domingo, 9 de junho de 2013

Uma forma alternativa de compreender a democracia e a constituição

Há uns dez anos eu planejava participar do Prêmio Donald Stewart Jr, mas acabava nunca entrando. O concurso, do Instituto Liberal-RJ, anualmente leva três pessoas, que escrevem os melhores textos de acordo com seus temas, para um seminário nos EUA. De acordo com o formato do concurso em 2013, semanalmente os organizadores liberaram um tema sobre o qual os participantes escreveriam. Este ano, finalmente eu participei e entrei com um texto em todas as sete semanas do concurso, sob pseudônimo.

O concurso agora acabou e eu já fiquei em terceiro lugar com um dos meus textos e de fato consegui a viagem para o Cato Institute em Washington. Assim, vou postar aqui os textos que escrevi para que eles não se percam no limbo do concurso e das páginas do IL na internet.

A qualidade dos textos varia, sendo o melhor o que de fato foi premiado. De qualquer maneira, vou postar todos aqui, mesmo aqueles em que eu não estava muito inspirado.

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Tema da primeira semana: Democracia e constituição

Uma forma alternativa de compreender a democracia e a constituição

Existe uma ideia prevalente – principalmente entre círculos liberais, e ilustrada pelo próprio tema do concurso desta semana – de que a democracia é inerentemente contrária à ideia de constituição. A constituição, embora suscetível a emendas, aparenta ser um bloqueio aos anseios populares. Ela coloca um freio naquilo que está sujeito ao debate público democrático.

Pretendo aqui defender uma ideia diferente. A contraposição de constituição e democracia presume definições rígidas de constituição e democracia. Uma constituição, segundo essa dicotomia, é um documento rígido que conta com disposições e regras legais, e está acima do jogo democrático de votos, eleições, etc. Já a democracia é definida, concomitantemente, como o poder da maioria (frequentemente exercido por eleições, votos, consultas populares).

Essa ideia de uma constituição soberana que determina o que está ou não dentro do escopo democrático parece, porém, uma ilusão metafísica. As limitações constitucionais não existem à parte do comportamento e da interação dos indivíduos reais de uma sociedade. Uma constituição nem mesmo precisa ser um documento escrito, basta olhar o exemplo da Grã-Bretanha. Além disso, mesmo que o seja, não há nada que garanta que esse documento vá ser respeitado e cumprido; basta ver o caso da União Soviética, que também possuía uma constituição escrita e aparentemente rígida, e do próprio Brasil, que tem que ignorar grandes nacos de sua Carta Magna para manter uma sociedade minimamente funcional.

Instituições sociais, pesos e contrapesos legais, só existem enquanto mantidas em funcionamento pelos próprios indivíduos. É um processo contínuo. A constituição, portanto, é menos uma garantia de nossas liberdades e mais o resultado de um processo social que garanta essas liberdades. Não é o agente causador, mas sim o subproduto.

O filósofo libertário Roderick Long afirma:

Uma constituição não possui existência independente do comportamento e das interações de seres humanos reais. [...] [A]s estruturas [de limitação constituicional] existem somente enquanto forem mantidas por seres humanos agindo sistematicamente de certas maneiras. Uma constituição não é um robô impessoal e auto-aplicável. É um padrão contínuo de comportamento, e persiste somente enquanto os agentes humanos ajustam esse padrão a suas ações. Uma vez que os humanos possuem livre arbítrio, nenhum padrão de comportamento pode ser automaticamente autoperpetuado. (LONG, Roderick. Anarchism as Constitutionalism.)1

Assim, uma constituição não é tanto uma limitação social de cima para baixo. É um exercício social contínuo. Não é à toa que autores como La Boétie e David Hume2 já haviam identificado muito tempo atrás as raízes ideológicas do poder. Ou seja, nenhum governo consegue preservar sua posição de poder sem uma aprovação ideológica da população em geral. Igualmente, uma constituição só permanecerá em vigor se a população, no mínimo, tacitamente concordar com suas premissas.

Logo, uma constituição, mesmo com suas disposições intergeracionais e limitadoras do que a política pode discutir, podem ser (e frequentemente são) democráticas nesse sentido mais amplo. Isso não significa que todos os governos e constituições são inerente e automaticamente válidos; mas significa dizer que uma ordem social não persiste por longos períodos sem a aprovação ideológica contínua da população.

Não existe, dessa forma, uma tensão irreconciliável entre democracia e constituição; a democracia, se entendida como uma distribuição de poder social e não como uma mera participação num sistema político, é necessária para qualquer constituição. É essa democracia que define qual vai ser o conteúdo da constituição. Tal conteúdo está sempre em aberto, sempre aberto à consideração da sociedade – nenhuma cláusula pétrea pode negar esse fato político e sociológico.

Esse amplo entendimento sobre o que caracteriza uma democracia e uma constituição também esclarece outras questões. Nenhuma minoria de cidadãos tem poder de impedir emendas à constituição se elas de fato são socialmente aceitas; inversamente, uma emenda que pretenda suplantar uma “cláusula pétrea” teria que ter grande apoio ideológico popular para ser aprovada. E nenhuma constituição nos torna escravos do passado – o que pode nos tornar escravos é nosso apego, enquanto sociedade, a ideias retrógradas.

Notas:
1 Disponível em: . Acesso em 15 de março de 2013.
2 Cf., e.g., LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária, e HUME, David, Do contrato original.