sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
"Mas ocorre com tanta freqüência que devíamos legalizar"
Homicídios: 39/100 mil
*Dados antigos (1990 e 2000), mas, ora, quem se importa?
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Uma introdução ao anarquismo de mercado
O anarquismo de mercado pode ser considerado uma extensão e uma radicalização do liberalismo clássico. O liberalismo recebe muita publicidade negativa hoje em dia e, em sua maior parte, ela é imerecida - como na atual crise mundial, que é debitada na conta dos pobres liberais, embora os mesmos liberais há tempos já venham alertando para os problemas que as intervenções corriqueiras (que ocorrem a todo momento e são ignoradas, de alguma maneira) no mercado causam.
O liberalismo surgiu como uma reação a tudo que pragueja o mundo hoje em dia: às guerras e o militarismo, ao poder ilimitado dos governos, aos impostos, à sociedade de classes, às regulamentações que proibiam as pessoas de produzir. O liberalismo, por tudo isso, era o partido dos pobres e dos oprimidos, daqueles que defendiam que as pessoas tinham direito de produzir e manter os frutos do próprio trabalho, e não deixa de ser irônico que hoje em dia ele seja visto como uma ideologia à serviço dos ricos - embora sejam os adversários dos liberais que estejam se coçando para declarar o fim do livre mercado e dar bilhões e bilhões de dólares para os banqueiros.
De qualquer forma o liberalismo ganhou grande prestígio nos séculos XVIII e XIX, e levou às diversas revoluções que acabaram, entre outras coisas, com aquela coisa do poder real absoluto. Foi o liberalismo que tentou instituir os direitos iguais para todos e limitar ao máximo o poder de exploração do estado, cujas funções deveriam ser a de estrita defesa, nas palavras de John Locke, da vida, da liberdade e da propriedade, os direitos naturais do indivíduo.
Porém, os liberais clássicos não foram longe o suficiente na sua crítica ao poder do estado. É bem verdade que eles eram bastante sensíveis à ameaça apresentada por essa instituição, mas não tiraram as conclusões lógicas das suas críticas.
Por um lado, eles não perceberam que o aval deles a um "estado mínimo" era em si próprio imoral de acordo com os próprios princípios liberais, uma vez que o estado, para sua própria existência, necessariamente invade a liberdade e a propriedade dos cidadãos (através da cobrança de impostos).
Por outro, eles também não enxergaram que o estado é a máquina perfeita de exploração: por não ser limitado pelas normas comuns de convívio social (o respeito pela propriedade privada, a voluntariedade em vez da força), o estado é a ferramenta perfeita pela qual um grupo pode se beneficiar às custas dos outros. O estado pode não apenas tirar de uns e dar para outros, através de seus impostos, ele também pode controlar uns em favor de outros, através das suas leis.
Seu poder de monopólio combinado com seu poder de cobrar impostos também assegura que o estado vá ser cada vez mais exploratório, cobrando preços cada vez mais altos por serviços cada vez piores. Daí vemos as infinitas leis de hoje em dia, que não protegem senão os interesses de alguns, e a escalada da violência, inclusive (talvez principalmente) de policiais. Parece bem óbvio que o estado, embora devesse se limitar à defesa dos seus cidadãos, fracassou miseravelmente nessa função.
E é daí que surgem duas conclusões um tanto óbvias a esta altura: (1) o estado é uma instituição imoral, essencialmente anti-social e/ou ineficiente que, portanto, deve ser abolida; (2) suas funções indispensáveis devem ser executadas através de arranjos voluntários do mercado, sujeitos ao respeito pela propriedade privada. Estes são os princípios básicos do anarquismo de mercado - e de seus subgrupos.
(Ah, outra definição que já li dizia que o anarquismo de mercado é igual ao anarquismo normal, mas com melhores lojas. Se eu usasse essa definição, porém, o texto ficaria de certo modo reduzido.)
E quem defende isso?!
Bom, eu defendo. Várias outras pessoas também defendem e hoje em dia pode-se dizer que nós já enchemos uma Kombi. Evidentemente não foi sempre assim e a idéia teve que surgir em algum lugar. Ela foi apresentada de forma sistematizada pela primeira vez pelo economista liberal franco-belga Gustave de Molinari, em um ensaio chamado De la production de la securité, de 1849, onde ele escreveu:
Se existe uma verdade bem estabelecida na economia política, é esta:Os liberais não eram um grupo homogêneo, claro. Em suas fileiras haviam desde os mais intervencionistas (como John Stuart Mill) até os defensores de um estado mínimo estrito (como Frédéric Bastiat) e os que falavam em favor do direito de recusa a se submeter ao estado (como Herbert Spencer). Tanto não eram um grupo homogêneo que dele saiu o radical Gustave de Molinari.Que em todos os casos, para todas as mercadorias que servem à provisão das necessidades tangíveis ou intangíveis do consumidor, é do maior interesse dele que o trabalho e o comércio permaneçam livres, porque a liberdade do trabalho e do comércio tem, como resultado necessário e permanente, a redução máxima do preço.E esta:Que os interesses do consumidor de qualquer mercadoria devem sempre prevalecer sobre os interesses do produtor.Assim, ao seguirmos esses princípios, chegamos a esta rigorosa conclusão:Que a produção de segurança deveria, nos interesses dos consumidores desta mercadoria intangível, permanecer sujeita à lei da livre competição.De onde se segue:Que nenhum governo deveria ter o direito de impedir que outro governo entrasse em competição com ele ou que requeresse que os consumidores adquirissem exclusivamente seus serviços.Contudo, eu devo admitir que, até o presente momento, se tem evitado chegar a essa rigorosa implicação do princípio da livre competição.
Mas, por mais radical que fosse, Molinari não se via como nada além de um liberal consistente. Não se via como "anarquista". Isso não impediu, porém, que gente saída das linhas anarquistas viesse a defender idéias bastante parecidas com as dele. Eu tenho em mente os expoentes do anarco-individualismo americano, como Lysander Spooner e Benjamin R. Tucker (dentre vários outros, mas esses são considerados paradigmáticos dentre os anarco-individualistas dos EUA).
Eles, bem ao contrário do que predominava no anarquismo europeu, decidiram colocar ênfase no respeito à propriedade privada (com algumas diferenças em certos casos, como na questão da propriedade da terra para Benjamin Tucker), no comércio e na soberania do indivíduo.
Lysander Spooner via no estado o maior violador dos direitos naturais de propriedade concebível. Spooner considerava o estado pouco mais que uma máfia, organizada com o propósito exclusivo de explorar as pessoas. Tucker tinha uma visão semelhante da instituição, embora não compartilhasse da crença nos direitos naturais. Apesar disso, ele considerava o estado uma instituição anti-social, criadora de "monopólios" que mantinham os indivíduos em opressão e miséria.
Tanto Molinari quanto os anarco-individualistas americanos não passavam de figuras obscuras no século XIX. Eles teriam ficado virtualmente esquecidos até hoje se não tivessem sido resgatados a partir dos anos 1950 pelos anarco-capitalistas, dos quais os mais conhecidos são Murray N. Rothbard e David D. Friedman.
Rothbard expôs sua defesa da concorrência entre produtores de segurança no livro Power and Market, de 1970, onde também detalhou todos os efeitos deletérios da intervenção estatal na economia. Em For a New Liberty, lançado ao mundo em 1973, ele apresentou a defesa moral da sociedade livre, baseada na propriedade privada e nas trocas voluntárias. David D. Friedman, filho do famoso economista Milton Friedman, por outro lado, apresentou em The Machinery of Freedom (1970) uma defesa pragmática da sociedade sem estado. Para ele, uma anarquia "capitalista" seria capaz de prover tanto segurança quanto liberdade para todos.
Hoje em dia há toda sorte de pessoas associadas com o "movimento libertário" (principalmente o americano) que defende uma variante ou outra do anarquismo de mercado (e, cabe adicionar aqui, eu uso o termo "anarquismo de mercado" de forma ecumênica, para abrigar todos os grupos que defendem a propriedade privada e a abolição do estado, a despeito de outras diferenças que tenham entre si. Se eu utilizasse meramente a expressão "anarco-capitalismo", eu estaria alienando uma grande parte do movimento que não se identifica com o rótulo por um motivo ou por outro).
Há, entre outros, os anarco-capitalistas (dentre os quais se destacam os rothbardianos), os geoanarquistas (que diferem dos demais em suas concepções sobre a propriedade da terra), os agoristas (rothbardianos com visões particulares sobre a estratégia para alcançar uma sociedade livre) e até mesmo os anarco-individualistas mais clássicos (que fazem um revival das teorias dos velhos anarquistas americanos). De forma geral, há diversas justificativas éticas para a sociedade anárquica: deontológicas, contratualistas, conseqüencialistas, egoístas ou baseando-se na ética da virtude. Ao gosto do freguês.
Ok, mas a teoria que essa gente toda defende é correta ou viável?
Acredite, o que não faltou até hoje foram críticas ao anarquismo de mercado. Alguns criticaram a teoria moral dos direitos naturais, que exclui definitivamente a existência de um estado (por ser definido, à moda weberiana, como instituição que detém o monopólio da jurisdição sobre certo território e o poder de taxação). Outros criticaram a viabilidade prática do sistema. Tentarei abordar rapidamente aqui as objeções mais comuns e suas respostas anarquistas convencionais. Isto não significa, obviamente, que o debate esteja encerrado ou que algum dos lados possui uma resposta definitiva:
O estado não é ilegítimo: Às vezes se argumenta que a autoridade estatal não é ilegítima, porque, ao permanecer na jurisdição do estado, o indivíduo dá seu consentimento implicitamente ao seu poder. O problema, segundo os anarquistas, é que não há qualquer consentimento, já que o estado não é dono de todo o território do país. Um argumento semelhante diz que o indivíduo consente à autoridade do governo ao participar de eleições ou se envolver de outras maneiras com o estado. Da mesma forma, o consentimento dado aí é dúbio, já que o próprio estado impõe as condições do acordo - que não pode nem mesmo ser desfeito, ao contrário dos contratos comuns.
