Tijuca, aos conservadores. Desisti no último minuto.

De fato, o texto de Constantino começa com uma anedota sobre um seu amigo que saiu para um chopp com a "garotada libertária" e ficou horrorizado com as opiniões que ouviu, que associou ao PSTU, ao PSOL e ao PCO. Segundo Constantino, os libertários veem o governo americano como "grande ameaça mundial", Israel como "o capeta do Oriente Médio", a polícia como "fascista" e a solução para todos os problemas na anarquia.

Notem que nada disso tem qualquer coisa a ver comigo. Eu não saí com o amigo de Constantino e nem sequer moro no Rio de Janeiro. Minhas opiniões não são as opiniões das pessoas que saíram com Constantino, nem as delas são minhas. No entanto, Trovão trata as opiniões de pessoas diferentes como intercambiáveis, transitando entre visões que ele atribui ao coletivo e argumentos individuais expostos no meu texto como se tudo fizesse parte de uma só bolha de "ideias libertárias". Patético.

Por outro lado, só o fato de Constantino se chocar com opiniões negativas sobre o governo americano, Israel e a polícia diz muito sobre suas inclinações ideológicas. O imperialismo americano não é motivo para qualquer consternação constantinesca, o fato de Israel manter um povo inteiro sitiado como política de estado é apenas par for the course e a violência policial no Brasil não passa de necessidade de serviço. E, de acordo com ele, são os "libertários" que estão "mais longe do liberalismo clássico do que Plutão da Terra". Ele não deve ter avisado os liberais clássicos de sua aproximação, senão os coitados dos liberais se afastariam.

O que meu texto dizia?

Estes foram meus argumentos centrais:
1) Cláudia Silva Ferreira foi morta por conta da negligência, do descaso e da violência sistemática utilizada pela Polícia Militar, principalmente contra moradores de favelas, especialmente os negros, que são automaticamente identificados como criminosos;

2) A militarização dá um poder grande demais à polícia, que resulta em atrocidades como o caso de Cláudia;

3) A proibição às drogas causa a guerra atual que ocorre nas favelas em todo o Brasil, que vitima principalmente os moradores dessas comunidades.
Por isso, eu defendi tanto a desmilitarização da polícia quanto a legalização das drogas, tanto para tirar o poder dos traficantes quanto para evitar que os policiais entrem em rota de colisão com os próprios moradores das favelas.

Para Constantino, eu receitei uma "panaceia". Eu, ao contrário, acredito que recomendei uma solução bastante pragmática e realista. Em nenhum momento falei que eliminaria todos os crimes. Meu texto inteiro só apontava para o fato de que, com o fim da proibição às drogas e a desmilitarização da polícia, a violência nas favelas fatalmente diminuiria. A polícia não teria que subir à favela para apreender drogas, moradores não seriam baleados apenas por viverem lá. Constantino parece ter tido muitas dificuldades para ler meu texto, uma vez que criticava a posição de que "basta legalizar todas as drogas que tudo será um maravilhoso mundo pacífico, habitado por trocas apenas voluntárias e sem truculência policial ou sem sequer a necessidade de a polícia subir morros". Não faço ideia de quem defendeu essa posição. Se algum dos leitores conseguir identificar quem fez a defesa dessa radical ideia, por favor indique nos comentários.

Defendi, na verdade, algo que tem se tornado cada vez mais comum entre economistas e sociólogos. A proibição das drogas gera violência desnecessária e danos colaterais. No Brasil, o combate às drogas ainda feudalizou as favelas, que vivem sob controle dos traficantes (o próprio surgimento das favelas é mais um fracasso do estado em regularizações fundiárias e em políticas de zoneamento, que levariam os pobres para longe dos centros urbanos). Com o fortalecimento e o entrincheiramento do tráfico, a polícia se torna cada vez mais violenta. Os números não mentem.

Racismo não existe se eu não quero vê-lo

Passando aos comentários, o blogueiro logo se revolta porque, em minha descrição da morte de Cláudia, eu destaquei o fato de ela ser negra. Diz o "liberal" sem medo da polêmica: "Por que mencionar a cor da vítima? Qual a relevância disso? Por acaso ela foi morta por ser negra? Alguém está mesmo disposto a bancar essa tese esdrúxula?"

It just so happens de eu estar muito disposto a bancar essa tese nada esdrúxula. No Brasil, os negros lotam as penitenciárias e morrem em proporção muito maior do que os brancos – e são muito mais mortos pela polícia. Na atividade policial, é comum o racial profiling (“perfilamento racial”); se você for negro, fatalmente será parado e revistado pela polícia somente pelo fato de ser negro – porque se encaixa num suposto perfil de criminoso. Os direitos individuais desaparecem num passe de mágica.

Constantino não reconhece nada disso, porque, para ele, não é ideologicamente conveniente. Porque aí ele pode continuar a tratar o racismo como um problema menor, a violência policial como apenas um pequeno problema a ser resolvido com “treinamento” e “maiores salários” para os policiais.

A incapacidade crônica de compreender figuras de linguagem

Em meu artigo, eu escrevi, ironicamente, que por causa da existência das drogas, a polícia é “obrigada” a subir nos morros, para combater essa ameaça palpável à segurança da sociedade. Era uma ironia óbvia para atentar para o fato de que, em si, as drogas não necessariamente são causadoras de violência.

