domingo, 12 de outubro de 2008

A solução definitiva para o caos urbano em São Paulo

(Escrevi este texto faz um tempo. Melhor colocá-lo aqui de uma vez, para referência futura.)

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Assim como as massas cansadas que chegam à América anseiam por respirar livres, os paulistanos cansados anseiam por transitar livres. Não há um único dia em que não se proponha alguma medida para solucionar o caos urbano nas ruas de São Paulo. Vários especialistas já apontaram soluções, e a solução da moda é o pedágio urbano. Como também sou um especialista de renome em alguma coisa, vou apontar uma lista compreensiva de medidas que devem ser tomadas para se solucionar o problema do trânsito na capital paulista:
1) ...
Sei que as medidas acima propostas podem causar certo furor entre os círculos mais burocráticos, mas também acredito que sejam as únicas medidas capazes de assegurar a viabilidade do trânsito em São Paulo.

Até porque várias medidas já são tomadas e não adiantam nada. Convenhamos, se o governo de fato quisesse menos carros em São Paulo, baixaria um decreto os taxando em 5000%, o que possivelmente levaria à adoção de charretes na Avenida Paulista, dando um ar mais clássico ao centro financeiro do país. Imagino que, ao menos, aqueles que reclamam da velocidade e impessoalidade das relações sociais da sociedade contemporânea fossem ficar felizes.

Não fazer nada provavelmente é a opção mais prática e vantajosa porque eleva os custos de se possuir um carro sem qualquer investimento. No ritmo que as coisas andam, em breve não vai mais valer a pena viver em São Paulo e seus habitantes vão procurar outro lugar para morar — sem necessidade de pedágio.

As soluções usuais defendidas pelos "especialistas" sempre envolvem a construção de novas vias e o investimento em transporte público. Em primeiro lugar a construção de novas vias para aliviar o congestionamento urbano equivale, como observou James Kunstler, a afrouxar o cinto para perder peso. Em segundo lugar, é ridículo pensar que se deve "investir" em transporte público quando o governo proíbe o investimento privado no setor, conferindo privilégios para certos grupos com conexões políticas. O resultado é que o custo do transporte público é alto e a qualidade é baixa. Isso ocorre porque geralmente os ônibus e metrôs são vistos como "bens inferiores", ou seja, bens que as pessoas deixarão de usar assim que sua renda aumentar. Óbvio. Se as pessoas andam como sardinhas nos ônibus, não é de espantar que estejam dispostas a destruir a própria vida para financiar um Uno Mille em 36 vezes.

Em São Paulo, honrando a tradição de criatividade legislativa da cidade, ainda há o infame rodízio de automóveis há anos, que, como muitos já notaram, só incentivou as famílias a comprar um segundo carro. O rodízio é um fracasso, mas é uma medida que continua em vigor porque, como diria Mário Henrique Simonsen, o Brasil é o país da contra-indução. Na indução, nós testamos uma teoria e a mantemos se estiver certa; no Brasil, nós testamos uma teoria e, mesmo que ela se mostre errada, nós continuamos com ela até dar certo.

Posso até conceder que os pedágios no centro de São Paulo são uma melhora em relação a outras propostas, porque pretendem internalizar os custos de se andar em vias públicas. Mas o governo não tem como saber qual é o ponto eficiente para precificar o uso das ruas, já que não existe propriedade privada de ruas e sua escassez relativa está oculta. E, além do mais, por que nós deveríamos dar mais dinheiro para um bando de burocratas? Vamos, paulistanos, vocês podem sobreviver mais uns engarrafamentinhos por um bem maior.

Fato é que essas medidas de descongestionamento só são necessárias porque o governo incentiva sistematicamente o adensamento populacional. As cidades crescem muito além do ponto ótimo porque o governo externaliza diversos custos que de outra forma seriam privados.

A existência da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros incentiva, e não desincentiva, a ocupação de áreas perigosas das cidades, como encostas e barrancos. Os moradores, sabendo que serão protegidos de deslizamentos, enchentes, etc, pela Defesa Civil, sempre tentarão ocupar áreas aparentemente inabitáveis. Ao receberem abrigo após catástrofes, elas também são incentivadas a permanecer nas grandes cidades. Dado que os indivíduos via de regra vão preferir se concentrar em certos pontos para poupar custos de transporte, se você externaliza outros custos, obviamente a concentração será maior. Evidentemente eu não pretendo culpar essas pessoas por buscarem melhores condições de vida em uma cidade grande e, de fato, elas só o fazem porque suas opções foram limitadas de outras maneiras — se o governo subsidia a ocupação de áreas perigosas, por um lado, ele limita a elevação do padrão de vida dos pobres por outro.

Saúde, educação e até mesmo segurança pública têm o mesmo efeito: externalizam custos e incentivam o adensamento populacional. Em cidades em que a saúde e a educação pública têm maior qualidade, como no caso de São Paulo em relação a outras cidades, há a atração de pessoas. No caso da segurança, que, se fosse produzida privadamente, seria um bem heterogêneo, com preços diferentes cobrados para diferentes áreas, os preços cobrados são os mesmos não só para toda a cidade, mas para todo o estado de São Paulo (e o mesmo vale em todos os outros estados do Brasil), sem qualquer consideração pelo valor das propriedades a serem protegidas. Uma vez que o valor das propriedades em grandes concentrações urbanas é mais alto que em municípios pouco povoados, a segurança nas cidades grandes é previsivelmente mais cara. Com esse custo externalizado, haverá mais concentração urbana e, naturalmente, maior caos.

O zoneamento tão comum nas cidades brasileiras também tem culpa e deve responder em juízo por aumentar a necessidade de transporte público e do uso de vias públicas. As cidades brasileiras, e no mundo de forma geral, são planejadas em maior ou menor medida, sendo Brasília o extremo do planejamento urbanístico. São Paulo não é nenhuma Brasília, mas evidentemente tem lá o seu planejamento urbano. Em cidades planejadas, pretende-se separar cuidadosamente bairros residenciais, bairros comerciais, bairros industriais, etc, o que fica maravilhoso no mapa, mas, a não ser que você faça a sua feira na casa do seu vizinho, dividir estritamente a cidade em zonas só tem o efeito de aumentar a demanda pelo transporte urbano e pelo uso das vias públicas. O mesmo vale para os programas municipais, estaduais e federais de habitação, que são um tipo de zoneamento; eles criam enormes condomínios habitacionais sem nada em volta a não ser... casas. Para os governos, você só precisa de um teto para viver. O resto você dá um jeito de conseguir. Cohab, estou olhando para você.

Então, como se vê, realmente as zero propostas que eu sugeri no começo do texto seriam uma mudança revolucionária para a cidade de São Paulo, dada a quantidade de medidas, regulamentações e políticas que já são empregadas sem qualquer efeito prático. A própria desregulamentação do transporte público aumentaria a qualidade dos serviços, diminuiria os preços e mesmo desestimularia o uso dos carros na cidade. Bastaria que os ônibus fossem sujeitos à concorrência, que as vans fossem legalizadas e que fosse permitida a oferta de serviços em quaisquer linhas de transporte.

Antes de falar em encher o bolso de políticos com mais dinheiro com pedágios, seria melhor falar em esvaziá-los e queimar os livros de regulamentações do trânsito e do espaço público paulistano. São Paulo não tem qualquer justificativa para ter o trânsito caótico que tem. A área Times Square em Nova York também tem um trânsito um tanto caótico. Mas lá tem Hummer Limos tentando manobrar. Qual é a sua desculpa, São Paulo?