Sem o estado, haveria uma guerra de todos contra todos: A objeção hobbesiana (referente ao filósofo inglês Thomas Hobbes) contra a anarquia surge ocasionalmente. Os anarquistas de mercado tendem a responder que a ausência de um estado não significa ausência de leis e que, se os indivíduos possuem uma tendência natural para a violência, a própria existência do estado seria impossível, já que ele também é composto por indivíduos.
Agências de segurança privadas entrariam em guerra: Um dos mais conhecidos argumentos contra a concorrência de provedores de defesa e segurança. E uma das respostas mais comuns é mostrar que as guerras seriam menos prováveis entre agências de segurança do que entre estados, já que as agências, ao contrário dos governos, arcam com todo o ônus de suas aventuras beligerantes.
As disputas não poderiam ser resolvidas definitivamente: É claro que surgiriam disputas legais entre as pessoas, mesmo com a inexistência de um estado. Os anarquistas tendem a defender que as pessoas poderiam contratar livremente serviços de arbitragem. No entanto, críticos argumentam que, nesse caso, não existiria uma instância superior final que fosse capaz de decidir os casos de uma vez por todas. Segundo eles, um sistema de concorrência entre árbitros privados teria como resultado infinitos recursos, sem ser possível chegar numa resolução final. Anarquistas, contudo, mantêm que bastaria que essas questões fossem resolvidas antecipadamente entre os árbitros ou que as decisões fossem delegadas a uma terceira parte neutra.
Anarquia de mercado é impossível, não há propriedade privada sem governo: Essa é uma crítica comum das linhagens não-individualistas do anarquismo. Mas é muito mais fácil apontar para o fato de que o mais improvável é que toda a propriedade se torne pública sem a existência de um corpo jurídico unificado. Basta que as pessoas, como hoje em dia, aceitem e respeitem geralmente a propriedade privada para que ela exista. A propriedade privada não existe por decreto governamental, mas porque ela é ideologicamente aceita pela população. Sendo assim, mecanismos privados de defesa da propriedade tenderão a emergir.
Surgiria um novo governo: Algumas críticas afirmam que haveria uma tendência concentradora na sociedade anárquica (ganhos de escala na produção de defesa e segurança) que faria com que surgisse um novo estado. Os anarquistas afirmam que isso, embora possível, é improvável, já que não se verifica no mercado a mesma concentração que há no caso do monopólio compulsório estatal.
A segurança é um bem público: Este é um argumento mais técnico, que diz que a produção de segurança não pode ser limitada àqueles que de fato usufruem dos serviços ofertados. Os argumentos anarquistas em resposta variam entre a negação de que haja problemas de bens públicos relevantes (isto é, os indivíduos internalizam todos os custos relevantes da segurança que recebem) ou afirmam que o estado não resolve o problema, já que em vez de falhas de mercado teríamos que lidar com falhas de governo.
Por que eu deveria me importar com tudo isso?
O status quo causa enorme fascinação no imaginário das pessoas, mas se pararmos por alguns momentos para considerarmos o histórico de pobreza e violência causadas pelos estados no mundo todo, nós percebemos que talvez seja de fato necessária uma alternativa radical que acabe com a discussão viciada que vigora hoje em dia.
No caso do Brasil, por exemplo, apesar dos continuados fracassos do governo em prover algo que ao menos lembre vagamente serviços de qualidade, os políticos continuam sendo vistos como messias a cada eleição que passa. E isso apesar dos números calamitosos em literalmente todas as áreas. Aqui, o desemprego chega a passar dos 15% (níveis de países em profunda depressão econômica) e é tido como natural pelas pessoas, que enxergam em concursos públicos a maior esperança de um futuro decente. Sem falar das estatísticas sofríveis em saúde e educação, e da violência galopante no país. Isso tudo nos deveria fazer parar para pensar por um minuto e talvez perguntar "Por que não acabar com isso tudo?".
De fato, se substituíssemos a mão pesada do estado pela mão invisível do mercado, poderíamos combater a maioria desses problemas, senão todos. Sem as regulações do governo, o desemprego cairia dramaticamente e a economia entraria numa espiral de desenvolvimento. Sem bancos centrais e a manipulação da moeda perpetrada por eles, crises seriam muito mais raras e brandas. Sem desemprego, pobreza e o inútil combate às drogas, a violência cairia consideravelmente. A segurança seria custeada voluntariamente, seus serviços tenderiam a melhorar e seu preço cair, ficando acessível a todos - ao contrário do cenário atual, em que não há segurança para ninguém. Não haveria mais a gritante injustiça que ocorre a todos os momentos no mundo (principalmente em momentos de crise, como atualmente) do saque dos bolsos das pessoas em benefício de banqueiros e grandes empresas em geral. Seria o fim da burocracia e da plutocracia.
Além do mais, a sociedade anarquista é, acreditamos nós, a única compatível com os direitos indivíduais que formam a base do senso de justiça de todas as pessoas: a crença de que se deve submeter a todos às normas comuns do convívio social.
E mesmo para os não tão românticos, que não acreditam que temos a possibilidade de alcançar uma sociedade desse tipo em nossas vidas, por que não tê-la como ideal assintótico? Vamos nos aproximar dela o máximo possível? Dedique um tempo ao tema, eu espero.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Meu próprio sistema político-moral
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Sociologia bem escrita
É interessante notar que na análise da cidade pequena americana, tanto o romancista como o sociólogo tiveram, cada qual a seu modo, a atenção despertada por detalhes semelhantes e chegaram a conclusões muito parecidas. Interessaram-se ambos mais pela situação social do que pelo poder. O romancista ocupou-se de costumes e dos efeitos frustradores da vida na pequena cidade, nas relações e na personalidade humanas, o sociólogo não dedicou muita atenção à pequena cidade como uma estrutura de poder, e muito menos como unidade no sistema de poder nacional. A semelhança de seus efeitos descritivos é revelada pelo fato de que, apesar das provas que encerram, os infindáveis "estudos de comunidades" dos sociólogos parecem freqüentemente romances mal escritos; e os romances, sociologia bem escrita. -- C. Wright Mills, A elite do poder, cap. II, 2, n. 1.Acho que podemos extrapolar e dizer que, no geral, romancistas compreendem melhor as relações sociais do que sociólogos, certo?
sábado, 25 de outubro de 2008
O brasileiro lê apenas X livros por ano! Shocking!
Serginho Groisman é um ícone, um símbolo que representa a beautiful people na minha mente, e uma de suas principais plataformas é o incentivo à leitura. Concomitantemente, minha posição a respeito da leitura é que devemos desincentivá-la.
O problema com isso é que eu abro dois flancos de ataque para meus inúmeros nêmesises:
1) "Ah, mas você só diz isso porque é vagabundo, preguiçoso, não lê nada, e é meio toupeira, pra dizer a verdade";Minha defesa dessas acusações seria a seguinte:
2) "Ah, mas você é um hipócrita, fica traduzindo livros e publicando na internet, depois vem pagar de gostoso e ficar falando que ler é palha".
Eu não sou de fato contra a leitura, mas contra o endeusamento da leitura. Eu nunca defendi que a leitura fosse caminho para crescimento pessoal ou algo do tipo. E a maioria das pessoas concordaria comigo se parasse por alguns minutos para pensar sobre o assunto. Por quê? Ora, ora, todos sabem que existem milhares de livros porcaria, que não valem uma folheada. E no entanto as pessoas insistem em defender a leitura per se, sem limitações.
Certamente eu também não bateria no peito para dizer que não leio, que quem lê é nerd e tem que sair de casa, pegar um bronze. (Aliás, uma menina com quem eu morei não queria ser minha amiga porque eu era muito nerd e ficava "lendo o dia todo". Há idiotas para todos os lados, o que eu posso dizer?)
Eu acho que, no geral, nos preocupamos muito mais com se os outros estão lendo do que se nós estamos lendo. E se estamos lendo o que nos interessa. É dessas coisas que nascem coisas ridículas, como a construção de bibliotecas em favelas, como se fossem mais importantes do que saneamento básico para as famílias carentes (e na minha turma da faculdade já teve gente que defendeu isso).
Discussões sobre leitura me lembram sempre, também, as ridículas discussões sobre videogames, em que sempre alertam para o isolamento que os jogos podem causar, como se a socialização fosse um valor absoluto e não condicionado a outros fatores (que tipo de socialização? com quem será a socialização?).
Pensando nisso tudo, eu fiquei feliz ao encontrar a entrevista da Superinteressante de agosto, ano corrente, em que o psicanalista e professor de literatura Pierre Bayard, autor do livro Como falar de livros que não lemos, diz que ler não é tão importante assim.
Segue a entrevista na íntegra, porque além de não defender a leitura no geral, eu também não defendo a leitura de alertas de copyright:
Quer dizer que é possível ser culto sem ler um único livro inteiro?
