quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Revenge porn e o controle da individualidade feminina


Para o Mercado Popular.

Carol Portaluppi foi a última mulher a ganhar notoriedade por ser vítima do revenge porn, a divulgação mesquinha de fotos íntimas por vingança. Meses atrás, outra garota acabou empurrada para o suicídio após ver sua vida social destruída com a divulgação de um seu vídeo privado no aplicativo WhatsApp.

É assunto sério, portanto, e claramente os indivíduos envolvidos nessas liberações de material privado devem ser processados criminalmente. E certamente é um assunto mais sério do que indica a reação de Renato Gaúcho, pai de Carol Portaluppi, de colocar sua filha (de 19 anos) de castigo:
O técnico de futebol, que está de malas prontas para voltar para o Rio — o contrato com o Grêmio, time gaúcho que comandava, não foi removado —, ainda colocou Carol de castigo, trancada em casa, e deu um gelo na filha. Ela está arrasada.
Para Renato Gaúcho, sua filha foi descuidada e digna de repreensão. Descuidada, sim; digna de repreensão, veja bem, vamos com calma.

Há duas facetas da questão: primeiro há o paternalismo implícito na ideia de que as mulheres jamais se podem deixar filmar ou fotografar durante o sexo e que será uma decisão necessariamente irracional; e, em segundo plano, existe a tropa da moralidade sempre presente na internet que descobriu que pode chamar qualquer mulher de vagabunda com mínima repercussão, mesmo que leve um ser humano à morte.

É evidente que em casos como a divulgação de vídeos íntimos, a mulher está numa situação particularmente vulnerável e está sempre sujeita a mais repercussões sociais do que os homens. Pouco discutível e, por isso, muitos homens se sentem na responsabilidade moral de "proteger" as mulheres - especialmente de si mesmas.

Esse paternalismo (no caso de Carol Portaluppi, literal) toma várias formas e age para sistematicamente restringir os tipos de comportamentos permitidos às mulheres. Renato Gaúcho, em seu ato indubitavelmente bem intencionado de repreender sua filha e chamar atenção para o a "má decisão" de ter deixado fotos íntimas na mão de um namorado, reforça a cultura de opressão feminina.

É isso que feministas como Susan Brownmiller querem dizer quando falam de uma "cultura do estupro"; não se trata do fato de que todos os homens sejam estupradores, mas de que o ato de alguns serve para moldar o comportamento sistemático das mulheres em relação a todos os homens. E a maioria esmagadora de homens, bem intencionados, também reage ao risco palpável de estupro das mulheres a qualquer dado momento, podando diversos comportamentos femininos, efetivamente restringindo ou destruindo sua individualidade.

Charles Johnson descreve a situação social feminina de perigo perene:
[A] ameaça de estupro impõe restrições ao comportamento das mulheres: Não saia sozinha à noite. Não chame a atenção no metrô. Não se vista assim. Não aja muito sensualmente. Não vá a essa festa. Não beba na festa. Se beber, então é melhor você gostar do que deve ocorrer depois e nem pensar em reclamar, porque você estava pedindo para algo acontecer.

Além disso: você deve encontrar o Homem Certo e pedir auxilio a ele na sua proteção contra outros homens. (Ele poderá acompanhá-la à noite até em casa. E entrar numa situação difícil para dispersar os Homens Errados que estejam incomodando. E tornar-se seu namorado, noivo ou marido, para protegê-la.)

A consequência natural dessas restrições é que as mulheres em nossa sociedade têm seu comportamento sistematicamente restringido pelo medo dos homens. As mulheres não são livres porque precisam descobrir como viver com a existência de ampla, intensa e aleatória violência contra as mulheres.
revenge porn é sintomático e análogo ao do estupro porque esses "conselhos" sobre o comportamento feminino (de que ela não deve tirar fotos, ou se permitir filmar, ou agir assim ou assado durante o sexo) são dados não só por quem se preocupa com a vítima, mas também por aqueles que querem denegri-la!

