segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Rothbard sobre Marx

Tempos atrás, o IMB publicou um texto intitulado "A verdadeira doutrina defendida por Karl Marx", no qual Murray Rothbard critica alguns pontos das ideias comunistas. O assunto veio à tona em outra discussão, então decidi escrever rapidamente sobre o fato.

O texto chamou atenção principalmente por conta das citações de Marx utilizadas por Rothbard, que rapidamente foram colocadas em forma de imagem no Facebook e começaram a ser divulgadas. São citações de fato revoltantes e Rothbard as usa para chocar o leitor, como se Marx de fato defendesse aquelas ideias abjetas. Porém, como nos instrui o xkcd, nunca confie em informações conseguidas em formato JPG.

As citações usadas falam de um tipo de comunismo chamado "comunismo grosseiro", descrito nos termos mais mórbidos por Marx. Todos os grifos são do original:

Com efeito, a avaliação de Marx sobre o comunismo grosseiro, a etapa da ditadura do proletariado, não era muito romântica e era ainda mais pesada do que aquela feita por Stein:

Esse movimento que tende a opor a propriedade coletivizada à propriedade privada se exprime de uma forma completamente animal quando contrapõe o casamento (que é, evidentemente, uma forma de propriedade privada exclusiva) à coletivização das mulheres: quando a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da coletivização das mulheres contém o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Assim como a mulher deve abandonar o casamento em prol da prostituição geral, o mesmo deve acontecer com o mundo da riqueza, o qual deve abandonar sua relação de casamento exclusivo com a propriedade privada para abraçar uma nova relação de prostituição geral com a coletividade.

Não bastasse isso, Marx reconhece que

O comunismo grosseiro não é a transcendência da propriedade privada, mas apenas a sua universalização; não é a derrota da ganância, mas apenas sua generalização; não é a abolição do trabalho, mas sim sua ampliação para todos os homens. Destarte, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma na qual toda a abjeção da propriedade privada se torna explícita. [...]

Os pensamentos de toda propriedade privada individual são, pelo menos, dirigidos contra qualquer propriedade privada mais abastada, sob a forma de inveja e desejo de reduzir todos a um mesmo nível; destarte, essa inveja e nivelamento por baixo constituem, de fato, a essência da competição. O comunismo vulgar é apenas o paroxismo de tal inveja e nivelamento por baixo, baseado em um mínimo preconcebido.

E completa,

Eis a razão por que todos os sentimentos físicos e morais foram substituídos pela simples alienação trazida pela sensação da posse. A essência humana deveria mergulhar em uma pobreza absoluta para poder fazer surgir dela a sua riqueza interior!

Intenso, não? Realmente, considerando as citações utilizadas, Marx deveria ser um crápula que defendia um borderline estupro coletivo de todas as mulheres.

Mas quando nós vamos para a fonte utilizada por Rothbard, Marx descreve o "comunismo grosseiro" da forma citada justamente para criticá-lo!

Ele contrapõe os princípios do "comunismo grosseiro" à sua própria versão do comunismo ("científico"). Segundo Marx, o comunismo grosseiro leva inexoravelmente a resultados tão repulsivos porque não se baseia na superação da propriedade privada, mas apenas transforma a propriedade privada em propriedade comum.

Você não precisa acreditar em mim. Você pode ir direto à fonte utilizada por Rothbard (novamente, todos os grifos do original):

[T]ive a sorte de encontrar um manuscrito de Marx onde ele critica esse comunismo "grosseiro" e "cru" nas suas relações não somente com a propriedade privada em geral, mas também com o casamento. Excuso-me de aprofundar numa longa citação:

"Considerando a propriedade privada, na sua geração, o comunismo é na sua forma primitiva a generalização e a abolição da propriedade privada. Em relação a essa abolição, há dois aspectos: de um lado, ele sobrestima o papel e a dominação da propriedade material de um ponto de vista tal que ele quer destruir tudo o que não pode trazer a fortuna e a propriedade privada de todo o mundo; ele quer suprimir pela violência as capacidades particulares, etc. A posse física imediata surge aos seus olhos como o principio único da vida: a forma de atividade do trabalhador não é abolido desse estado, mas estende-se a todos os homens.