Sem ler uma obra da primeira à última linha? Sim, claro! Para uma pessoa realmente culta, o mais importante não é ter lido várias obras por completo, e sim saber se orientar, situar o livro e o autor dentro de um conjunto, para poder compará-los e relacioná-los com outros. É como um encarregado do tráfego ferroviário: ele precisa estar mais atento ao conjunto de vagões e ao cruzamento dos trens do que ao detalhe do interior de um vagão. Ter essa visão do conjunto é muito mais importante do que saber detalhes do interior de um livro.
Quase todo mundo defende que uma pessoa precisa ler muito, mas nem todos lêem? Por quê?
É justamente essa obrigação de ter que ler que nos impede de chegar aos livros. Sacralizamos tanto os livros, o fato de ler e ter que guardar todas as informações e detalhes dos textos, que acabamos morrendo de medo das palavras e, então,... não lemos. Prefiro evitar todo tipo de "dever" ou "obrigação" sobre esse assunto. A leitura é um ato de liberdade. Não há como impor regras a ela.
Como assim?
Eu, por exemplo. Nunca li o Ulisses, de James Joyce, e nem pretendo. E nem por isso deixo de conhecê-lo. Sei que a história se passa em apenas um dia, tem a ver com a Odisséia, de Homero, e sei de vários detalhes que me permitem ter uma ótima conversa sobre o texto com quem quer que seja. E para isso não preciso mergulhar em suas páginas. Quer ver outro ótimo exemplo? Todo mundo fala da Bíblia. mas são raríssimas as pessoas que a leram do começo ao fim. E, no entanto, é um dos livros mais citados do mundo. Há milhares de formas de abordar um livro e não somente sua leitura integral.
E um desses jeitos é justamente a não-leitura?
A relação com a leitura é complexa. Entre a leitura e a não-leitura há uma infinidade de graus. Não podemos achar que a leitura da primeira à última linha é a única existente – até porque muitas vezes não fazemos isso. Podemos simplesmente percorrer as páginas do livro, ou ler o titulo e a orelha, ou então passar os olhos por um ensaio sobre a obra sem nunca tê-la entre as mãos. Um livro também pode entrar na nossa vida e fazer parte dela quando ouvimos falar sobre ele. Ler ou ouvir o que os outros dizem são atitudes que fazem com que tenhamos uma idéia e um julgamento sobre o seu conteúdo. E tudo isso já é uma relação com suas páginas, é também uma forma de ler.
Não precisamos sentir culpa ou vergonha por não ter lido as grandes obras?
Não – é muito melhor ser sincero com si próprio. A obrigação de ler os clássicos ou de ler os livros do começo ao fim é tão grande que faz muita gente mentir que leu, até mesmo professores universitários. Instaura-se assim uma mentira coletiva da cultura sem lacunas, de que devemos nos angustiar por não termos tanto quanto poderíamos. Mas não precisamos ter vergonha nem culpa. É melhor praticar a não-leitura ativa, ou seja, admitirmos que não lemos tal obra e, mesmo assim, falar sobre ela.
Você fala sério quando sugere que a não-leitura seja ensinada nas escolas?
Eu prefiro não dar conselhos. A idéia do que escrevi é mostrar uma forma leve e divertida de tirar a culpa do leitor por ele não ter lido essa ou aquela obra. Fazer com que as pessoas reflitam sobre a ação de ler, percam o trauma e, mais aliviadas, possam ler mais e livremente. Depois que os livros saíram, dezenas de pessoas vieram me confessar que ficaram mais calmas depois de perceber como ficam culpadas por não ter lido as grandes obras.
Se não temos a obrigação de ler tudo, por que alguém deveria ler seu livro?
Não deveria. Eu escrevo pensando em pessoas que se interessam pelos livros e que gostam de refletir sobre hábitos de leitura. Estudantes, professores, pessoas que estão na área das letras. Ninguém tem a obrigação de ler o que escrevi. Não quero dar conselho algum, da mesma maneira que não concordo com a idéia de que alguém "deve" ler Marcel Proust, "tem que" ler James Joyce.
Então podemos falar de livros que não lemos?
Sim, é até melhor que a gente fale sobre um livro sem tê-lo lido completamente. Um debate nunca se limita a um livro: geralmente acaba na discussão sobre nossas noções de cultura e literatura. Se eu tiver as mesmas idéias e referências idênticas às das pessoas com quem estou conversando, qual a graça? Aí não existe uma boa discussão, não existe troca de idéias, não existe prazer. A boa discussão está em nunca conhecer tudo.
Não há o perigo de incentivar a preguiça de ler?
Não quero de modo alguém dizer que não precisamos dos livros. Eu adoro ler, leio muito e não escrevi um tratado para que as pessoas parem de ler. A idéia é somente tirar o livro do pedestal do sagrado em que ele está. Quem incentiva a preguiça é a exigência de ler. Na escola, os alunos são obrigados a decorar detalhes do texto. Isso os afasta da leitura. Se o aluno não tem uma memória de elefante, pronto, vai mal na prova. A temida ficha de leitura, por exemplo. Eu nunca consegui fazer uma ficha de leitura decente na minha vida, porque tenho uma memória terrível. E meu filho, quando passou por essa tortura, me disse que era esse trabalho de decorar personagens e o enredo que o desencorajava a ler. Foi ai que comecei a pensar sobre esse trauma e sobre os milhares de caminhos que existem quando se trata de literatura.
Você fala que a "desleitura" é um desses caminhos. Dá para ler um livro se esquecendo dele?
Assim que terminamos um livro entramos em um movimento direto rumo ao esquecimento. Vamos esquecendo as passagens, as palavras, e acabamos transformando a obra lida em algo completamente diferente. Se li todo o Crime e Castigo e depois esqueci, isso quer dizer que eu li o livro ou não? E se não me lembro de nada? Se apenas o folheei, isso quer dizer que não li? Se alguém tem uma péssima memória – como eu –, acaba esquecendo inclusive se leu ou não o texto. Mas, cada vez que citamos a obra, ela vai se tornando outra coisa, vai mudando. É isso que eu chamo de desleitura, esse movimento pessoal rumo ao esquecimento.
Isso é bom ou ruim?
É bom. O filósofo Montaigne, por exemplo, era um esquecido célebre. Há passagens dos Ensaios em que ele diz que as pessoas mencionavam seus escritos e ele não percebia. Imagino que minha memória seja ruim como a dele. Já precisei reler meus livros porque os jornalistas começaram a solicitar entrevistas e eu não tinha idéia do que estavam falando. Mas isso faz também com que possamos ter conversas enriquecedoras sobre esses textos, porque nunca uma pessoa vai ter dentro de si o mesmo livro que outra. Cada um adiciona coisas suas às obras que leu. Há diferenças culturais que fazem com o que um livro possa ter infinitas leituras.
Em Como Falar de Livros Que Não Lemos, você dá conselhos e técnicas a quem quer ter essa atitude. As dicas vieram de experiência própria?
Quem vive no mundo da literatura, como no caso de professores como eu, sabe, na verdade, que não é preciso ler para falar de livros. Professores, críticos e jornalistas não têm tempo hábil de ler tudo o que poderiam, e isso acontece desde sempre. Então por que não admitem isso? Não é preciso decorar pontos e vírgulas para ter uma opinião sobre as obras. Para essas pessoas, criei algumas técnicas. Mas não vou enumerar para você porque eu sei que tem muita gente que vai comprar o livro só por causa dessa parte.
Você está ciente que a livro pode ser vendido como um guia dos picaretas da leitura?
Mas claro! Essa é a brincadeira, mas é muito melhor guardar segredo. Vai que o livro vira best seller também no Brasil.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
É por isso que eu fui eleito, para empreender mudanças
Teh Power Elitez, d00d
Se o Estado centralizado não pudesse confiar nas escolas particulares e públicas para inculcar a fidelidade nacionalista, seus líderes procurariam sem demora modificar o sistema educacional descentralizado. Se o índice de falência entre as 500 principais empresas fosse tão grande como o índice geral de divórcio entre os 37 milhões de casais, haveria uma catástrofe econômica em escala internacional. Se os membros dos exércitos dessem a estes apenas uma parte de sua vida proporcionalmente igual à que os crentes dão às igrejas a que pertencem, haveria uma crise militar.Comecei a serializar A elite do poder, de C. Wright Mills, no libertyzine. Achei que os meus literais 5 leitores deste blog se interessariam.
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Terminei de ler Death Note, o mangá é melhor que o anime, sério. O epílogo também é massa.
Perguntaram o que eu queria no lugar. Na verdade, eu não quero nada no lugar. Couldn't care less se os ônibus têm ou não roleta. Se tivessem todos ar-condicionado, podem colocar três roletas mais caminho de pneus para atravessarmos antes de chegar nos assentos.
Mas eu ingenuamente citei o fato de que, nas cidades em que eu estive no exterior, não havia roletas nem cobradores nos ônibus.
Ouvindo isso, as pessoas entram em estado berserk, começam a me atacar, como se eu fosse o maior militante anti-roletas do país, presidente da ONG Roletas Nunca Mais, pós-graduado em sociologia do transporte coletivo.
Uma menina disse que o Brasil teria que evoluir uns 200 anos para que as roletas sejam dispensáveis. O que talvez seja verdade, embora eu sinceramente não tenha calculado o tempo tão precisamente e desconfie da metodologia adotada. Ficou dizendo que as pessoas nunca respeitariam ônibus sem roletas e cobradores, ninguém ia pagar, o caos reinaria.