Acaba sendo uma self-fulfilling prophecy: na internet, qualquer um pode denunciar, xingar e estigmatizar alguém com poucas repercussões. As próprias pessoas que já pretendem fazer coisas do tipo sempre que uma mulher for vitimada já avisam: "Não aja assim, ou você poderá ser xingada, denunciada e estigmatizada." É como se o fofoqueiro do bairro aconselhasse um conhecido a andar na linha para "não ficar mal falado" (por ele próprio).

Grande ironia que, atualmente, época em que vídeos caseiros ganham notoriedade e que as pessoas coletivamente descobrem que outros indivíduos comuns fazem sexo e têm fantasias, haja cada vez mais patrulhamento moral da intimidade. Não patrulhamento individual, claro; felizmente as pessoas, de modo geral, estão cada vez mais sexualmente tolerantes e abertas. Mas, graças à internet, qualquer vídeo vazado ganha uma dimensão gigantesca. Uma sociedade tradicional de 50 anos atrás era muito mais intolerante individualmente, mas a possibilidade de fotos e vídeos íntimos saírem de um pequeno círculo era muito pequena. Hoje, mesmo com o maior esclarecimento, um pequeno número de indivíduos espalhados pode ter um impacto social muito maior.

A mulher não deve apenas se certificar de que não esteja sendo filmada ou fotografada; se for, ela deve se assegurar de que não esteja fazendo nada que esteja muito fora do padrão de normalidade sexual. Foi isso que ocorreu com a garota levada ao suicídio: xingada e escorraçada, chamada de todas as variantes da palavra "puta" existentes - ironicamente por uma tropa de punheteiros de internet lamentando nossa decadência moral.

É um exemplo perverso de ordem espontânea hayekiana. Como bem observa Johnson, os liberais tendem a enfatizar os exemplos positivos de ordens espontâneas, porque elas mostram a desnecessidade do intervencionismo. No caso do machismo, porém, não é necessário nem que um homem queira conscientemente oprimir uma mulher - suas boas intenções já podem ser o bastante para arrancar a individualidade dela. Com más intenções, a questão dispensa comentários.

Não quero ser mal interpretado aqui, então vou colocar a situação com todas as letras: não há nada de errado em tirar fotos ou fazer filmes durante o sexo. É sexualmente interessante, excitante e divertido. Também não há nada de errado com outras fantasias sexuais, posições sexuais, locais variados para sexo.

A sexualidade não deve ser estática e desinteressante, pode ser explorada livremente e as mulheres não devem carregar o fardo de terem que estar sempre alertas porque algum seu parceiro pode ser um completo cretino e divulgar seu material íntimo. Culpa aí recai inteiramente sobre quem divulga as fotos e vídeos; é criminoso.

Vi muitas vezes argumentos feministas como os que eu acabei de apresentar serem rebatidos com alegações de que, por exemplo, você também não deve sair à noite na rua sozinho, mesmo se for homem - trata-se de uma precaução de bom senso.

Mas, pelo contrário, é um problema a naturalização do perigo associado a atos banais como sair de casa à noite. A violência não é inevitável - é um ato consciente de indivíduos que, se pegos, serão responsabilizados por ela. Admira que conservadores, sempre ciosos da aplicação da punição penal, e muitos liberais não percebam esse ponto. Digamos que o Brasil não está fadado a ser violento para sempre e que o primeiro passo para a derrota dessa violência é aceitando que a culpa de um assalto não é de quem andou numa rua na hora errada, assim como o responsável pelo estupro não é a mulher que escolheu sair com uma saia curta demais.

E a garota que escolher um dia querer fazer um vídeo sensual para ver mais tarde também não será culpada se seu namorado mais tarde se provar um cafajeste.

Porque, ao contrário da tropa da moralidade da internet, na vida real as pessoas tomam más decisões às vezes.