terça-feira, 6 de março de 2007

A escravidão parcial (ou o porquê de o Brasil não ser consistente)

Dizia Bastiat que não se deve recusar um dom parcialmente gratuito e aceitar outro de gratuidade completa. Pois digo eu aqui uma conclusão óbvia a que se chega a partir dessa observação de Bastiat: não é possível ser contra a escravidão total se se defende a escravidão parcial. É algo ainda mais ilógico que aceitar o sol e recusar lâmpadas mais baratas: é recusar o sol e aceitar as lâmpadas.

Acontece que, no Brasil (e não só no Brasil, mas em todo o resto do mundo), as pessoas não se incomodam por ser parcialmente escravas ou por existir essa escravidão parcial. Todos são obrigados a dar parte do fruto de seu trabalho para um senhor de engenho que, em troca, não provê mais do que proviam os senhores do Brasil Colônia. Esse senhor, por excesso de contingente, não consegue empregar todos em suas lavouras, restringe quaisquer trocas alheias a ele e faz surgir, por conta disso, desemprego e tráfico.

A escravidão do Brasil colonial ainda tinha outra vantagem sobre a atual, além de ser logicamente mais consistente: era aberta. Todos os escravos sabiam que eram escravos, e essa consciência permitia que eles se revoltassem, criassem seus quilombos e resistissem à exploração injustificada. Mas basta olhar para o lado que se encontra alguém que defenda, incansavelmente, a escravidão parcial, o direito do senhor de usurpar parte do meu trabalho em troca de nada ou quase, afirmando que não há nada mais justo que João trabalhar para sustentar Pedro e José.

Antigamente, ninguém dizia ao escravo que ele era o senhor: seria degradante para o senhor e o escravo, ao cobrar seus "direitos" de senhor e vê-los negados, notaria que não era senhor de coisa alguma. Ninguém acreditaria. A escravidão parcial permite que os senhores finjam ser empregados dos escravos, finjam estar servindo enquanto roubam metade do fruto do trabalho de cada um, enquanto tudo o que fazem é ceder parte do alimento que ele tem, parte (ínfima) de tudo o que arrecada. Como se ele repassasse aos escravos o que roubou, mas só depois de gastar o máximo que conseguiu.

A escravidão parcial perdura justamente por causa disso: é como se Luís XIV bradasse "o Estado são vocês" e nós aceitássemos isso, mesmo vendo que Luís XIV não sai do trono, não trabalha e vive melhor que qualquer escravo, por mais bem sucedido que seja. A escravidão parcial é tão imoral e logicamente inconsistente e economicamente ineficiente quanto a escravidão total. Ou mais.