O que eu acho mais curioso é que as pessoas sempre acham que elas próprias são civilizadas e capazes de respeitar um sistema que, digamos, não use roletas (ou mesmo caixas de auto-atendimento em supermercados), mas os outros são bárbaros demais. Não sei de onde tiraram essa noção, e me parece que a diferença de honestidade em geral não é muito grande (e, me parece ainda, que no passado as pessoas eram ainda mais honestas, e o mundo contava com menos mecanismos eletrônicos de vigilância, o que levanta dúvidas acerca da "evolução" necessária ao país - parece que seria necessário justamente o contrário, um regresso).
Na moral, acho que eu respeitaria mais essas pessoas se elas dissessem: "Sabe por que isso não funcionaria? Porque eu ia sabotar o sistema. Hehehe. *rindo, esfregando as mãos e olhando para os lados*"
domingo, 12 de outubro de 2008
Vamos formar a Incrível & Invencível Aliança Liberal
O problema percebido por esses liberais ecumênicos (e eu falo de liberais porque é o grupo mais amplo em que eu me encaixo e com o qual eu conseqüentemente tenho mais contato, mas imagino que o mesmo problema seja encarado por outras vertentes ideológicas) é que os outros liberais adoram criar facções e gastar todas as energias criticando pontos relativamente menores das próprias teorias em vez de gastar seus recursos com os inimigos reais. Ou seja, os ecumênicos são os integrantes do Judean People's Front, chamando o pessoal do People's Front of Judea de "splitters".
Como eu sou um "anarco-liberal" (ou anarco-capitalista, embora eu não goste do nome, ou anarquista de mercado, embora este soe tão bem em português), eu sou talvez um dos piores splitters do liberalismo. Portanto, eu falarei da questão do purismo e do faccionismo da minha perspectiva.
O que ocorre é que minarquistas, aqueles que acreditam no estado, ao contrário de mim, ficam querendo que eu pare de criticar certos pontos de suas idéias para criticar os inimigos comuns. É natural que os minarquistas queiram o apoio de anarquistas nas questões maiores, afinal, os dois grupos concordam em 90% das questões, and the more the merrier. Também é natural que os minarquistas se sintam atacados desproporcionalmente em relação às outras correntes ideológicas que representam ameaças maiores. Mas o remédio que os minarquistas propõem em relação aos anarquistas — desenfatizar as diferenças e enfatizar as semelhanças — me parece não ser tão bom assim.
Por quê?, você me pergunta. Porque essa estratégia abre a porta para que o debate fique viciado — isto é, ele aliena certas questões, tirando-as da pauta, e permite que outras questões mais se tornem anátema. Digamos que você seja minarquista e ache que a discussão sobre a existência ou não do estado seja uma questão menor em relação às grandes invasões da liberdade que são perpetradas ao redor do mundo hoje em dia. De fato, eu seria o primeiro a admitir isso — mas você vai mais longe e quer que as pessoas parem ou reduzam significativamente as discussões sobre um assunto tão irrelevante.
Mas por que suprimir só essa questão? Por que também não suprimir a discussão sobre a existência ou não, digamos, do ensino público? Ou da saúde pública? Ou do banco central? Ou, de fato, por que também criticar o banco central e não simplesmente certas políticas implementadas pelo banco central? Evidentemente as políticas que o banco central implementa são imediatamente danosas, e focar na própria existência dos bancos centrais pode indispor os estritamente minarquistas em relação aos liberais mais moderados. E por que parar por aí? Por que também não relegar a segundo plano a discussão sobre, digamos, obras públicas? Nós podemos focar no desperdício gerado por certas obras públicas — ponto que certamente une diversos liberais (isto é, desde os mais radicais aos mais moderados) e vários social-democratas.
Há sempre uma questão mais urgente que requer atenção imediata dos liberais, mas a tática dos ecumenistas, de tentar construir uma grande coalizão liberal, esbarra invariavelmente na pergunta: por que não uma coalizão ainda maior?
O problema se reduz à questão mais específica: qual é o objetivo dos liberais? Responder a essa pergunta também esclarece por que a tentativa de construir grupos cada vez mais amplos de liberais sempre fracassa.
Ela fracassa porque, embora o objetivo mais geral dos liberais seja aumentar a liberdade individual e diminuir o escopo do estado, esse não é um objetivo em volta do qual se constrói uma coalizão. Coalizões são construídas em torno de objetivos específicos. Mais liberdade individual não é um objetivo de uma coalizão política, mas de um grupo ideológico. Uma coalizão política deve ter como objetivo o impeachment do presidente, a resistência ao serviço militar obrigatório, a extinção do BNDES. Construir uma liga pela liberdade individual serve para divulgar uma idéia, mas não é uma ação prática contra o "inimigo".
Assim, tentar fazer com que os liberais não se digladiem entre si é inútil. E não apenas inútil, mas também deletério, já que canaliza o debate e faz com que cada vez mais questões se tornem indiscutíveis. Assim, o debate se fecha sempre que assuntos como democracia, ensino público, saúde públca, direitos sociais, etc, são abordados. Suprimir certas questões é efetivamente um desserviço à causa liberal, portanto.
O clamor por mais amor e carinho intra-movimento se baseia numa incompreensão da dinâmica política: as idéias políticas determinam os cursos de ação prática, mas não diretamente. As idéias mais abstratas são o determinante dos limites do debate político, não os determinantes de ações práticas.
Por isso foi possível que a Anti-Corn Law League, talvez o último grande movimento liberal da história, tivesse sucesso. Ele se assentava sobre uma base filosófica liberal, mas seu objetivo era bem mais restrito que a implantação total do liberalismo. O mesmo vale para a Revolução Americana que, embora tenha libertado os EUA da Grã-Bretanha, manteve o debate aberto entre os revolucionários sobre o que fazer após a independência.
Então, por incrível que pareça, apesar do o que os integrantes do Judean People's Front possam achar, o People's Front of Judea, o Judean Popular People's Front e o Popular Front of Judea podem até ajudá-los. Apesar de (ou exatamente por) serem splitters.
A solução definitiva para o caos urbano em São Paulo
Assim como as massas cansadas que chegam à América anseiam por respirar livres, os paulistanos cansados anseiam por transitar livres. Não há um único dia em que não se proponha alguma medida para solucionar o caos urbano nas ruas de São Paulo. Vários especialistas já apontaram soluções, e a solução da moda é o pedágio urbano. Como também sou um especialista de renome em alguma coisa, vou apontar uma lista compreensiva de medidas que devem ser tomadas para se solucionar o problema do trânsito na capital paulista:
1) ...Sei que as medidas acima propostas podem causar certo furor entre os círculos mais burocráticos, mas também acredito que sejam as únicas medidas capazes de assegurar a viabilidade do trânsito em São Paulo.
Até porque várias medidas já são tomadas e não adiantam nada. Convenhamos, se o governo de fato quisesse menos carros em São Paulo, baixaria um decreto os taxando em 5000%, o que possivelmente levaria à adoção de charretes na Avenida Paulista, dando um ar mais clássico ao centro financeiro do país. Imagino que, ao menos, aqueles que reclamam da velocidade e impessoalidade das relações sociais da sociedade contemporânea fossem ficar felizes.
Não fazer nada provavelmente é a opção mais prática e vantajosa porque eleva os custos de se possuir um carro sem qualquer investimento. No ritmo que as coisas andam, em breve não vai mais valer a pena viver em São Paulo e seus habitantes vão procurar outro lugar para morar — sem necessidade de pedágio.
As soluções usuais defendidas pelos "especialistas" sempre envolvem a construção de novas vias e o investimento em transporte público. Em primeiro lugar a construção de novas vias para aliviar o congestionamento urbano equivale, como observou James Kunstler, a afrouxar o cinto para perder peso. Em segundo lugar, é ridículo pensar que se deve "investir" em transporte público quando o governo proíbe o investimento privado no setor, conferindo privilégios para certos grupos com conexões políticas. O resultado é que o custo do transporte público é alto e a qualidade é baixa. Isso ocorre porque geralmente os ônibus e metrôs são vistos como "bens inferiores", ou seja, bens que as pessoas deixarão de usar assim que sua renda aumentar. Óbvio. Se as pessoas andam como sardinhas nos ônibus, não é de espantar que estejam dispostas a destruir a própria vida para financiar um Uno Mille em 36 vezes.
Em São Paulo, honrando a tradição de criatividade legislativa da cidade, ainda há o infame rodízio de automóveis há anos, que, como muitos já notaram, só incentivou as famílias a comprar um segundo carro. O rodízio é um fracasso, mas é uma medida que continua em vigor porque, como diria Mário Henrique Simonsen, o Brasil é o país da contra-indução. Na indução, nós testamos uma teoria e a mantemos se estiver certa; no Brasil, nós testamos uma teoria e, mesmo que ela se mostre errada, nós continuamos com ela até dar certo.
Posso até conceder que os pedágios no centro de São Paulo são uma melhora em relação a outras propostas, porque pretendem internalizar os custos de se andar em vias públicas. Mas o governo não tem como saber qual é o ponto eficiente para precificar o uso das ruas, já que não existe propriedade privada de ruas e sua escassez relativa está oculta. E, além do mais, por que nós deveríamos dar mais dinheiro para um bando de burocratas? Vamos, paulistanos, vocês podem sobreviver mais uns engarrafamentinhos por um bem maior.
Fato é que essas medidas de descongestionamento só são necessárias porque o governo incentiva sistematicamente o adensamento populacional. As cidades crescem muito além do ponto ótimo porque o governo externaliza diversos custos que de outra forma seriam privados.
