domingo, 12 de outubro de 2008

Vamos formar a Incrível & Invencível Aliança Liberal

Sempre que vejo liberais pedindo para outros liberais cessarem o fogo amigo e passarem a atacar seus inimigos comuns, eu me lembro das últimas palavras do Capitão Spock, algo como "As necessidades da maioria se sobrepõem às necessidades da minoria ou do indivíduo". Quer dizer, vamos parar de falar mal uns dos outros em prol do grande movimento liberal. Como Jornada nas Estrelas muitas vezes soava suspeitamente comunista, isso basta para que eu fique meio desconfiado.

O problema percebido por esses liberais ecumênicos (e eu falo de liberais porque é o grupo mais amplo em que eu me encaixo e com o qual eu conseqüentemente tenho mais contato, mas imagino que o mesmo problema seja encarado por outras vertentes ideológicas) é que os outros liberais adoram criar facções e gastar todas as energias criticando pontos relativamente menores das próprias teorias em vez de gastar seus recursos com os inimigos reais. Ou seja, os ecumênicos são os integrantes do Judean People's Front, chamando o pessoal do People's Front of Judea de "splitters".

Como eu sou um "anarco-liberal" (ou anarco-capitalista, embora eu não goste do nome, ou anarquista de mercado, embora este soe tão bem em português), eu sou talvez um dos piores splitters do liberalismo. Portanto, eu falarei da questão do purismo e do faccionismo da minha perspectiva.

O que ocorre é que minarquistas, aqueles que acreditam no estado, ao contrário de mim, ficam querendo que eu pare de criticar certos pontos de suas idéias para criticar os inimigos comuns. É natural que os minarquistas queiram o apoio de anarquistas nas questões maiores, afinal, os dois grupos concordam em 90% das questões, and the more the merrier. Também é natural que os minarquistas se sintam atacados desproporcionalmente em relação às outras correntes ideológicas que representam ameaças maiores. Mas o remédio que os minarquistas propõem em relação aos anarquistas — desenfatizar as diferenças e enfatizar as semelhanças — me parece não ser tão bom assim.

Por quê?, você me pergunta. Porque essa estratégia abre a porta para que o debate fique viciado — isto é, ele aliena certas questões, tirando-as da pauta, e permite que outras questões mais se tornem anátema. Digamos que você seja minarquista e ache que a discussão sobre a existência ou não do estado seja uma questão menor em relação às grandes invasões da liberdade que são perpetradas ao redor do mundo hoje em dia. De fato, eu seria o primeiro a admitir isso — mas você vai mais longe e quer que as pessoas parem ou reduzam significativamente as discussões sobre um assunto tão irrelevante.

Mas por que suprimir só essa questão? Por que também não suprimir a discussão sobre a existência ou não, digamos, do ensino público? Ou da saúde pública? Ou do banco central? Ou, de fato, por que também criticar o banco central e não simplesmente certas políticas implementadas pelo banco central? Evidentemente as políticas que o banco central implementa são imediatamente danosas, e focar na própria existência dos bancos centrais pode indispor os estritamente minarquistas em relação aos liberais mais moderados. E por que parar por aí? Por que também não relegar a segundo plano a discussão sobre, digamos, obras públicas? Nós podemos focar no desperdício gerado por certas obras públicas — ponto que certamente une diversos liberais (isto é, desde os mais radicais aos mais moderados) e vários social-democratas.

Há sempre uma questão mais urgente que requer atenção imediata dos liberais, mas a tática dos ecumenistas, de tentar construir uma grande coalizão liberal, esbarra invariavelmente na pergunta: por que não uma coalizão ainda maior?

O problema se reduz à questão mais específica: qual é o objetivo dos liberais? Responder a essa pergunta também esclarece por que a tentativa de construir grupos cada vez mais amplos de liberais sempre fracassa.

Ela fracassa porque, embora o objetivo mais geral dos liberais seja aumentar a liberdade individual e diminuir o escopo do estado, esse não é um objetivo em volta do qual se constrói uma coalizão. Coalizões são construídas em torno de objetivos específicos. Mais liberdade individual não é um objetivo de uma coalizão política, mas de um grupo ideológico. Uma coalizão política deve ter como objetivo o impeachment do presidente, a resistência ao serviço militar obrigatório, a extinção do BNDES. Construir uma liga pela liberdade individual serve para divulgar uma idéia, mas não é uma ação prática contra o "inimigo".

Assim, tentar fazer com que os liberais não se digladiem entre si é inútil. E não apenas inútil, mas também deletério, já que canaliza o debate e faz com que cada vez mais questões se tornem indiscutíveis. Assim, o debate se fecha sempre que assuntos como democracia, ensino público, saúde públca, direitos sociais, etc, são abordados. Suprimir certas questões é efetivamente um desserviço à causa liberal, portanto.

O clamor por mais amor e carinho intra-movimento se baseia numa incompreensão da dinâmica política: as idéias políticas determinam os cursos de ação prática, mas não diretamente. As idéias mais abstratas são o determinante dos limites do debate político, não os determinantes de ações práticas.

Por isso foi possível que a Anti-Corn Law League, talvez o último grande movimento liberal da história, tivesse sucesso. Ele se assentava sobre uma base filosófica liberal, mas seu objetivo era bem mais restrito que a implantação total do liberalismo. O mesmo vale para a Revolução Americana que, embora tenha libertado os EUA da Grã-Bretanha, manteve o debate aberto entre os revolucionários sobre o que fazer após a independência.

Então, por incrível que pareça, apesar do o que os integrantes do Judean People's Front possam achar, o People's Front of Judea, o Judean Popular People's Front e o Popular Front of Judea podem até ajudá-los. Apesar de (ou exatamente por) serem splitters.