quarta-feira, 19 de março de 2014

Os problemas das informações dispersas e do cálculo social sob um sistema de cotas e uma abordagem liberal do racismo


O Brasil, marcado em sua história pelos grilhões da escravidão negra e da segregação racial, que terminaram, no papel, sem nenhum tipo de compensação ao povo escravizado, relegado à indigência e à marginalidade, o governo federal resolveu criar um sistema de cotas para ingresso em suas universidades. Suponhamos que as cotas sejam perfeitamente proporcionais ao número de pessoas que se identificam com cada etnia, para facilitar nossa suposição, e, para deixar tudo ainda mais fácil, suponhamos que a população esteja perfeitamente dividida em 50% para cada uma das etnias formadoras.

Entra em vigor um sistema de cotas onde, suponhamos, é possível dizer com precisão absoluta a que etnia cada pessoa pertence, margem de erro zero. Qual o argumento esperado de um liberal a esse respeito?

Comentarei um trecho de artigo de autoria de Vinícius Campos Pinto, e meus motivos para discordar da abordagem de Vinícius sobre o assunto. Primeiro, Vinícius parece admitir a existência de um problema social ligado ao racismo, à homofobia, entre outros. Isso é um grande passo, porque não faltam por aí liberais achando que isso é tudo ficção em países, desde que a lei já provenha a igualdade entre todos os seres humanos nas suas cartas de direitos humanos.

Pois bem, o argumento de Vinícius é provavelmente o mais recorrente entre os opositores dos sistemas de cotas, e também o mais superficial: "O sistema de cotas nada mais é que dizer ao afrodescendente que o mesmo não tem capacidade de disputar aquela vaga com os demais; é dizer que, por algum motivo, por sua condição de afrodescendente, sua capacidade é menor. Este fato não caracteriza o preconceito?"

Efetivamente, dizer que alguém que veio de uma história de segregação e de um presente não particularmente inclusivo não tem condições de disputar a vaga com os decendentes de homens livres, cujo índice de marginalização sequer se aproxima daquele encontrado entre os negros, não é preconceito: é uma observação válida e verdadeira. A busca por uma solução para esse tipo de problema é louvável. O problema está na solução apresentada.

O sistema de cotas impede o "cálculo social" do preconceito. Ao forçar a entrada de uma etnia em detrimento de outra, perde-se a noção da proporção de cada etnia que entraria naturalmente na universidade se as cotas não estivessem presentes, e fica impossível saber a hora de suspender as cotas universitárias.

Como o Brasil usa um sistema de ingresso universitário baseado em avaliação objetiva e competição direta entre os candidatos, seria possível apontar para as notas dos candidatos e, quando as médias das duas etnias estiverem suficientemente próximas, suspender o sistema de cotas.

Surge, no entanto, outro problema. Qualquer cota criada é um estímulo para a parte prejudicada se dedicar mais, e um desestímulo à parte beneficiada. A tendência esperada de um sistema como esses é, a princípio, um aumento na média geral de ambas as etnias no momento da seleção. Depois, como um ajuste de mercado, a percepção de que a competição está mais acirrada para um lado, e mais frouxa para o outro, e os secundaristas (que não são estúpidos) reagirem de acordo com essa realidade.

A tendência, portanto, é a nota dos negros, no longo prazo, cair, enquanto as notas dos brancos tenderiam a subir. Isso potencialmente prorrogaria o sistema de cotas indefinidamente.

Além disso, ao estipular um sistema de cotas de 50% para todos os cursos, cria-se um outro problema: embora as populações estejam divididas proporcionalmente, é possível que em determinado ano os negros tenham demanda no curso de medicina superior à dos brancos, que buscam em maior número, de acordo com nossa suposição, o curso de direito. A divisão em 50% entre os cursos torna-se inválida, pois seria necessário manter a ponderação de vagas entre cada etnia de acordo com sua demanda por cada curso para que se configurasse uma situação de justiça.

Por fim, o argumento que me parece mais sonoro contra o sistema de cotas é acreditar que a diferença de escolaridade é a base do preconceito. Não é. Gays que o digam. Não existe diferença significativa de escolaridade entre homo e heterossexuais, mas negar a homofobia é tão insensato quanto negar o racismo. Em média, as mulheres brasileiras estudam mais que os homens. Isso não impediu a existência do machismo.

As cotas tentam corrigir uma discrepância criada pelo racismo histórico brasileiro sem atacá-lo efetivamente onde importaria, dando uma maquiagem de justiça ao igualar o acesso de ambas as etnias à universidade. Isso apenas tornaria mais morna a questão racial no Brasil, mais tolerável aos olhos de quem se importa apenas marginalmente com o assunto.

Essa solução das cotas sofre de um problema generalizado na mentalidade política brasileira, a idéia deturpada de que a educação formal é uma panacéia. Entretanto, médicos negros também sofrem com o racismo, depois de seis anos de universidade e sabe Deus quantos de residência. Sofrem com o racismo até mesmo daqueles que nunca pisaram numa escola, que nunca aprenderam a ler. A mobilização contra o racismo não pode partir de cima pra baixo. É preciso incutir na população a certeza de que os indivíduos não são sua etnia, que as etnias não podem ser piores ou melhores umas que as outras simplesmente porque elas não dizem respeito aos indivíduos, mas a traços que agregam pessoas com passado ou genética comuns.

Negros não são negros, e brancos não são brancos. Sua individualidade está acima de sua etnia. Ninguém é o arquétipo ideal do rótulo guarda-chuva onde se abriga. O combate ao preconceito passa obrigatoriamente pelo reconhecimento de indivíduos como tal, pessoas que estão acima da cor da pele ou da carga cultural que traz de seus ancestrais. O sistema de cotas não contribui para isso de forma alguma. Pelo contrário, ele isola de forma sólida e grosseira os indivíduos em seus rótulos, como pequenas redomas das quais não podem sair.