A existência da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros incentiva, e não desincentiva, a ocupação de áreas perigosas das cidades, como encostas e barrancos. Os moradores, sabendo que serão protegidos de deslizamentos, enchentes, etc, pela Defesa Civil, sempre tentarão ocupar áreas aparentemente inabitáveis. Ao receberem abrigo após catástrofes, elas também são incentivadas a permanecer nas grandes cidades. Dado que os indivíduos via de regra vão preferir se concentrar em certos pontos para poupar custos de transporte, se você externaliza outros custos, obviamente a concentração será maior. Evidentemente eu não pretendo culpar essas pessoas por buscarem melhores condições de vida em uma cidade grande e, de fato, elas só o fazem porque suas opções foram limitadas de outras maneiras — se o governo subsidia a ocupação de áreas perigosas, por um lado, ele limita a elevação do padrão de vida dos pobres por outro.
Saúde, educação e até mesmo segurança pública têm o mesmo efeito: externalizam custos e incentivam o adensamento populacional. Em cidades em que a saúde e a educação pública têm maior qualidade, como no caso de São Paulo em relação a outras cidades, há a atração de pessoas. No caso da segurança, que, se fosse produzida privadamente, seria um bem heterogêneo, com preços diferentes cobrados para diferentes áreas, os preços cobrados são os mesmos não só para toda a cidade, mas para todo o estado de São Paulo (e o mesmo vale em todos os outros estados do Brasil), sem qualquer consideração pelo valor das propriedades a serem protegidas. Uma vez que o valor das propriedades em grandes concentrações urbanas é mais alto que em municípios pouco povoados, a segurança nas cidades grandes é previsivelmente mais cara. Com esse custo externalizado, haverá mais concentração urbana e, naturalmente, maior caos.
O zoneamento tão comum nas cidades brasileiras também tem culpa e deve responder em juízo por aumentar a necessidade de transporte público e do uso de vias públicas. As cidades brasileiras, e no mundo de forma geral, são planejadas em maior ou menor medida, sendo Brasília o extremo do planejamento urbanístico. São Paulo não é nenhuma Brasília, mas evidentemente tem lá o seu planejamento urbano. Em cidades planejadas, pretende-se separar cuidadosamente bairros residenciais, bairros comerciais, bairros industriais, etc, o que fica maravilhoso no mapa, mas, a não ser que você faça a sua feira na casa do seu vizinho, dividir estritamente a cidade em zonas só tem o efeito de aumentar a demanda pelo transporte urbano e pelo uso das vias públicas. O mesmo vale para os programas municipais, estaduais e federais de habitação, que são um tipo de zoneamento; eles criam enormes condomínios habitacionais sem nada em volta a não ser... casas. Para os governos, você só precisa de um teto para viver. O resto você dá um jeito de conseguir. Cohab, estou olhando para você.
Então, como se vê, realmente as zero propostas que eu sugeri no começo do texto seriam uma mudança revolucionária para a cidade de São Paulo, dada a quantidade de medidas, regulamentações e políticas que já são empregadas sem qualquer efeito prático. A própria desregulamentação do transporte público aumentaria a qualidade dos serviços, diminuiria os preços e mesmo desestimularia o uso dos carros na cidade. Bastaria que os ônibus fossem sujeitos à concorrência, que as vans fossem legalizadas e que fosse permitida a oferta de serviços em quaisquer linhas de transporte.
Antes de falar em encher o bolso de políticos com mais dinheiro com pedágios, seria melhor falar em esvaziá-los e queimar os livros de regulamentações do trânsito e do espaço público paulistano. São Paulo não tem qualquer justificativa para ter o trânsito caótico que tem. A área Times Square em Nova York também tem um trânsito um tanto caótico. Mas lá tem Hummer Limos tentando manobrar. Qual é a sua desculpa, São Paulo?
O manjar da saúde
Querem sempre adicionar tantas coisas à comida, para que tenhamos uma alimentação mais saudável ou mesmo para conseguir uma mãozinha do governo para lucrar, que vai chegar um momento em que tudo vai ter que ser misturado a tudo o mais, e nós vamos passar a comer uma papa homogênea composta de todos os alimentos existentes.
(E sim, eu sei que a petição não é muito séria e fala exatamente o contrário do que eu disse aqui. Mas me ocorreu isso quando eu a li, então tive que postar.)
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
Alexandre Garcia: profundo
"Ganha o Brasil? Ganha o Brasil SE os eleitores escolherem os candidatos certos."
(Reflexões de Alexandre Garcia sobre as eleições municipais.)
sábado, 4 de outubro de 2008
A Crise - Um Tratado em Tópicos
2. O excesso de créditos é culpa da falta de regulamentação;
3. O FED regula todo o crédito do país;
4. Logo, não faltou regulamentação;
5. Portanto, não há crise.
sábado, 20 de setembro de 2008
Por que algumas pessoas acham que mudanças sociais, políticas e culturais justificam ações do governo?
Você provavelmente já se deparou com ele. Toda vez que que alguém vai defender alguma medida do governo ele é invocado. Basta que um interlocutor rebata a necessidade dessa nova medida governamental com o fato de que no passado essa medida não foi necessária ou que em outros países ela não é adotada sem maiores problemas.
No caso do diploma de jornalismo, a discussão se desdobra mais ou menos da seguinte forma:
- O diploma é necessário para assegurar a qualidade do jornalismo praticado.
- Mas no passado o diploma não era obrigatório e não consta que isso tenha gerado maiores problemas/Em países desenvolvidos o diploma não é obrigatório.
- Mas as condições sociais, políticas e culturais eram/são diferentes.
O mais interessante é que essas condições sociais, políticas e culturais que se modificaram nunca são especificadas. O fato de que elas são diferentes em relação ao passado ou a outros países é suficiente para justificar a necessidade de novas medidas por parte do governo. Como as condições sociais, políticas e culturais estão sempre mudando, você pode apelar para esse argumento a qualquer momento. Mas se perguntar quais foram essas mudanças tão importantes que justificam a adoção de novas medidas, você não vai ter resposta.
O que me interessa no momento, porém, não é o fato de que o argumento é empregado, mas por que ele é empregado.
Se formos observar os temas dos livros mais importantes de acadêmicos esquerdistas brasileiros mais destacados, nós podemos notar uma fixação constante com o "Brasil". Assim, você vai ver Celso Furtado falando da história econômica do Brasil, Caio Prado Júnior discorrendo sobre a evolução política do Brasil, Marilena Chauí dissertando sobre o autoritarismo cultural da sociedade brasileira. Pode ser que minha amostragem seja um pouco enviesada, mas mesmo que se discorde que esses autores (e outros da mesma linha) foquem principalmente no Brasil em seus trabalhos, me parece difícil negar que eles se interessam muito mais em retratar o Brasil do que em desenvolver teorias gerais mais abstratas.
A história, para esses autores, é a disciplina de maior importância. O que eles praticam é uma espécie de historicismo: eles estudam os fatos históricos e tentam extrair deles o melhor curso de ação.
Os liberais, por outro lado, freqüentemente são generalistas; isto é, eles tentam enfatizar teorias gerais aplicáveis a todos os casos. Eles focam em teoria econômica, que é invariável. A teoria econômica pode ser usada para interpretar os fatos históricos. Isto é, somente com uma teoria que explique a causalidade ou as correlações entre os eventos é possível estudar a história apropriadamente - caso contrário, o estudo não passaria de uma coletânea de eventos sem relação direta uns com os outros e nenhum evento histórico teria qualquer fato causador.
Daí é possível ver que as atitudes dos dois tipos ideais de acadêmico (de esquerda e liberal) se opõem frontalmente: um estuda a história em busca de singularidades, o outro estuda a história buscando aplicar generalidades.
Daí se explica também o efeito psicológico que o argumento das "mudanças sociais, políticas e culturais" causa. A história é necessariamente diferente de país para país. Você nunca vai encontrar histórias iguais de dois países - aliás, nem mesmo dentro dos países as histórias de estados ou cidades são iguais. Por outro lado, uma teoria econômica necessariamente deve ser capaz de interpretar todos os casos possíveis. Assim, o fato de que a história do país é única é suficiente para justificar também a adoção de uma medida única por parte do governo aos olhos dos professores de jornalismo. Não interessa quais são os pontos de singularidade num país que são relevantes para a discussão, porque esses professores (o "tipo ideal" de esquerdista de que eu estou tratando neste texto) já foram condicionados pela própria formação intelectual a ver a história como uma sucessão de eventos sem qualquer correspondência com outros países ou outras épocas.
Os liberais (ou melhor, os "generalistas"), por outro lado, tendem a considerar que as semelhanças - não as diferenças - com outros países justificam a adoção de certas medidas. Portanto, se, digamos, outros países alcançaram objetivos desejados pelos proponentes da obrigatoriedade do diploma (a melhor qualidade do jornalismo, etc.) sem a regulamentação, então isso é evidência de que a regulamentação não é necessária. Assim, para eles é suficiente você apontar outras épocas ou países em que a regulamentação não foi necessária para rebater o argumento - porque não é possível afirmar que seja uma teoria geral a de que o diploma de jornalismo obrigatório seja absolutamente necessário para alcançar os resultados pretendidos por seus defensores.
Em suma, psicologicamente os argumentos agem de forma diferente nos dois tipos de pessoa: o argumento da singularidade não é suficiente para convencer o "liberal generalista" de que, por exemplo, uma ação governamental é necessária - é preciso apresentar uma razão por que essa resposta seria válida em todos os casos; inversamente, o "esquerdista singularista" não considera suficiente que se aponte o fato de que, por exemplo, em outros países regulamentações não são necessárias - é preciso verificar se não há circunstâncias especiais em operação que não tornam a medida aconselhável.