Rodrigo Constantino, homem das letras, articulista, colunista de Veja e O Globo, aparentemente foi incapaz de entender e pergunta: “Quer dizer que a polícia sobe o morro só porque o tráfico de drogas é ilegal? Não há outros crimes nas favelas?” Infelizmente para ele, a polícia realmente não precisaria subir o morro para apreender drogas se as drogas fossem legalizadas. Esse era o argumento central do parágrafo que ele mencionava ipsis litteris, mas que foi incapaz de interpretar.

Mais à frente, meu artigo dizia o seguinte:
Dados esses fatos, fica claro que uma desmilitarização debilitaria demais a força da polícia, impossibilitando qualquer tipo de combate ao crime. Se queremos que alguém suba nos morros para apreender malotes de cocaína e maconha, temos que ter soldados.
Outra ironia; é claro que eu não penso que a desmilitarização debilitaria demais a força da PM. O problema, justamente, é o fato de que a polícia é muito forte. Desmilitarizá-la não a “debilitaria”, mas simplesmente normalizaria a polícia (a militarização, por sinal, é exceção no mundo; as polícias no exterior não são militares, mas civis. No Brasil, manter o regime separado para policiais virou bandeira para o conservadorismo).

Constantino novamente não percebeu a ironia: “O autor reconhece que desmilitarizar a polícia iria debilitar demais sua força, mas depois defende… justamente isso!” Sim, eu realmente defendi, porque é isso que ironias são: instrumentos retóricos que consistem na afirmação do contrário do que se quer dizer.

Posso aqui fazer um mea culpa: talvez eu não tenha sido claro o suficiente na minha intenção ao escrever. Talvez eu tenha superestimado meus leitores. Talvez eu tenha pensado que meu artigo não seria lido por um Rodrigo Constantino.

A minimização do problema das drogas

Na conclusão de meu artigo, escrevi:
Continuar a pensar que a brutalidade policial é uma exceção não vai nos levar a lugar nenhum. A violência da polícia brasileira é institucionalizada e necessária para as políticas do governo. Não é possível controlar o comércio de drogas sem o uso brutal da força por parte da polícia. Ao mesmo tempo, a luta contra o tráfico é necessária para manter a legitimidade do estado, que deve sempre se empenhar no combate ao “crime”. Com as atuais políticas de drogas, não há nenhuma possibilidade de acabar com a violência policial, porque sem ela o estado não conseguiria afirmar sua força.
Constantino respondeu a esse meu parágrafo basicamente defendendo o meu ponto: dizendo que os policiais estão envolvidos em verdadeiras “guerras urbanas”. Foi exatamente isso que eu pretendi mostrar em todo o meu artigo; na realidade, o que eu pretendi dizer, ainda, foi que essa guerra não é inevitável e que pode ser mitigada com o fim do combate às drogas.

Ele acrescenta:
Outro detalhe que os “libertários” sempre ignoram convenientemente: praticamente todos os países do mundo proíbem drogas, especialmente as mais pesadas (e quem diria que legalizar só a maconha resolveria alguma coisa?), e nem por isso vivem em uma guerra civil dominada pelo tráfico.
Os “libertários” (continuo sem entender as aspas, já que nem o próprio Constantino se considera libertário; o que indicam as aspas? Ironia? Paráfrase?) não ignoram o fato de que a maioria dos países do mundo não vive em situação de calamidade urbana por conta do combate às drogas; os libertários só reconhecem a situação específica do Brasil e de alguns países na América Latina na questão: uma conjunção de fatores como crescimento urbano e demográfico específicos da região, a própria proibição e o perfil de atuação policial no país.

Rodrigo Constantino prefere ignorar tudo isso. Também prefere ignorar o caos ocasionado pelo combate às drogas até em países ricos. Parece desconhecer também princípios básicos de debate, como a leitura caridosa. Eu gostaria de dizer que Constantino argumenta em nível de redação do ENEM, mas provavelmente ele zeraria a prova por fuga ao tema.

Constantino prefere acreditar num conto de fadas heroico em que os policiais estão bravamente lutando contra as forças do mal para proteger a população. A verdade – o sistema de poder que se retroalimenta e mantém as drogas ilegais para benefício tanto de traficantes quanto de políticos – é menos romântica.

É interessante notar que, pelos comentários ao meu texto, Constantino dá a entender que minhas ideias são absolutamente heterodoxas – como se os efeitos econômicos da proibição já não fossem extensivamente estudados. Porém, é conveniente para ele tratar minhas visões como bizarrices, porque, afinal, seu objetivo não é nada muito diferente do status quo.

Mas não há nada de novo sob o sol e os efeitos da proibição das drogas hoje continuam sendo os mesmos que os da proibição do álcool nos anos 1920 nos EUA. Até mesmo políticos têm melhor acesso às substâncias proibidas. Como Warren G. Harding, que mantinha um estoque de bebidas alcoólicas bastante respeitável na Casa Branca durante a proibição nos Estados Unidos, e o senador Zezé Perrella, fundador da empresa que transportava meia tonelada de cocaína por helicóptero e aliado histórico de Aécio Neves, candidato à presidência apoiado por Rodrigo Constantino.