quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Funk é cultura, goste você ou não


Para o Mercado Popular.

Recentemente, no site El Hombre, foi publicado o texto de Artur Dias "A indefensável e insistente culturalização do funk carioca". É aquele tipo de artigo da ala da esquerda que eu chamo de Time Adorno de análise cultural: elitismo exacerbado combinado a melindres sobre a mercantilização que corrompe a verdadeira cultura popular.

Incidentalmente, é curioso encontrar esse tipo de artigo. Meses atrás, ganhou manchetes o projeto que passou no mestrado de Cultura e Territorialidades da UFF que discutia o funk como representação cultural legítima. O tema de Mariana Gomes foi amplamente criticado por ser um tema trivial e indigno da academia, inclusive por colegas meus liberais. Imagino que eles se regozijarão com o artigo de Artur Dias, que defende a ideia exatamente oposta.

Para Artur, o funk é um fenômeno artificial importado que não representa de fato a brasilidade. Comentando a perseguição sofrida pelo funk à qual chamou atenção o jurista Nilo Batista, Dias afirma que não há paralelo entre a perseguição que o samba sofreu no começo do século 20 e a perseguição e criminalização atual do funk. O samba, sempre segundo Artur Dias, se desenvolveu "magnetizando pluralidade linguística, rítmica, melódica, estética, instrumental", enquanto o funk sinal de banalização do "grotesco", tratando-se de um ritmo "monossilábico, enrijecido, uníssono, disforme, monocórdico".

O samba ocorreu de "dentro para fora", enquanto o funk é uma nacionalização tosca do miami bass americano; uma imposição cultural. O funk, no mais, apresenta um discurso ideológico

"elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social."

Palavras fortes. Caso alguém ainda esteja esperando, adianto que Artur Dias parece ter se esquecido de dizer por que nada disso pode ser cultura.

Mesmo que todas as acusações dele fossem verdadeiras (e não são), não há nada que impeça um ritmo grotesco, monocórdico, de discurso elitista e paternalista de caracterizar cultura popular.

Cultura não é só aquilo de que gostamos. Cultura engloba toda uma gama de experiências sociais - algumas delas nós não estamos preparados para aceitar. Isso deveria ser óbvio para alguém tão obviamente de esquerda como Artur Dias. Afinal, de que servem as extensas denúncias e lamentações sobre a "cultura do estupro" se cultura não puder englobar também aspectos sociais negativos de um povo?

O mérito da qualidade cultural do funk nem entra aqui em questão. É fato que o funk é representação cultural, gostem ou não eu, você ou Artur Dias.

Artur erra porque adota um conceito idealizado de "brasilidade", no qual se encaixa o samba, mas não o funk. Brasilidade, porém, não é nada mais que um delírio proto-totalitário que insiste em não morrer desde o movimento modernista no Brasil. Desde então, a alta cultura e arte brasileira não desiste de procurar uma "identidade nacional", uma "brasilidade", um Macunaíma. É verdade que o samba nasceu e cresceu no meio do povo, mas cresceu e se adaptou, internalizou outras expressões culturais, importou de fora muitas expressões. O que falar do samba de gafieira? Do samba-exaltação getulista? De Ary Barroso e Noel Rosa? Imagino também que não sejam expressões culturais, porque são oriundos da "elite", importando elementos estrangeiros e atentando contra a nossa brasilidade.

É desconcertante ver pessoas que deveriam possuir um pouco mais de sensibilidade cultural se curvarem a nacionalismos culturais toscos. Se o samba é expressão de brasilidade, o Nordeste e o Norte não devem ser muito Brasil, já que nestes lugares é gênero musical relativamente menor.

Da mesma forma, é verdade que o funk é oriundo do miami bass. But that's not a bug, it's a feature. A Bossa Nova veio do jazz (e era tocada pela elite). É compreensível que nacionalistas culturais como Artur Dias desconfiem do intercâmbio cultural. Mas não há o que temer. As trocas culturais devem ser celebradas, a não ser que Artur queira ser o primeiro a dizer para os Racionais que o que eles fazem não entra na conta da cultura brasileira porque é apenas a importação de um ritmo ameri... estadunidense.

Quanto ao discurso do funk carioca, the jury is still out. Valesca Popozuda canta sobre a libertação do corpo feminino, mas é evidente que é um discurso que pode ser uma faca de dois gumes: pode tanto ser um grito de libertação quanto, em determinados contextos, levar a mulher a um aprisionamento num papel social restrito.

Eu, ao contrário de Artur Dias, não vou enquadrar todo o discurso funkeiro sob um rótulo. Mas, infelizmente para ele, o funk é cultura popular, sendo importada, elitista, comércio, o que for. Porque cultura engloba até aquilo que nós odiamos (estou curioso para saber o que ele pensaria sobre os ritmos mais populares de onde eu moro, notadamente o forró "brega").

De minha parte, porém, tenho uma visão mais otimista sobre o funk, até porque não estou preso a uma concepção de quase cem anos de cultura nacional.

Afinal,

O tempo passa
O mundo gira
O mundo é uma bola