Por isso que em debates sobre "políticas públicas" normalmente pouco se avança: porque os argumentos dos dois lados agem de forma psicologicamente invertida. Assim, os debatedores sempre pensam que o outro lado da discussão não compreendeu seus argumentos ou que está respondendo a argumentos já refutados.
Não é meu objetivo aqui criticar de forma mais aprofundada a epistemologia da pesquisa acadêmica dos singularistas ou dos generalistas, mas me parece óbvio que a metodologia dos "esquerdistas-singularistas" é totalmente incorreta: ao estudar os fatos únicos da história de um país, eles inevitavelmente lançam mão de teorias pré-concebidas, porque sem elas eles só poderiam publicar montes de dados ininteligíveis em seus livros. Seus argumentos, então, na maior parte das vezes são inválidos, porque as teorias em que se baseiam não estão explicitadas e, assim, não são bem desenvolvidas.
Enquanto esses fatos não forem reconhecidos, vai ser impossível uma discussão profícua. É preciso que os dois lados de um debate falem a mesma língua antes de começar a discutir.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
Mais que sete erros: as falácias de quem vê erro onde não tem
Em artigo intitulado “Jogo dos sete erros: desmascarando algumas falácias sobre a regulamentação profissional dos jornalistas”, Fred Ghedini, Presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, acredita ter rebatido sete falácias contra a regulamentação profissional do jornalismo. Suas réplicas aos argumentos anti-regulamentação, entretanto, valem menos que uma fatia de bolo de rolo – não que isso seja tão ruim, sendo goiabada meu doce favorito, dou muito valor ao bolo de rolo. Tanto que substituo “uma fatia de bolo de rolo” por “uma faixa de Mastruz com Leite”, pra dar ar incontestável de baixa qualidade aos argumentos do Ghedini, ou ao que ele supõe sejam argumentos.
O primeiro argumento que ele diz ser falacioso – e ele começa no seu auge, acertando – é o de que “A legislação que regulamenta a profissão é ilegítima porque foi feita na época do regime militar”. De fato, eis uma proposição estúpida.
A legislação não é ilegítima porque foi feita durante o regime militar. Ela é ilegítima simplesmente porque sim. Porque qualquer tentativa de criar reservas de mercado é ilegítima. Ignore-se o fato de que foi criada por militares ou por Dom Pedro, ou mesmo por Karl Marx ou Adam Smith. Ela é ilegítima independentemente da ideologia que a criou. Não há mais que discutir sobre a falácia número um. De fato ela é falaciosa.
O que se deve discutir, sim, é a razão torta que Ghedini encontra pra caracterizar a falácia. Ele diz que a legislação é legítima apesar do regime militar. Porque ela atendeu aos anseios dos jornalistas, que sonhavam com essa regulamentação desde 1918. É como se uma medida, de repente, se legitimasse porque a camada beneficiada por ela se satisfez com sua implantação. É como afirmar que são legítimos os inúmeros aumentos de salários que os deputados se dão, porque, observem, eles próprios sempre ansiaram por um salário maior – e que ânsia.
O argumento de Ghedini não serve para justificar apenas a regulamentação jornalística, mas qualquer outra lei. Os censores anseiam pela censura, os torturadores pela tortura, e os cozinheiros pela obesidade. As restrições são sempre justificadas pelos olhos de quem as impõe, e por isso o argumento de Ghedini, unilateral, cai por água abaixo, afundando como uma bigorna jogada de um globocop em alto mar.
O segundo argumento que Ghedini julga ser falacioso é “a exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão se choca com a liberdade de expressão”. Dessa vez Ghedini já erra pelo julgamento. Não há nada de falacioso na sentença.
O fato é que Ghedini tenta aplicar um reductio ad absurdum inválido, dizendo que “se assim fosse, a única forma de garantir a liberdade de expressão para a sociedade seria que” – e você já deve ter deduzido – “todos os cidadãos praticassem o jornalismo”. Não só essa interpretação está errada, como ela quer inverter conceitos. Alguém pode ser mais ou menos cerceado, embora, para ser livre, não possa sofrer restrição alguma. Para ferir a liberdade de expressão, basta que alguém me impeça de falar no jornal. Isso não significa que eu seja obrigado a isso.
A possibilidade legal de me expressar jornalisticamente é apenas uma das formas de não ferir a liberdade de expressão, não a garantia dela. É impossível garantir a utilização de todos os direitos, mas é possível garantir que esses direitos não sejam feridos, ao menos pelas ferramentas que têm a obrigação de garanti-los – lembro aos leitores, claro, que não são “os donos de empresas jornalísticas” o padrão da liberdade civil. São os limites impostos pelo Estado. Quanto mais regras cria o governo, mais cerceada está a liberdade. A regulamentação profissional é apenas mais uma regra.
Ghedini também se contradiz quando afirma que seria “saudável, observados os parâmetros deontológicos da profissão” que todo mundo se expressasse jornalisticamente, mas que é “francamente impossível”. A contradição não está em afirmar a impossibilidade de que todos se expressem jornalisticamente. Está em assumir que, se fosse possível que todos se expressassem, não haveria mal algum, mas, diante dessa impossibilidade, o melhor é limitar o máximo possível essa expressão.
Recomendo a Ghedini um artigo de Frédéric Bastiat, “Petição dos fabricantes de velas”, que explica, em exemplo similar, e muito melhor do que eu poderia fazer, a falta de lógica de ser contra algo em parte, mas a favor no total. O protecionismo ao profissional do jornalismo não é justificado porque é impossível que todos se expressem. Se a expressão geral é interessante, mas impossível, nada mais interessante que tentarmos nos aproximar o máximo que conseguirmos dessa possibilidade geral de expressão.
Espero que a essa altura todos estejam convencidos do óbvio: eu estou certo, Ghedini está errado, e ninguém gozando de saúde mental realmente gosta de sapoti. Eu continuo, entretanto, porque meu dedo coça para refutar as asneiras de que Ghedini é capaz para defender sua classe – qual a próxima, Ghedini? “É justo porque o beneficiado sou eu”?
A terceira bobagem que Ghedini fala é que o argumento de que “a exigência do diploma é elitista” é inválido. Depois, pra argumentar, ele põe a culpa no governo – não é culpa dos jornalistas, afinal, que o governo seja incompetente para dar faculdade de jornalismo para todo mundo que queira. Depois ele diz que a barreira é a mesma para qualquer outro curso que exija diploma.
Esses argumentos do Ghedini só se sustentam, entretanto, quando se assume que todo o resto do mundo está bem e que a única questão em disputa é a regulamentação do jornalismo – não sei quanto a ele, mas eu não sou uma máquina dedicada à defesa ou ao massacre do jornalismo. Tenho idéias que vão além do meu campo de atuação. Desde o começo tenho dito que não é a regulamentação do jornalismo que é ilegítima. É a regulamentação em si. Isso quer dizer que não tenho nada contra alguém que queira trabalhar como advogado, dentista ou cirurgião cardíaco sem diploma. A única exigência que faço é que não haja fraude (se um cirurgião não é formado, que não diga que é), e quem quiser arriscar a própria vida que arrisque na sala de cirurgia do autodidata.
Não há piada nisso, e realmente acredito que ninguém é obrigado a ir para um médico não formado, nem a contratar um jornalista analfabeto. Acredito que há formas diversas de se adquirir um conhecimento, e que restringir a atuação profissional ao que é estudado na academia é, além de elitismo financeiro, pedantismo acadêmico – que gerou a demora de décadas na implantação da medicina oriental no Brasil, como a acupuntura, que hoje é aplicada da mesma forma, mas com milênios de atraso, por médicos formados.
Limitar a atuação profissional em qualquer área é limitar não somente o numero de profissionais que atua nela – e já seria desastroso o bastante limitar esse número –, mas também limitar sua evolução e continuidade. Não à toa a publicidade brasileira é muito mais respeitada – e bem paga – e criativa – e interessante – que o jornalismo.
A quarta falácia que Ghedini identifica é similar à quinta, e serão, ambas as refutações de Ghedini, refutadas ao mesmo tempo. “Jornalismo é uma questão de talento”, diz a falácia número 4, e “a profissão de jornalista não exige qualificações profissionais específicas” diz a quinta. De certa forma elas se complementam, e de forma alguma estão erradas.
Para refutar a falácia número 4 ele diz que, apesar de antigamente a profissão ter sido exercida por “boêmios”, talentosos ou nem tanto, hoje em dia ela tem um ritmo muito acelerado e exige que o trabalho seja feito sem titubear. Ghedini não diz qual foi a mudança estrutural no jornalismo que levou a isso – mas é pedir demais a alguém que sequer sabe argumentar que faça um traçado da evolução histórica do jornalismo. Mais fácil pedir que um aluno do ensino médio escreva um romance filosófico melhor que os da Clarice Lispector (mas, de novo, me precipito. Qualquer um escreve romances melhores que os da Clarice Lispector. Proust eu quis dizer. Proust. Com que idade Proust escreveu seu primeiro livro?).
Esse argumento do ritmo frenético não significa absolutamente nada. Não exclui a possibilidade do talento, apesar de reforçar a necessidade da prática. Nada impede, também, que alguém não estudado (formalmente) passe, “sem titubear, desde os primeiros momentos na profissão”.
Outro argumento dele é que pessoas de talento podem, se quiserem, passar quatro anos se martirizando na faculdade para aprender a fórmula atual do jornalismo, desgastando assim o talento que tinham para revolucionar a profissão, com a infecção da formalidade acadêmica –graças a Deus eu nunca tive talento que pudesse ser destruído pela academia, e Deus salve os talentosos!
