segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A coletivista aliança liberal-conservadora

Ah, o ímpeto e a vontade de derrubar a esquerda! Tão fortes em alguns, que os fazem inclusive esquecer os princípios que sempre defenderam! Pois, veja, não é senão jogar no lixo toda a defesa do individualismo a proposição de alianças entre os liberais e conservadores.

Liberais ouvem, diariamente, uma chamada dos conservadores: “há mais pontos em comum que de discordância entre nós! Vamos, camaradas, à luta contra a esquerda!” De fato, mesmo a noção de haver tanto em comum entre liberais e conservadores é falsa. Se analisarmos os pressing points da direita e os da esquerda, nos veremos, muitos de nós surpresos, concordando com muito mais frequência com nossos vizinhos canhotos.

Conservadores se gabam, quando o assunto é tocado, de ser melhor administradores que os esquerdistas. Isso pode até ser verdade, ao menos em sua retórica de free market, mas a diferença é bem menos abismal do que a lupa dos conservadores, seletiva, costuma mostrar. Focam em public healthcare e bailouts, mas, se nos distanciarmos dessa lupa – e apenas alguns passos são necessários – veremos os republicanos cedendo a lobbies das seguradoras com tanto afinco quanto os democratas, e veremos os bailouts acontecendo da mesma forma, como quando, em 2008, Bush doou quase 20 bilhões de dólares às montadoras GM e Chrysler.

Na ponta do lápis, os conservadores talvez efetivamente sejam os melhores gestores públicos dessa dualidade, mas a distância entre eles é bem pequena pra compensar as noções estapafúrdias dos conservadores.

Enquanto a esquerda defende que as pessoas devem ser respeitadas pelo que são, a direita faz questão de pressionar pelo direito de não respeitar. Enquanto a esquerda defende a liberdade de qualquer um fazer o que quiser com seu próprio corpo (razão pela qual são chamados de liberals nos Estados Unidos – e, embora chateado pela cooptação do termo, fico ao menos aliviado que quem o adotou pelo menos defende algum tipo de liberdade), a direita chega a absurdos, como propor que sejam proibidos o ensino de educação sexual, o sexo anal e oral, uma intensificação da guerra às drogas (já hoje responsável por mais da metade dos encarceramentos nos EUA e, acredito, no Brasil) que, no fundo, significa não uma redução de impostos, mas um aumento.

Todo o argumento conservador pela união com os liberais cairia por terra baseado nesse único ponto, aliás. Como defender uma redução do Estado, se uma das propostas mais em voga da esquerda – a flexibilização/liberação do comércio e uso de drogas –, é atacada dia após dia pelos conservadores? Brincando um pouco de Bastiat e tentando ver o que não se vê fica bem evidente que a esquerda, ao defender o fim da guerra às drogas, saiba ela ou não, está defendendo também a redução do aparelho mais opressor do Estado, sua mão armada. E está defendendo uma redução dos custos com trâmites legais e dos custos de manter encarcerados não apenas traficantes, mas qualquer pessoa cuja quantidade de droga seja superior ao limite que o próprio Estado estabeleceu pra determinar se você é traficante ou consumidor. É como se você pudesse ter dois quilos de arroz na despensa, mas, por alguma razão misteriosa, um saco de cinco quilos pudesse te deixar preso por até quinze anos. E garantir que você seja sustentado por impostos até sua liberdade.

Imaginem a economia que isso geraria aos cofres públicos! E a sensação de segurança que teríamos ao deslocar nosso aparato policial da caça ao tráfico (que, assim como a máfia do álcool, deixaria de existir) à segurança pública propriamente dita! E o tanto que o judiciário se beneficiaria dessa flexibilização, então? Imagina se todos os casos estritamente ligados ao comércio e transporte de drogas simplesmente desaparecesse dos bureaus de nossos magistrados, em quantos meses nossos processos não se agilizariam? Mas não! Temos muito mais em comum com os conservadores, dizem. Mesmo alguns liberais, na pressa de se diferenciar da esquerda, acham por bem concordar com essa visão. Melhor que eu, quem diagnosticou esse traço humano foi Chesterton:

“All modern thinkers are reactionaries; for their thought is always a reaction from what went before. When you meet a modern man he is always coming from a place, not going to it. Thus, mankind has in nearly all places and periods seen that there is a soul and a body as plainly as that there is a sun and moon. But because a narrow Protestant sect called Materialists declared for a short time that there was no soul, another narrow Protestant sect called Christian Science is now maintaining that there is no body”, disse ele em What’s Wrong With the World. Esse tipo de mentalidade tende a criar o dualismo de situação/oposição, deixando a análise crítica à margem e permitindo que alguns esquerdistas que, muitas vezes carregados de bom senso, esqueçam tudo para defender “o inimigo de seu inimigo”. Como os EUA não são muito chegados a um chavismo, Maduro vira herói. E como os EUA não são muito amigos de Cuba, os médicos cubanos tornam-se milícias treinadas para a guerrilha.


Mas que defendo, então, eu? Já deve estar evidente que não defendo nenhuma aliança com os conservadores. Mas, igualmente, não defendo aliança com os esquerdistas. E, surpreendentemente, sequer defendo uma aliança conosco mesmos. Mesmo entre liberais há discordâncias – a questão do aborto é uma que divide liberais, por exemplo, devido à sua complexidade.

Se é esta a questão mais relevante para você, dane-se se fulano é liberal, ele discorda frontalmente de você nesse quesito. Você não precisa ser parte de um coletivo, seja ele de esquerda, de direita, centrista ou liberal. Você não precisa seguir ninguém. Essa é a beleza do ser humano: por mais que tentem prendê-lo, ele já nasce livre pra pensar. E, por mais que tentem podá-lo, ele é livre pra crescer por conta própria.