A instituição da propriedade privada continua sendo a relação da coletividade no mundo das coisas; e esse movimento que tende opor à propriedade privada a propriedade privada tornada comum, se exprime de uma forma completamente animal, quando opõe ao casamento (que é, evidentemente uma forma de propriedade privada exclusiva) a comunidade das mulheres: quando, por conseguinte, a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da comunidade das mulheres revela o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Do mesmo modo que a mulher abandona o casamento pelo reino da prostituição geral, assim também o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetivada do homem, passa do estado de casamento exclusivo com a propriedade privada à prostituição geral com a coletividade. A prostituição não é senão uma expressão particular da prostituição geral do operário, e como a prostituição se estende não somente ao prostituido, mas também ao prostituinte (cuja abjeção torna-se ainda maior), o capitalista também está incluído nessa categoria, etc. Esse comunismo que nega em toda parte a personalidade humana, não é senão uma expressão consequente da propriedade privada da qual ela própria é essa negação.

A mulher considerada como presa e como objeto que serve para satisfazer a concupiscência coletiva exprime a degradação infinita do homem quando só existe para si, pois o mistério entre a relação do homem com o seu semelhante encontra a sua expressão não equivoca, decisiva, franca, nas relações do homem e da mulher e na maneira de encetar essas relações genéricas naturais e diretas.

A relação direta, natural, necessária dos seres humanos é a relação entre o homem e a mulher. Nessa relação genérica natural, a relação entre o ser humano e a natureza representa diretamente a relação do homem com o homem, do mesmo modo que a relação entre os homens representa diretamente a relação do homem com a natureza, atributo natural do homem. Por conseguinte, essa relação manifesta de uma maneira sensível, exteriorizada, a maneira pela qual a essência humana tornou-se natureza para o homem e como a natureza tornou-se a essência humana do homem. Eis porque, baseando-se sobre essa relação, pode-se julgar o grau geral do desenvolvimento do homem. O caráter desta relação nos mostra até que medida o homem tornou-se um ser genérico, até que medida ele tornou-se homem, e até que ponto ele o o compreende. A relação entre o homem e a mulher é a mais natural entre seres humanos. Por conseguinte, vê-se até que ponto o comportamento natural do homem tornou-se humano, e até que ponto a essência humana tornou-se para ele a essência natural, até que ponto sua natureza humana tornou-se natureza para ele. Essa relação lembra também a que ponto a necessidade do homem tornou-se uma necessidade humana, isto é, até que ponto um outro ser humano tornou-se para ele uma necessidade, como homem. Lembra que na sua existência individual é ao mesmo tempo um ser social. Assim, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma onde se manifesta a abjeção da propriedade privada que quer afirmar-se ela própria como maneira de ser social positivo".

Sim, Karl Marx era um escritor bastante hermético, em que pese o fato de que o texto acima não foi publicado. Mas mesmo com todo o raciocínio convoluto, me parece bastante claro que Marx estava se opondo ao chamado comunismo grosseiro. Para ele, o comunismo grosseiro, ao contrário do que afirma Rothbard, não é a "primeira fase" da revolução, mas se trata de um tipo primitivo de comunismo inferior ao que ele defende. E por que seria inferior? Porque, segundo Marx, como afirmado na citação acima, levaria não à superação da propriedade privada, mas à sua vulgarização. Essa vulgarização não levaria à "superação" do trabalho, mas ao trabalho para todos, não ao fim do casamento como forma de propriedade, mas à vulgarização das relações de casamento (que teria como efeito a prostituição geral).

Marx, também, ao contrário do que afirma Rothbard, parece bastante sensível ao fato de que o comunismo que ele descreve necessitaria de violência e da supressão da personalidade individual, como afirma no primeiro parágrafo de sua citação. Novamente, Rothbard retirou o exato oposto do que Marx queria dizer do texto.

O que Rothbard afirma sobre Marx aqui, portanto, é completamente falso.

Isso significa que não devemos criticar Marx?

Não, pelo contrário. Podemos criticá-lo por vários ângulos: podemos dizer que sua distinção entre o comunismo grosseiro e o comunismo científico é inválida, que sua versão do comunismo levaria aos mesmos efeitos indesejáveis que ele descreveu, que a tal superação da propriedade privada descrita é uma quimera.

Mas nós não podemos dizer que Marx defendeu qualquer uma das ideias que ele descreveu, da mesma forma que Rothbard não defendeu o marxismo por citar Marx.

No ímpeto para criticar qualquer posição comunista e desacreditar os maiores pensadores socialistas, muita gente acaba embarcando no oba-oba do Facebook e demais redes sociais. É uma infelicidade que o argumento acabe enfraquecido por críticas que não procedem, até porque o que não faltam são furos no marxismo (e no próprio caráter de Karl Marx).