À quinta falácia ele opõe a necessidade do jornalista de conhecer amplamente “cultura e legislação”, além dos “valores éticos que fundamentam a vida em sociedade e que consolidam as conquistas da civilização”, e mais as regrinhas básicas, como ouvir todas as partes.
Não sei por onde começar a refutar esse homem. Ele propõe que o jornalismo atual é dotado de grande conhecimento de cultura legislação ou que deve passar a ser quando o governo investir 80% do PIB nas faculdades de jornalismo? Porque, francamente, todas as pessoas com maior conhecimento de cultura e legislação que conheço são de áreas bastante distintas do jornalismo. E, se a proposta é conhecer cultura e legislação, porque um advogado não poderia exercer a profissão? Ou um professor de história? Ou mesmo qualquer estudioso autônomo de ambas as áreas?
Os “valores éticos que fundamentam a vida em sociedade” não podem ser aprendidos a partir, de repente, da vida em sociedade? E que dizer do esforço para ouvir todas as partes? Ele é seguido pelos jornalistas formados atualmente? São necessários quatro anos de estudo para descobrir essa necessidade? Acaso todas as pessoas, por menor que seja seu senso crítico, já não percebem naturalmente quando está faltando algo?
No mais, a parte técnica do jornalismo pode, sim, ser aprendida com poucas semanas de prática – um fast-learner não levaria mais que dois dias. Para “olhar criticamente os processos sociais” é de fato necessário cursar jornalismo? Um curso de sociologia não basta? Não basta que leia um único livro de sociologia?
Acredito – e só digo acredito para não usar o pedante verbo saber – que todas essas perguntas fazem, sim, sentido, e que, embora não constituam argumento em si, podem funcionar como a maiêutica e levar o leitor de boa fé a concluir que sim, estou certo (embora o de má fé se mantenha ali, irredutível, “eu quero minha cota, eu quero minha cota”). Vamos ao sexto, no parágrafo que vem.
“O Brasil é o único país do mundo em que existe a exigência do diploma de jornalismo”. Essa afirmação, em si, não é argumento. É apelo à autoridade, falácia das mais conhecidas, como o ad hominem que usarei contra Ghedini em três dois um careca, embora eu não saiba se ele é. Por outro lado, as implicações dessa frase ali em cima são evidências fortes de que algo está errado no Brasil, quando se observa que o jornalismo praticado nos países desregulamentados é muito mais interessante – e muito mais acompanhado – e mais variado – e mais etc. – que o praticado no Brasil.
Ghedini não chega ao ponto de propor que os outros países regulamentem seus jornalista, not of his businnes, mas diz que a realidade brasileira exige essa regulamentação por causa da relação incestuosa entre o parlamento e as empresas de comunicação (desde quando o parlamento é irmão das empresas de comunicação, e quando começaram a fazer sexo é algo que desconheço, e que Ghedini guarda pra sua própria masturbação, revelando os fatos sem por os vídeos no redtube), e que, portanto, deve-se dar ao apaixonado parlamento o poder de cassar a liberdade da comunicação.
Mas peraí! Além de ser um caso para a delegacia da mulher, acho que Ghedini se contradiz quando fala que, por haver uma relação íntima entre o parlamento e os proprietários, o parlamento deve regular esses mesmos proprietários. Non sequitur – e esgotam-se meus estoques de expressões latinas L. Se o problema está no relacionamento dos donos de empresas de comunicação com os parlamentares, os donos de empresas só têm a se beneficiar com a regulamentação.
Ghedini diz que não, que pelo contrário, que os parlamentares são maus maridos, e que os donos de empresas de comunicação querem o divórcio – no que mente sem vergonha na cara. A regulamentação do jornalismo não apenas beneficia os profissionais formados de forma criminosa. Também impede a criação de empresas de jornalismo de pequeno porte (o custo de um jornalista formado é muito alto para que uma pequena empresa surja com visão oposta à do jornalismo atual, e isso mantém o oligopólio das grandes corporações). Ta-dã! Revelado o defeito da regulamentação com que, creio, todos os comunicadores que desejam honestamente o acesso a informações de qualidade deveriam concordar.
Até agora, quando nos aproximamos do final, vejamos as conclusões que podemos tomar: Ghedini está errado, eu estou certo e, muito importante, não se come sapoti. Ao sétimo e último argumento, que Ghedini não entendeu, coitado.
O argumento diz que os cursos são ruins, e que exigir diploma é criar reserva para esses cursos. Ghedini começa dizendo que os cursos não são ruins, mas isso não importa. Importa que, se houvesse concorrência a eles, certamente seriam melhores. Por exemplo, cito um mercado bastante desregulamentado... er... tá, não dá pra citar um exemplo disso aqui no Brasil, mas conto com a sua capacidade de abstração pra imaginar que existe um desses, e que se chama “jornalysmo”. Bem, suponha agora que, como esse ambiente é desregulamentado, existam dezenas de empresas jornalísticas na cidade que usaremos como exemplo, Gustavolândia, para satisfazer minha vaidade. Em Gustavolândia existe uma faculdade de jornalysmo, e ela era razoável antigamente, quando a cidade se chamava Ghedinilândia e era toda regulamentada, como se espera de uma cidade com esse nome.
Quando o rei Gustavo assumiu, ele desregulamentou, contra protestos dos jornalystas, o trabalho nessa profissão – em todas as outras também, mas não vou perder meu tempo narrando pra vocês a superioridade de Gustavolândia sobre todas as outras cidades do mundo, e de como brotavam pastéis de nata em todos os jardins. No início, muitos jornalystas perderam o emprego, mas foram logo absorvidos pelo mercado da produção de almofadas, onde descobriram seus verdadeiros talentos.
As empresas jornalýsticas contrataram pessoas sem formação, e mantiveram apenas os jornalystas mais capazes. Com o tempo, essas empresas cresceram e se multiplicaram, como manda a lei divina, mas sem incesto, como acontecia antigamente, porque uma empresa vigiava a outra.
A faculdade de jornalysmo, para não se tornar inútil, melhorou sua estrutura e se adaptou à realidade do livre-mercado, passando a estimular que as empresas da área contratassem primariamente os profissionais formados. Nada impedia, entretanto, que os amantes do jornalysmo ingressassem no mercado sem formação nenhuma, e de vez em quando as empresas contratavam gente sem formação. Mas era aos formados que elas preferiam, porque agora os alunos saíam da faculdade cada vez mais preparados, porque sabiam da necessidade não só do diploma, mas da capacidade de fazer um bom jornalysmo.
Aqui, com preguiça, termino este que é, provavelmente, o maior artigo que mãos humanas já escreveram para rebater um texto tão obviamente errado. Mas que seja, cá está ele.
terça-feira, 26 de agosto de 2008
Meus mangás do momento
Bom, pra quem não sabe, Yusuke e seus amigos têm que lutar contra invasores do mundo dos demônios no mundo dos humanos. O mundo espiritual é o intermediário entre os dois.Se Yu Yu Hakusho é bastante interessante politicamente (apesar de serem apenas laterais à história), Gunnm (chamado de Battle Angel Alita nos EUA), outro mangá que estou lendo, utiliza muito mal seus temas políticos.
Sempre houve uma barreira entre o mundo dos humanos e o dos demônios e a barreira era justificada porque se assumia que os demônios eram naturalmente violentos e hostis à humanidade. A barreira evitava que a maior parte dos demônios (inclusive os mais fortes) fosse para o mundo real e colocasse a vida das pessoas comuns em risco.
Acontece que, após uma investigação, o Koenma, filho de Enma Daio (Enma Daio é o chefão do purgatório -- mundo espiritual --, na tradição japonesa ele é quem direciona os espíritos para o inferno ou para o paraíso), descobriu que a barreira não passava de um artifício do mundo espiritual (que servia como governo do além) para aumentar o seu poder.
O mundo espiritual tomava o controle da mente de demônios mais fracos e os jogava no mundo dos humanos para cometer crimes. Assim, ele chamava o "detetive sobrenatural" Yusuke para derrotar os demônios "inimigos" e justificava a barreira que mantinha entre os dois mundos.
Na verdade, os demônios não eram inerentemente hostis à humanidade. Uma minoria evidentemente cometiam crimes, mas não era regra geral. O mundo espiritual apenas incriminou alguns demônios e criou uma sensação de insegurança que justificava que ele expandisse seus poderes sobre ambos os mundos. Alguém sente algum liberalismo ou anarquismo aí?
No final, a barreira é quebrada com a descoberta da fraude e é instituída a livre imigração entre os dois mundos.
Mais tarde um grupo de radicais religiosos anti-demônios aparece e barbariza o mundo espiritual, exigindo que seja reerguida a barreira. Se a barreira não fosse reerguida, eles vaporizariam uma cidade do Japão.
A mensagem basicamente era que os demônios eram pacíficos e que apenas uns fanáticos estavam dispostos a destruir tudo para manter o próprio controle. Maneiro ou não?
Até o volume 15, que é onde eu estou (são 18 volumes brasileiros, 9 na edição japonesa), o mangá mal fala dos problemas políticos que são tão centrais à história. O enredo é mais ou menos o seguinte: a ciborgue gatinha Gally (Alita na versão americana) é encontrada em estado de animação suspensa num monte de sucata por Ido, que dá a ela um novo corpo mecânico. Eles passam a viver juntos na Cidade da Sucata, que é o lixão da cidade voadora de Zalem. A Cidade da Sucata serve basicamente como sustentáculo de Zalem: fornece seus mantimentos, acumula seus detritos, enfim, é o cenário normal de ficção científica -- um monte de lixo e gente acabada.
Aparentemente um dos temas centrais do mangá seria como os habitantes da superfície (como são chamados os lugares que não são a cidade de Zalem) reagem á opressão da gente da cidade voadora. Mas nem é. Ficam o tempo inteiro explodindo cérebros, mutilando ciborgues e alterando malucamente a personalidade de Gally. E eu tenho certos problemas com splatters de longa data. Enfim.
O mais interessante é que Yu Yu Hakusho, mesmo abordando um tema tangencial à história conseguiu fazer algo sensacional, e Gunnm mal utiliza um dos seus temas principais. Go figure.
domingo, 20 de julho de 2008
The Probabilty Broach, de L. Neil Smith
domingo, 29 de junho de 2008
Uma nota sobre os futuros apocalípticos da ficção científica
Esses filmes transmitem uma certa desconfiança do progresso, como se o que fosse bom é o que existe agora ou que já existiu. Até identifico aí um padrão, como os debates dos liberais clássicos com os conservadores, em que os liberais defendiam o progresso, os padrões mais altos de vida, a indústria, o comércio, enquanto os conservadores defendiam a família, valores sociais, a hierarquia da sociedade, o retorno aos good old times.
Cineastas (e, por que não, escritores) que imaginam esses cenários para o futuro têm uma atitude cínica para com a humanidade. Para eles, só quem identifica os problemas da humanidade são eles mesmos, as outras pessoas são apenas um bando de retardados prontos a aceitar o comando de uma megacorporação a qualquer momento.
Mas se as pessoas em geral realmente não passam de imbecis, por que desejar que elas mudem? Afinal, se elas acabarem num estado deplorável no futuro, elas vão merecer. No meu caso, sinceramente, eu não vejo qualquer valor em defender a liberdade para um monte de mentecaptos. Se eu defendo a liberdade para todos, é porque eu tenho uma crença indelével na criatividade e na capacidade humanas.
É divertido você assumir que todos são estúpidos exceto você. Mas eu não saberia explicar todas as coisas de que eu gosto (videogames, mangás, livros, coisas fúteis mas que significam muito para mim) se os seres humanos realmente não são capazes de coisas incríveis. E se não são e acabarem num futuro estilo Blade Runner, bom, they had it coming.
terça-feira, 3 de junho de 2008
O teste político da Veja é um lixo
A estrutura é a mesma do Political Compass, inclusive. Cada pergunta (são vinte) com as opções "concordo integralmente", "Concordo", "Discordo", "Discordo integralmente". A seguir algumas perguntas:
1) O MST age corretamente quando invade terras para pressionar pela reforma agrária.
A pergunta pode ser dividida em várias partes. Ela quer saber se nós aprovamos as ações do MST, se aprovamos a reforma agráfia ou se invadir terras é uma tática válida?
Se ela só quer saber se as táticas do MST são justificáveis, eu diria que não - na maioria dos casos. Mas eu não vejo nenhum problema em pressionar por uma reforma agrária (liberal, onde as terras obtidas via agressão fossem devolvidas aos donos legítimos) ou em invadir terras injustamente adquiridas.
Mas para a Veja é tudo a mesma coisa. MST = reforma agrária = invasão indiscriminada de terras.
2) É melhor ditadura com estabilidade econômica do que democracia com inflação.
E é ainda melhor andar de montanha-russa e tomar sorvete! Yeah!
Seriously. Me sinto até constrangido de comentar um lixo patético desses. Primeiro a pergunta estabelece a falsa dicotomia entre ditadura e democracia. Depois estabelece uma comparação absurda entre estabilidade econômica e inflação, como se houvesse alguma relação causal entre ditadura e estabilidade econômica ou democracia e inflação. Garbage.
4) A privatização em setores como energia e telefonia trouxe benefícios para o país
A questão não é essa. A questão é se as privatizações foram feitas adequadamente ou se serviram só para privilegiar alguns plutocratas. É evidente que as privatizações beneficiaram o país, porque não era possível que os serviços piorassem em relação ao que era antes. O que não é evidente é que as privatizações foram a melhor escolha possível.
6) Entre um candidato corrupto, mas tocador de obras, e um honesto, mas ineficiente, prefiro votar no primeiro
E eu prefiro que o Dexter mate os dois, tirando o sangue e embalando em papel para presente. Duh.
7) É condenável que as pessoas fiquem milionárias apenas aplicando no mercado financeiro, sem contribuir em nada para a sociedade
Veja que a premissa da pergunta é que quem aplica no mercado financeiro não contribui em nada para a sociedade. A questão é se isso é condenável ou não. O fato é que elas não contribuem. Naturalmente.
9) O estado deveria ter controle apenas sobre as áreas de segurança pública, saúde e educação, deixando os demais setores sob responsabilidade das empresas privadas
Ih, e agora? Eu discordo, mas é porque eu acho que o estado não devia ter controle sobre nada. Mas se eu colocar que discordo, vou para o eixo "esquerda" ou "antiliberal". A Veja obviamente acha que a minha posição política nem deveria ser representada num politicômetro.
11) direitos como férias, décimo-terceiro e FGTS deveriam ser retirados da lei e negociados caso a caso, entre patrões e empregados
Idealmente, eu acredito nisso. Mas eles deveriam incluir na afirmativa também outros pequenos benefícios aos empregadores, como, sei lá, o BNDES.
17) O ensino religioso deve fazer parte do currículo de todas as escolas
Essa é uma típica non-issue. Eu não acho que devo decidir o currículo de ninguém. Mas a Veja acha que você tem o direito de decidir o que eu ou o meu filho vão estudar. Oh, well.
20) Deveria haver uma cobrança de mensalidade nas universidades públicas
A última pergunta do quiz fecha com chave de ouro a rodada de irrelevâncias. Se eu concordo com a afirmativa, eu vou para a direita? Ou para o liberalismo? Por quê? Por que não questionar a existência das universidades públicas? Por que concordar com a afirmativa não me colocaria mais à esquerda, já que manteria as contas do estado em dia, logo permitindo que ele exerça o controle sobre as universidades mais efetivamente? One wonders.
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Ninguém é dono de nós mesmos?
I've always thought the concept of "self-ownership," so loved by many libertarians, is a little screwy: Man is not a good he owns, he is himself. To the common comeback, "If you don't own yourself, then who does?" my answer has been, "No one, just like no one owns arithmetic or the night sky." -- Crash Landing - 16/04/08Essa objeção sempre me pareceu descabida. Não há nenhum motivo por que você não possa ser você mesmo e ter a propriedade sobre seu corpo. Os escravos foram privados de seus direitos de propriedade sobre si próprios, mas eles não deixaram de ser eles mesmos por isso. Eles apenas foram privados (parcialmente) do controle dos próprios corpos. Propriedade significa controle de algo por alguém. Se você controla seu corpo, você tem a propriedade sobre ele. Eu ainda diria que você tem a propriedade legítima sobre ele, já que há poucos casos em que a própria pessoa poderia ser alienada do controle sobre seu corpo.
Outro ponto que me ocorre é que me parece absurdo simplesmente afirmar que você é você mesmo. Claro, obviamente isso é verdadeiro. Mas a essência do que é o indivíduo não está em todo o seu corpo uniformemente. Você pode perder um braço ou uma perna, isso não significa que "você" foi amputado, mas que seu braço ou sua perna foram amputados. Sua consciência permanece.
A resposta de que ninguém é dono de nós mesmos também não me parece plausível, principalmente dados os exemplos de que ninguém é dono da aritmética ou do céu. Há um motivo por que ninguém é dono do céu e da aritmética e por que é necessário estabelecer um vínculo de propriedade sobre os corpos. A aritmética e o céu não são bens escassos. Os corpos humanos são. Isto é, o uso que uma pessoa faz da aritmética não exclui o uso de outra pessoa, assim como o fato de que alguém observa o céu não exclui a possibilidade de que outra pessoa faça o mesmo. (Agora, naturalmente é possível que bens que não eram escassos no passado se tornem escassos mais tarde, em virtude de mudanças tecnológicas, geográficas ou institucionais. Assim, é possível que o céu se torne um bem "escasso", graças a mudanças tecnológicas ou à poluição, e que, caso se estabeleça uma patente sobre a aritmética, ela também se torne escassa.)
Os corpos humanos são escassos. Se eu uso o meu corpo, isso exclui o uso dele por outra pessoa. Ou seja, nossos corpos são bens rivais e excludentes, em economês. A analogia dos corpos humanos com a aritmética ou com o céu não faz nenhum sentido. E o fato de que nós somos nós mesmos é totalmente irrelevante para a questão de se nós somos ou não donos (legítimos) dos nossos corpos.
A crença na totalidade da política
Politizar todos os aspectos da vida significa que se perde a divisão entre o "público" e o "privado", ou seja, a divisão que delimita o que é e o que não é passível de ação coletiva, de legislação. As garantias mínimas de que o indivíduo desfruta se tornam apenas conveniências relativas. A esquerda não tem o menor problema com isso porque ela não acredita na existência de uma moralidade absoluta.
Eu não vou discutir o fato de que a sociedade, ou melhor, o bom funcionamento da sociedade, depende do cultivo de certos valores para não desintegrar. De fato, a única coisa que mantém a sociedade unida é uma percepção da maioria de que ela não deve agir positivamente para destruí-la. Mas isso está bem longe de dizer que "tudo é política", e me parece evidente que pensar que tudo é política é um jeito bem pobre de ver a vida.